Olá!
Pincelada rápida sobre a história político-eleitoral que
vivenciei nesses meus cinquenta e poucos anos de vida. Na década de setenta,
vivíamos as épocas de ditatura militar. Há quem diga e defenda que o regime era
democrático, porque havia eleições. Bom, em
Cuba também têm, nem por isso a mesma patota os coloca no campo
democrático. Eleições na década de setenta só existiam para cargos legislativos,
e ainda assim com limitadíssima propaganda partidária. Era época do
bipartidarismo, com a ARENA governista e o antigo MDB representando o autêntico
saco de gatos que era a oposição, abrigando desde gente moderadíssima como
Tancredo Neves, até quase-extremistas como Miguel Arraes. A lei Falcão limitava
a campanha a fotos dos candidatos com uma rápida narração de fundo durante o
horário obrigatório, no más.
A partir da década de 80, ares de democracia começaram a
soprar em Ilha de Vera Cruz, e as eleições também passaram a tratar de cargos
majoritários (menos presidente da república), começando por eleições para
governadores. A lei de campanha foi afrouxada e surgiu um autêntico fenômeno
eleitoral: os debates.
Em tese, os debates serviriam para suprir, com vantagens, os
insossos textos lidos por um locutor, com pouca diferença entre os diversos
candidatos. E mesmo que a propaganda política tenha sido flexibilizada, não dá
para achar que um candidato vá morrer de sinceridade em um programa feito para
exaltar seus atributos. Podendo expor suas ideias e contrapor as dos
adversários, os candidatos poderiam deixar mais claras suas intenções, e
tinha-se a impressão de que haveria um grande enriquecimento das propostas e
melhoria no conhecimento, o que ajudaria e muito nas escolhas do eleitorado.
Acontece que, muito mais do que a troca de ideias e
discussão de propostas, os debates se transformaram em combates retóricos,
repletos de acusações recheadas de armadilhas linguísticas. Como programa de
televisão, funcionou muito bem, porque garantia belas rixas, trocas de ofensas e,
por consequências, grandes audiências. Por isso, tais eventos são concorridos
até hoje. Só que aquele velho objetivo de tornar claras posições e discutir
políticas foi por água abaixo, mais se baseando em perguntas embaraçosas do que
na apresentação de propostas.
Talvez eu idealize demais. Lembro-me de ter assistido um
debate no programa Complicações, da Univesp, sobre os problemas gerados pela
bolha imobiliária de 2008. Sim, eu tenho dessas coisas que o universo considera
maçante. Os debatedores eram dois professores de Economia, cada qual de uma
corrente diferente, diametralmente opostas. Um era liberal de carteirinha, o
outro era marxista de vestir vermelho. A um primeiro olhar, os ingredientes
para a rinha de galos estavam todos postos. Entretanto, para minha agradável
surpresa, a discussão ficou no campo estrito das ideias, sem ninguém espumando
pela boca, nem fazendo caretas e esgares, apenas discordando e concordando,
apontando onde cada argumento fazia lógica ou onde necessitava de correção, na
opinião do garboso debatedor. O resultado final foi conhecimento, que me trouxe
interesse por um tema que eu considerava árido e arenoso, e eu sempre tive a ingênua
expectativa de que um dia desses o confronto político fosse nesses termos.
Óbvio que é um sonho de Poliana, a fictícia menina que
procurava um lado positivo em tudo (bom tema para um post futuro).
Principalmente porque não se trata de não se saber fazer o debate por falta de
conhecimento, mas pela intenção deliberada de se ganhar eleitores pela
desqualificação dos adversários. E isso é conseguido por discursos gritados
para emular firmeza, de promessas infactíveis e, principalmente, de falácias,
muitas e muitas falácias.
É possível cometer falácias das mais diversas maneiras e com
os mais sofisticados argumentos, pelos mais variados motivos. A classe política
é muito dada a apelos, para trazer o emocional das pessoas à baila, ou fazer
amplo uso de generalizações
e espantalhos,
ao sabor da vantagem pretendida, além de envenenar
o poço da concorrência toda, mas existe uma delas que é muito específica
dos debates, conhecida como plurium
interrogationum, ou, mais simplesmente, pergunta complexa.
A pergunta complexa consiste no encadeamento disfarçado de perguntas sequenciadas em uma única interrogação, de modo a não permitir que o interlocutor responda objetivamente com termos simples, sob pena de fazê-lo de modo incompleto.
A pergunta complexa é sempre feita com malícia, porque
embute em si um pressuposto. Por exemplo: na pergunta “você ainda se droga
todas as noites?” há três perguntas misturadas, amarradas pelo pressuposto de
que o cidadão para quem se dirige a pergunta se droga, o que é um ponto muito
delicado e discutido em nossas sociedades ocidentais, e que já carrega consigo
uma espécie de pré-julgamento. As perguntas são:
a) Você
se droga?
b) (Se
sim) Você se droga há tempos?
c) (Se
sim) Você se droga todas as noites?
Vejam que a resposta à pergunta complexa nunca pode ser
reduzida a um simples “sim” ou “não”. Respondendo afirmativamente, concordamos
de plano com uma asserção dúbia, que somente pode ser justificada através da
descrição dos pressupostos. Respondendo negativamente, uma série de questões
fica em aberto. A qualquer uma das três em que se deva atribuir uma negação,
fará com que toda a resposta seja dada negativamente, o que acaba fazendo com
que nada seja respondido. Pode ser que o cidadão nunca tenha dado um tapa na
pantera, pode ser que já o tenha feito uma ou poucas vezes, pode ser que se
drogue todos os dias, mas nunca à noite. Qualquer resposta negativa geral fará
com que se falte com a verdade, e há, portanto, a exigência de uma resposta
complexa para a pergunta complexa.
Um mero advérbio de tempo dá todo um colorido maldoso na
pergunta. Uma palavra que modifica um verbo de modo a lhe aplicar uma
circunstância, o que pode mudar todo o seu sentido: essa é a delicadeza desse
tênue recurso sofismático.
É possível ainda que a pergunta complexa seja ainda mais
sutil. Se a pergunta for "quanto lucro suas empresas auferiram com a
construção da ponte tal?" não teremos o encadeamento de perguntas, mas de
pressuposições. Primeiro, porque ela deixa subentender que uma determinada obra
foi realizada para atender um interesse específico do adversário, e segundo que
tal obra trouxe não só a satisfação de tal interesse, mas também ganhos. Sendo
verdade ou não, a resposta nunca é simples.
O prejuízo causado pela plurium interrogationum em um debate
é que eles são organizados para impedir a bagunça generalizada que ocorria nos
primeiros eventos, quando um candidato atropelava a fala dos outros e não
cumpriam regras básicas de tempo e momento. Com um tempo limitado, perguntas
complexas dificultavam a concisão da resposta e deixavam sempre brechas que
poderiam ser exploradas à exaustão. Todos os debates passaram a ser pautados na
resposta esperada, e não no conteúdo.
Essa lição não foi aprendida simplesmente pela necessidade
de se engodar os ouvidos tupiniquins. Vem de longe, muito mais longe, quando a
implantação da democracia direta grega, datada de cerca de 500 aC, exigiu dos pensadores
um esforço maior para analisar o homem em si mesmo em detrimento à physis que o
cercava, dando uma guinada da Cosmologia para a Ética. Os primeiros sofistas,
de quem já falei neste
texto, tinham pensamentos profundos sobre a existência humana, e
inauguraram a visão antropocêntrica que perdurou por toda a época clássica,
adicionada dos mais diferentes helenistas. Mas, como sói acontecer com novidades,
junto deles vieram as críticas de quem não se conformava com o conhecimento
colocado como instrumento de venda, e não um patrimônio livre, acessível por
todos os homens. Não era gente fraca: a tríade Sócrates-Platão-Aristóteles viam
os sofistas como se tivessem fumaça nos olhos.
E por que os sofistas prosperaram? Como eu disse, a
decadência da aristocracia grega levou à implantação da democracia direta. É
óbvio que esse regime não tinha nada a ver com as eleições e a igualdade de
direitos e cidadania que sonhamos em ter hoje. Os cidadãos eram os únicos
eleitores, e eram compostos por senhores de terras, atenienses natos, homens,
desobrigados de dívidas e outras coisas mais, e somente a esses competia a
escalada do poder. Por ser uma democracia direta, não havia grupos
representativos, mas o próprio gogó do interessado, que precisava ser
convincente perante os pares para convencê-los de suas propostas.
Os sofistas entraram nesse “negócio” ensinando artes argumentativas
aos cidadãos, de modo a ampliar o cabedal lógico de suas ideias e as maneiras
como elas poderiam ser aplicadas coerentemente no discurso, o que não era um
mal em si. É como se você contratasse um professor que modulasse melhor sua
oratória, através da construção das palavras: dizer bem o que se quer dizer é
uma ferramenta para ser compreendido e dar convencimento.
Só que, como sempre acontece, a coisa degringolou. Penso nos
atuais coachs quânticos e transcendentais. Talvez a profissão de coach não
fosse tão digna de desconfiança quando os primeiros consultores perceberam que
seu negócio precisava de incremento e se colocaram à disposição da clientela
para dar conselhos de organização e planejamento, usando um nome gringo para
dar mais cartaz ao empreendimento. Mas, à medida que o negócio se popularizou,
a necessidade de apresentar diferenciais degenerou a boa intenção. E aí nasce
uma combinação de autopromoção com pseudociência que desembocou nisso que vemos
hodiernamente. Com os sofistas aconteceu a mesma coisa, e a ênfase na
necessidade de vencer debates independentemente da lógica das ideias criou os erísticos, instrutores na utilização da
controvérsia através de jogos de palavras. Esse nome vem da deusa Éris, regente
do caos e da discórdia, porque os erísticos eram mestres na arte de fazer um
xadrez mental: com raciocínios capciosos, lançavam iscas para os interlocutores
com o objetivo de encurralá-los em contradições – não como a maiêutica
socrática, que procurava arrancar estados de desconhecimento latentes nos
próprios conceitos que os seus debatedores tinham, mas de causar uma impressão
de vitória na luta verbal, o que, em um povo nem tão diferente do nosso,
passava uma falsa sensação de força.
Essa prática erística ainda se mantém nos dias de hoje. E já
declinou desde logo a qualidade esperada dos debates, porque as regras
precisaram se tornar tão rigorosas que ficaram meio chatos e pouco espontâneos.
Mas eu ando tão de porre com o cenário político atual que eu nem vou me deter
muito mais neste tema. Bons ventos a todos!
Recomendação de vídeos:
Os dois vídeos abaixo, um continuação do outro, são a reprodução dos primeiros debates
para a disputa do cargo de governador de São Paulo em 1982, ano em que os
brasileiros puderam voltar a votar no cargo. Eu acho que, independentemente do
que se concorde ou discorde em termos de ideias (estamos falando sobre eventos
políticos que ocorreram há quase quarenta anos), e também independentemente da
profusa utilização de sofismas, em termos de artes erísticas os oitentistas estavam
mais bem servidos do que os eleitores atuais. Maluf, Brizola, Tancredo, Jânio,
Montoro, Quércia e outros davam um espetáculo muito mais televisivo do que
Alckmin, Dilma, Dória, Amoedo e outros menos votados.
https://www.youtube.com/playlist?list=PL364E3DA7AEE3400C
https://www.youtube.com/watch?v=aJXF2U_4MEo
Já a playlist abaixo é o do programa Complicações, da
Univesp TV. Acesse se você está interessado em aprender os conteúdos, e não
apenas em assistir um UFC verbal.
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