(Para além do senso comum, sempre há dúvidas quando nos deparamos com o que são os direitos humanos na essência)
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Todo fim de semana é a mesma cantilena (quase). Os vizinhos
do 22 ligam seu aparelho de som para ouvir sambas e disco music, ecléticos que
são. Deste amálgama de Martinho da Vila com Abba nasce o conflito. A
inconveniente vizinha que vive sob meus pés abre a janela e começa a vociferar,
no que é respondida com um elevar de volume, que, se antes era tolerável, já
agora começa de fato a perturbar. Mas sou mais pelos meninos dos dois patinhos
na lagoa, porque tenho porre imenso com gente resmungona, que, além disso, também
lasca brasa com seus “góspeis” com bastante frequência, e aí não há restrições
de altura, ritmo ou timbre. Ela já tentou fazer abaixo assinado, ligar no
escritório do dono e falar com os ocupantes das unidades, um por um, o que a
fez chegar a mim (mais detalhes sobre meu pequeno universo condominial neste
e neste
textos). Minha resposta foi seca: “não me incomodam em nada”. Estranhamente,
chegou uma reclamação contra mim à administradora, dizendo que fico ligando uma
máquina de costura durante a noite. Fui tirar satisfação com ela, para
perguntar de onde ela tirou a ideia de que tenho uma dessas, no que ela
garantiu ouvir diariamente esse ruído vindo do andar de cima. Não sou bate-pau,
e sei do que ela fala: a Lanofix© da unidade ao lado, que produz um som
monótono, mas que nem de longe pode ser considerado perturbação. É uma jovem
peruana que luta com a vida para sustentar seus dois filhos, e não me sinto
confortável em repassar a denúncia. Recolho-me à minha insignificância
convidando-a a reclamar com o papa, o que ela sabe fazer muito bem. Resolvo a
querela para o meu lado fazendo um educado convite à administração para que
vistorie meu apartamento e localize a tal máquina da discórdia. Como nada é
apurado, o ciclo é retomado, interminável. E lá vai ela reclamar do seu direito
de silêncio, direito de paz, direito de dormir, direito, direito, direito...
Direitos são bons, são garantias na nossa vida social. Mas
são polêmicos, especialmente quando vão contra nossas convicções. Dando um
rápido repasse mental, direitos humanos é um tema que eu abordei muito pouco
neste meu decenário espaço. Isso não significa um desinteresse pelo assunto,
até mesmo porque uma das primeiras especializações que busquei foi justamente
em mediação de conflitos e direitos humanos. Talvez tenha sido justamente esse
o problema. A compreensão geral que as pessoas têm sobre o conceito sempre é
muito limitada a casos extremos, e já ali, nos idos da primeira década do
milênio, eu sentia na pele a divisão que hoje está escancarada na nossa
sociedade tupiniquim. Por isso me dou o direito humano de ter preguiça para
tratar do assunto. Mas arregacemos as mangas.
É compreensível, até certo ponto, que os direitos humanos causem incômodo, mas isso só é aceitável na exata medida da ignorância, porque o senso comum tende a enxergá-los como privilégios que são dados a quem não os merece, como os mendigos a quem é atribuída indolência, aos fora-da-lei a quem é atribuída violência ou aos forasteiros a quem é atribuída a boca para sustentar. Só que a partir do momento em que se absorve o que eles são e se continua a ser contrário a eles, excluímos a variável ignorância (no sentido de não conhecer) E já aí temos um problema de personalidade mesmo. Por conta disso, acho que seria de bom tom levar esse conceito a quem por acaso chegar a este espaço e se interessar pelo assunto. O melhor, no caso, é começar pelo começo.
O que são direitos
humanos?
Direitos humanos são prerrogativas básicas garantidas a
qualquer membro desse imenso grupo chamado de humanidade, independentemente de
qualquer fator distintivo. Isso significa que cor, credo, nacionalidade, gênero,
ideário político, opinião futebolística e outras fontes de diferenças físicas e
sociais não são causas para que uns tenham mais direitos do que os outros. Isso
significa o quê? Que são direitos universais. Sendo assim, repitam com o tio:
são para todo mundo.
Como surge a ideia de
direitos humanos?
É uma ideia que tem raiz essencialmente ética. Embora muito
tenha se pensado dispersamente sobre os conceitos de uma moral universal, é com
Kant e seu imperativo
categórico que ganhamos base filosófica para se falar de direitos humanos,
especialmente no seu segundo princípio, que diz, em apertada síntese, que o ser
humano é um fim em si mesmo, jamais podendo ser qualificado como um meio. Essa
tese derruba, de uma só vez, qualquer forma de submissão de um ser humano a
outro, como ocorre na escravidão, na concepção escalar das raças, e em qualquer
forma de relação que não reconheça a dignidade da pessoa.
Como os direitos
humanos se transformam em leis?
Os direitos humanos surgem no contexto do jusnaturalismo.
Essa é uma posição filosófica do Direito que diz existirem certos direitos que são
inerentes ao ser humano, que todos possuem, sem a necessidade de que se baixem
em escrito, na forma de lei. Entretanto, em um tempo onde reis e seus nobres
detinham a corda e a caçamba, essa ideia de direito natural tinha mão única: a
deles, claro. Por conta disso, toda espécie de violação era cometida, muitas
das quais na base do fio da espada. Uma maneira de se garantir um mínimo de
segurança era fazer com que mesmo estes direitos que em tese não precisavam ser
escritos fossem para a pedra.
Às vezes me ponho a pensar e lembro de como certas leis me
parecem inúteis, não no sentido de não servirem para nada, mas de
sistematizarem coisas que deveriam ser automáticas. Não lhes parece óbvio que
devemos dar lugares de fila para grávidas, assentos de trem para idosos,
preferência de atendimento para deficientes? Só que existem leis para
regulamentar essas situações, porque o que vale é o que está escrito, e não o
que é moral ou natural, entenderam? Essa é essencialmente a diferença entre
direito natural e positivo. Portanto, melhor que se escrevam os direitos
humanos, tornando-os claros e indubitáveis, e que se discutam seus acertos e
erros em cima dessa escrita, que é mais sólida e consensual que o mero costume.
Mas como eles aparecem
na prática?
É a partir da Revolução Francesa que os direitos humanos se
transformaram em uma declaração escrita. Explicar todo o contexto deste evento
que virou o mundo de cabeça para baixo quintuplicaria este texto, portanto
serei sucinto. O movimento revoltoso francês propunha uma guinada na maneira
como o povo interagia com seu governo. Um dos grandes problemas que havia na
monarquia era a falta de reconhecimento de direitos mínimos das camadas
populares. Por conta disso, tão logo se deu a Tomada da Bastilha, o evento mais
marcante de tal movimento, foi preparado um documento chamado “Declaração de
Direitos do Homem e do Cidadão”, uma síntese de recuerdos para o governante em exercício de que os cidadãos são
titulares de direitos básicos inalienáveis, que extrapolam a sua vontade e
constituem seu limite de agir.
Deu certo? Não, né? As duas Grandes Guerras vieram afogar os
direitos humanos em um lodaçal de onde foi difícil emergir novamente. Uma vez
sacodido e espanado, o mundo tenta retomar novamente algum nível de
organização, e, mesmo com os tropeços que a História nos ensina, foi criada a
ONU, que pretende agremiar e regulamentar o direito internacional. Para ser
signatário do órgão e gozar de suas benesses, as leis de um país devem se
enquadrar minimamente à Declaração Universal dos Direitos Humanos, um documento
simples, que contém apenas 30 artigos, mas que é ainda mais sofisticado que a
Declaração da Revolução Francesa.
Direitos humanos são
para humanos direitos?
Direitos humanos são para humanos. O joguinho de palavras é eficiente e seduz muita gente, mas falacioso, e retrata bem a questão da validade em
defender quem “mija fora do penico”. Os direitos humanos não preconizam
exceções para quem comete crimes e passou pelos devidos processos legais, mas
buscam garantia que a lei contenha um mínimo de parâmetros e que as penas não
extrapolem ao que está determinado nesta mesma lei.
Por que os ativistas
de direitos humanos são tão defensores de bandidos?
Porque o preso está sob custódia do Estado, que tem
responsabilidade sobre ele. Uma dessas responsabilidades é a de reinseri-lo na
sociedade que, sabemos, dificilmente está disposta a recebê-los de braços
abertos. Aqui a questão não é a de adotar um ex-presidiário como se fosse um
filho, porque não faríamos isso com ninguém. A defesa aqui não é do crime, mas
do ser humano. O discurso fácil coloca a questão no plano pessoal, do tipo:
“queria ver se você com você”. Se fosse comigo, eu deveria estar
automaticamente excluído do debate racional, porque minha resposta passaria a
ser passional, vingativa, eivada de emoções. E respostas desse gênero não servem
para que a sociedade arrime seus fundamentos. Devemos pensar com outro tipo de
cabeça: como gostaríamos de ser tratados caso cometêssemos algum crime e
fôssemos enviados para a penitenciária.
Por que direitos
humanos fazem parte preponderantemente das pautas de esquerda?
É uma resposta difícil de dar*. Não há motivos impeditivos
para alguém dito de direita não defender direitos fundamentais. Quando falamos
em direitos humanos, temos em mente muito de liberdades individuais, que são
abordagens típicas de direita. Lá, fala-se de liberdade de ir e vir,
reconhecimento de personalidade jurídica, negativa na intromissão da vida
privada, casamento e constituição familiar, liberdade de pensamento e
convicção, e, pasmem, de direto à propriedade! A resposta vem de duas vias: um
reacionarismo disfarçado de conservadorismo ou os velhos pacotes fechados de
ideologia. No primeiro, temos uma ideia de manutenção de privilégios, e na
segunda… bem, é aquela história da preguiça de pensar.
Embora já tenha discutido o que é o conservadorismo neste texto, vou dar um exemplo bem rápido para dar síntese no que estou falando. Na
Fórmula 1, a fornecedora de pneus escolhe quais os compostos serão utilizados a
cada grande prêmio, variando de uma borracha mais dura para uma mais mole,
sendo que as primeiras oferecem maior durabilidade, e as outras vão em
proporção inversa, aumentando em velocidade e diminuindo em duração. Nos
circuitos novos, como o da Holanda, palco novo para os carros atuais, foi feita
uma escolha conservadora, utilizando-se compostos mais duros, para se preservar
na incerteza dos comportamentos dos pneus. Uma escolha mais ousada, que
poderíamos em tese chamar de progressista, seria optar por compostos macios,
que talvez tornasse a corrida um pouco mais disputada. E um reacionário, que
gosta de se chamar de conservador? Ele provavelmente escolheria correr com os
antigos pneus de bicicleta da década de 50, porque isso é que era "corrida
de macho".
Com relação à esquerda, o que mais a atrai à pauta dos
direitos humanos é a questão da igualdade perante a lei, mais enfática do que a
liberdade em relação à mesma lei. Se considerarmos direitos que forçam a uma
distribuição mais igualitária das rendas, por força das garantias que são
necessárias para suprir materialmente essas necessidades mínimas, então temos
um bom motivo para o apoio da esquerda aos direitos humanos.
Se a Declaração da ONU
já cobre o necessário para garantir direitos mínimos, por que existem direitos
específicos nos diferentes países?
Porque cada sociedade tem sua própria realidade. Em um país
como o Brasil, cuja violência contra a mulher possui níveis mais altos que em
outras democracias, a legislação incluiu primeiramente a Lei Maria da Penha e,
posteriormente, o crime de feminicídio. Pode-se discutir o alcance, a validade
e a pertinência dessas leis, mas uma coisa é inegável. Elas são indicativas de
um problema particular existente, e o poder público precisa agir de alguma
forma. Para isso, a pressão das entidades representativas é premissa básica e
indisputável. Isso se aplica a toda e qualquer pauta e o direito a manifestação
é garantido pela mesmíssima declaração.
Os direitos humanos evoluem como qualquer outro mecanismo
social. Por isso, é óbvio que a declaração revolucionária não é igual à
declaração do pós-guerra, e que também não traz outros direitos expressos que
tendem a se universalizar. Se eles estão abarcados, é por generalização.
Sabemos que isso gera uma série de dúvidas, e o ideal é que estes direitos se
tornem mais específicos. Um exemplo bastante claro é a proibição de distinção
por sexo. Isso abrange as contemporâneas designações de gênero, que são muito
mais maleáveis que a dicotomia masculino/feminino? Parece-me que sim, mas
alguém pode argumentar justificadamente do contrário, que uma matéria nova e
significativa não pode ser tratada meramente na superfície.
Por que as associações
de direitos humanos se preocupam menos com as vítimas do que com os agressores?
Essa é uma pergunta recorrente e que expressa uma confusão
de pensamento. De fato, quando alguém denuncia maus-tratos a uma criança, ou a
utilização de trabalho escravo, ou a qualquer pessoa que queira fazer uso de
sua palavra, está-se cuidando da vítima de infração aos direitos humanos. Mas é
que a relação de agressividade faz com que o termo “bandido” esteja fortemente
vinculado a crimes violentos, que normalmente faz com que as pessoas clamem por
vingança em igual proporção. É como se o principal direito humano voltado à vítima
fosse a punição ao agressor. Isso é fácil de vender e esconde toda a
complexidade que existe na tentativa de recuperar um ser, que, apesar de todas
as cagadas que fez, continua sendo humano, por menos que queiramos. A lei diz
que o Estado está incumbido de deter um indivíduo e tentar recuperá-lo. Isso
tira o caráter de vendeta do código penal e tenta garantir que um criminoso
seja reinserido na sociedade. O discurso fácil de que ninguém se lembra da
vítima visa esconder algo mais simples: todo processo penitenciário minimamente
sério é caro e exige sacrifícios sociais. Por exemplo, um ex-presidiário
plenamente recuperado precisa encontrar quem esteja disposto a lhe propiciar
emprego, só que essa recuperação nunca é digna de confiança por conta do
péssimo sistema prisional.
Por que a policia é o
principal alvo do pessoal dos direitos humanos?
Em qualquer democracia do mundo, a polícia é o braço armado
do Poder Judiciário, e é um órgão tipicamente de Estado. Se a polícia é a
instituição que garante a execução das ordens judiciais e da manutenção da
ordem, ela deve ser a primeira a cumprir a própria lei.
Isso é simples de explicar. A polícia possui um grande
poderio nas mãos, já que é armada pelo próprio poder público e possui uma série
de prerrogativas que englobam o uso legítimo da violência. O significado disso
é que, enquanto qualquer pessoa que empregue meios violentos de coerção
extrapola os limites da lei, a polícia o faz legitimamente. Por esta razão, a
polícia tem o dever de agir estritamente dentro dos limites da lei, porque
senão, vejam vocês, cometerão crimes. Novamente, não se trata de proteger
bandidos, mas de se lembrar que todos temos situações em que precisamos ser protegidos
pela lei. O bandido está fora dela, é preciso que o Estado se mantenha nela.
Só isso por enquanto, senão vai ficar mais chato do que as
discussões sobre o tema já são. Procurei falar fora do senso comum, que é o
pior inimigo do assunto, assim como em todo o conhecimento racional, já diria Gaston
Bachelard. O tema é inglório e não deixará de ser pelas letras deste pobre
escriba, embora seu objetivo seja o de fazer com que a discussão seja mais
ponderada. Bons ventos a todos!
Recomendações de leitura:
São as mais simples possíveis: ler as próprias declarações
de direitos mais famosas. A da Revolução Francesa pode ser lida no link abaixo:
DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO. Disponível
em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Declara%C3%A7%C3%A3o_dos_Direitos_do_Homem_e_do_Cidad%C3%A3o.
Acesso em 14.09.2021.
E a vigente na ONU pode ser lida no site da Unicef, sua agência
voltada para a infância:
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em:
https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos.
Acesso em 14.09.2021
O distintivo dos direitos humanos utilizado neste texto foi
extraído de:
https://www.humanrightslogo.net/
* Embora eu ache pobre esta divisão
dicotômica entre esquerda e direita, vou usar os termos aqui para o bem da
compreensão e da concisão.
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