Marcadores

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (38 - Linguística)

(A Linguística é a ciência que estuda a comunicação humana)

“Dê-me um cigarro

Diz a gramática 

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas o bom negro e o bom branco 

Da nação brasileira 

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

Me dá um cigarro”

Oswald de Andrade 


Olá!

Clique aqui para acessar os demais tópicos desta série

De vez em quando, eu tenho reuniões com grandões*. Por mais que meu trabalho se afaste dos centros decisórios, o fato é que não dá para escapar sempre, e tem momentos em que os requisitos para desenvolver sistemas precisam ser levantados e validados nas altas esferas. Quando acontece uma dessas, meus superiores me admoestam com incontáveis recomendações, esquecendo que eu tenho mais de 50 anos: “procure não fazer muitas perguntas, evite perturbar o bom sossego”. Que coisa irritante. Mas é real que, diante de tão perfumadas personalidades, eu adote um tom formal que não costumo usar no dia-a-dia. É um tal de “governança”, “similitude”, “modelagem”, além dos inescapáveis anglicismos que povoam a atividade. Al di là dos termos mais técnicos, também vem uma empolação que só é cabível nos formalismos escritos, mas que procuramos puxar nesses momentos sombrios. Até um “destarte” eu soltei na última reunião. Destarte… quem fala isso? Mas é língua portuguesa, viu?

Quem me vê em uma reunião e depois fala comigo em um boteco pensa se tratar de duas pessoas diferentes. Tenho o sotaque paulistano dos bairros mais antigos e gíria dos bairros mais periféricos, fazendo uma colorida combinação de “meus” e “manos” típica da Paulicéia desvairada.

De uma forma ou de outra, aliás, todo mundo veste essa persona, podem reparar. Ninguém é formal o tempo todo, nem é coloquial em qualquer momento, com raras exceções. Isso porque há contextos e contextos, e, por isso, há diferentes expressões para momentos mais ou menos adequados. E essa variação que utilizamos na linguagem faz parte da maneira como nós, humanos, construímos nossas personalidades e sociedades.

Não há nada de errado nisso. A única questão se dá no âmbito sobre qual é o ângulo de visão lançado sobre a questão. Quando falamos sobre gramática, nós estamos falando sobre o ponto de vista normativo da língua, que prescreve como são as regras que devem ser seguidas para que a linguagem cumpra a sua função de ser precisa. É uma função legítima, porque necessária, mas não é a única, porque, antes de mais nada, a função da linguagem é comunicar.

Posto isso, e tendo algumas premissas básicas em mente, podemos afirmar que a linguagem é um objeto de estudo como outro qualquer. É a essa visão científica que se aplica à linguagem que damos o nome de Linguística, e sobre ela pousam algumas pequenas confusões, e cabe explicar melhor do que se trata.


A Linguística é o estudo das línguas em sua dinâmica, ou seja, na maneira como ela se articula com os conteúdos mentais para representá-los na forma de mensagens, como ela se modifica com o passar do tempo e como diferentes falantes se referem a objetos semelhantes. Só que isso não evita que seja necessário entender como a língua funciona em seus aspectos mais miúdos. Se ficou confuso, vou esmiuçar.

Embora seja comum que façamos divisões entre uma linguagem dita correta e outra não, sendo que a primeira é mais elaborada e cuidadosa, enquanto a segunda é mais intuitiva e imediata, a verdade é que esse processo não funciona unicamente com a chave da norma. É evidente que existem momentos em que é necessário que a linguagem seja a mais precisa possível: especificações técnicas, elaboração de leis, prescrições médicas. Estes são momentos em que a linguagem precisa sofrer o mínimo possível de desvios devido à ambiguidade. Mas a linguagem normatizada não é a única existente, e não é suficiente para dar cabo à tarefa de comunicar. Ela recebe influências da língua coloquial e fornece dados para a mesma. É fácil de perceber isso quando trazemos um termo mais rebuscado para o nosso quotidiano. A palavra “tosco”, por exemplo, era utilizada até a década de 90 quase que só no âmbito formal, com uma cara de arcaísmo, até que alguém achou o termo legal e o trouxe para o vulgo, e hoje em dia está na boca de todo mundo, embora a nova conotação seja um pouco diferente do contexto original. Antes, tosco era sinônimo de rudimentar, enquanto hoje tem o sentido de malfeito ou de desprezível. 

Idem se dá no sentido oposto. Quando uma palavra do colóquio ganha uso formal, porque se torna consagrada, passa a fazer parte da norma culta, como costuma ocorrer com palavras horrorosas, como “vantajosidade”, que, apesar de pernóstica, foi errada só até um determinado momento, e hoje consta em inúmeros contratos e editais. É aquela coisa… se algo tem o sufixo -dade, parece dar o sentido de ato ou efeito de uma coisa qualquer, só que eu nunca vi gostoso dar origem a gostosidade, ou gorduroso a gordurosidade. Bem, que se vai fazer?

Percebem como a língua é dinâmica? Ela vai se transformando com o tempo, dialeticamente modificando certos em errados e vice-versa. Por esse motivo, e tendo a pretensão de ser uma ciência, a Linguística tem por objeto exatamente a dinâmica da língua, de forma a conseguir descrever seu funcionamento e depreender como esta interage com o universo que procura retratar.

A Linguística, ao contrário do que acontece com a maioria das ciências, tem uma certidão de nascimento, que se dá com os estudos de Ferdinand de Saussure, pensador suíço que converteu uma filosofia difusa em objeto de estudo sistemático. É com ele que se estabelece a tríade essencial da linguagem, signo-significante-significado, onde o primeiro é a representação já montada de uma imagem psíquica (segundo) que identifica o terceiro, o objeto em si. A partir dele, várias escolas e correntes linguísticas foram criadas, quase sempre voltadas para quatro focos:

Fonética e fonologia: investiga como os sons são articulados para produzir sonoramente os elementos linguísticos. É preciso lembrar que, antes de ser baixada em escrito, a linguagem passou pelas bocas, e estudar a maneira como esses sons são produzidos ajuda inclusive a desvendar o conceito de imagem sonora, uma das três partes da estrutura linguística.

Morfologia: estuda a estrutura da linguagem nos seus elementos mais fundamentais, para a compreensão de como as palavras são construídas. É quase como se a Linguística estudasse a estrutura atômica das palavras, para compreender como elas se formam. Podemos fazer um metaexemplo com a própria palavra “morfologia”, que é composta pelo radical morfo, que significa forma ou estrutura e logia, do grego logos que, neste sentido, significa estudo.

Sintaxe: busca compreender como os diferentes componentes da linguagem se estruturam para formar composições que formem sentidos, como as frases e orações.  Aqui, estuda-se a articulação das palavras dentro das frases e das frases dentro dos períodos. É preciso tomar cuidado para não se confundir a sintaxe linguística com a sintaxe normativa. Podemos usar o poeminha “Pronominais”, de Oswald de Andrade, que está na epígrafe deste texto como exemplo. Ele diferencia o português acadêmico baixado por escrito em documentos formais e da língua falada popularmente. O objetivo da Linguística como ciência não é decretar qual forma é certa ou errada, mas compreender como a comunicação se dá através da utilização de sons e palavras. Oswald, inclusive, dá com este texto uma mostra do que o movimento modernista era favorável: uma linguagem mais fluida, desatada dos formalismos elitizantes e mais próxima ao falar das pessoas. 

Semântica: estuda os diferentes sentidos que a linguagem adota de acordo com o contexto em que se encaixa. É a parte mais subjetiva da Linguística, porque é aquela que tem um olhar mais dinâmico sobre a questão. Não olharemos aqui apenas para os encaixes dos termos, mas o significado que eles assumem dentro de um contexto comunicativo. Enquanto na sintaxe nos ocupamos com as combinações, na semântica o foco é o que cada palavra quer dizer naquilo que se diz. E também para advertir quando o uso da linguagem se desvia de um propósito mais autêntico para desembocar na sua função mais ilusória, mais malandrinha, mais tergiversada, como é o caso das falácias.

É com Ferdinand de Saussure que a Linguística nasce como ciência, e falei sobre ele neste texto. A coisa nasce meio que no contexto do Positivismo, que tem como objetivo transformar qualquer tipo de estudo em ciência, o verdadeiro conhecimento aproveitável. Sendo assim, a Linguística nasce como uma ciência humana, que se encaixa no conjunto da sociologia, porque é um dos ingredientes necessários para que as sociedades existam. Não adianta achar que as pessoas agrupar-se-iam mudas, ou que, no mínimo, falassem por gestos ou sons diferentes das falas (que, aliás, são componentes da linguagem). O papel da Linguística, como ciência, é observar e descrever, sem fazer nenhuma apreciação ética ou prescritiva. Não há certo ou errado na linguística, apenas a descrição da realidade dos usos e costumes da língua. Não existe dizer que “Pêrnambuco” é mais certo do que “Pérnambuco”, ou que “Rorâima” é mais certo que “Roráima”, quando olhando pelo viés linguístico. O que existe é todo um histórico que faz com que se fale de uma forma ou de outra.

A partir da observação linguística, começamos a perceber uma série de informações que nem passam pela nossa cabeça no quotidiano. Por exemplo: toda língua tem um sedimento arbitrário. Quando miramos um objeto qualquer, não colocamos nele o nome que bem entendemos. Independentemente de como surgiu, usamos o nome que a coletividade lhe impôs. Dessa forma, chamamos um aparelho motorizado com quatro rodas de carro porque há o consenso social de que este é seu designativo. Como foi que alguém um belo dia resolveu chamar essa coisa de carro, é outro estudo. Ou seja, um nome é imposto para a sociedade, e não escolhido democraticamente por cada um dos seus membros.

Só que esse princípio de arbitrariedade é muito mais extenso, porque ele vai além da mera formação das palavras. Toda a estrutura gramatical vai no mesmo sentido, em um processo de tradição das normas que, nascidas do uso, vão parar nas regras. A gramática é assim porque seu uso a consagrou, e só se modifica aos poucos, a partir da obtenção de novos consensos. Novamente, ela não nasce dos manuais, mas da tradição linguística de uma comunidade, que, aí sim, uma vez sistematizada, dá origem a uma descrição daquilo que é aceito como correto. Vejam como, neste ponto, gramática e linguística se imbricam, ou, melhor dizendo, uma dá explicação à outra.

Quando levada a níveis mais profundos, a linguística consegue perceber como a linguagem é um fenômeno social derivante de uma capacidade orgânica humana. Isso significa que organismos humanos evoluíram ao ponto de se adaptar para fazer cognições adequadas de sentidos. Um cérebro está preparado não somente para perceber correlações entre significantes e significados, mas a estabelecer coerência entre suas articulações. Pegue um cão e diga a ele uma frase bem construída ou totalmente desconexa. Você perceberá que não haverá diferença alguma em sua reação. Já um humano diferencia uma afirmação como “hoje está frio” de outra que diz que “hoje está mole”. Nesse segundo caso, a carga semântica do adjetivo precisa ser enriquecida com mais informações, senão não fará sentido. Essa característica de estranheza dispara ações neuronais que fazem com que não fiquemos meramente passivos diante da desconectividade, ainda que seja exatamente para forçar a ausência de reação.

Óbvio que a real existência de fenômenos neurais dando base para o desenrolar da linguagem não justifica ciladas que nos oferecem, como a PNL (vide), mas nos demonstra como a temática da linguística pode se tornar mais e mais profunda. Seus estudos sobre o processamento da linguagem a nível mental fazem melhorar a compreensão de como as línguas de sinais podem reproduzir cada vez melhor os mesmos signos das línguas verbalizadas, e, mais importante ainda, como os dois métodos podem identificar pontos de coincidência para interagir entre si de maneira mais eficaz. Inclusão é isso.

E qual é a relação entre Linguística e Filosofia da Linguagem? Bem, a parte filosófica está mais no âmbito dos conceitos, e isso faz com que a Linguística os use de maneira já dadas, para que se dedique mais especificamente ao aspecto científico. Assim, enquanto a Linguística estuda o que é o significado das palavras, a Filosofia já tratou de trazer a interpretação ao conceito de significado. Enquanto a Linguística traduz como os nomes traduzem objetos, a Filosofia da Linguagem já discutiu se os nomes são coisas intrínsecas aos objetos ou se são atribuições convencionais. Ou seja, a Linguística trafega pelo asfalto que a Filosofia da Linguagem pavimentou.

Essa era a pequena pincelada que eu queria trazer sobre essa especialidade tão vasta, que por vezes se confunde e se mistura com tantas outras áreas do conhecimento, pelo simples motivo de que ele, o saber, não existe sem uma linguagem que o registre e transmita. Bons ventos a todos!

Recomendação de canal:

Vou recomendar o canal da Janaísa Martins Viscardi, a Jana, que milita a um bom tempo no YouTube nessa especialidade, e que se descola do simples método professoral, trazendo discussões que pode não ser de total agrado, mas que estão no mundo, para concordar ou não.

https://www.youtube.com/@JanaViscardi

 

*Apesar de militar na Filosofia, meu ganha-pão é na área de informática.

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

O Futebol e suas diferentes filosofias: o efêmero Comercial e os motivos pelos quais deveríamos preservar melhor a História

(Como é possível um clube de futebol do centro da maior cidade da América Latina desaparecer como que por encanto?)

“É preciso esquecer para viver. A vida é esquecimento; cumpre abrir espaço para o que está por vir”.

Miguel de Unamuno

Olá!

Clique aqui para acessar a série toda

No prédio em que habito, havia uma senhorinha nonagenária, falecida faz poucos dias. Minha patroinha é quem tomava conta dela, o que as faziam relativamente íntimas. O nome dela era Madalena e parecia uma daquelas vovós fofinhas, que fazem bolinhos de chuva ao primeiro neto que aparece em sua porta, mesmo que faça sol saarauí. É um histórico ledo engano. Al di là de sua aparente fofura, tínhamos uma senhora arisca como um canário, e mal-humorada como um urso. Não à toa, ela foi bedel até os setenta anos, quando, expulsa pela sua idade regulamentar, foi aposentada compulsoriamente.

Era daquelas catoliconas ferrenhas, que viam pecado em tudo, e por isso mesmo não se dedicava a mais nada além de rezar seus incontáveis terços. Era complicado presenteá-la: qualquer livro deveria ter o nihil obstat da autoridade eclesiástica, qualquer quadro deveria ser de santidades e qualquer música deveria ser gregoriana. Aliás, por força dos vencimentos parcos, nunca se interessou por comprar um radinho de pilha sequer. E passava seus dias em silêncio, cumprindo o dela e exigindo o dos outros, o que lhe rendeu não poucas brigas, com o que era muito mal vista neste insólito condomínio. É bem verdade que ensurdeceu de uns cinco anos para cá, o que diminuiu muito a tertúlia e possibilitou um acréscimo de volume das nossas vitrolas. Ainda assim, manteve-se em solidão quase absoluta, quebrada pelos cuidados da patroa e um ou outro encontro de corredor.

Mas o mundo, em seu giro incessante, não cansa de nos trazer surpresas. Dê um livro para um cachorro. Pode ser sagrado como uma Bíblia, lírico como Camões, filosófico como Shakespeare, raro como os pergaminhos do Mar Morto. Sua reação provavelmente será mijar em cima deles, após criteriosa cafungada. É mais ou menos a mesma coisa que a dona Madalena faria com qualquer coisa relacionada a futebol, mais uma fonte de pecados originada de xingamentos, festas desregradas, interesses escusos e sexo, essa coisa criada unicamente para que se dê encaminhamento firme às hostes satânicas. Estranhamente, ela conta ter recordação de um clube na praça Clóvis, do qual não lembrava o nome, mais parecido com uma associação de moços do que propriamente com um lugar para prática desportiva. Nada muito claro, nem preciso, mas, conhecendo a figura como eu conheço, compreendo ser um prodígio. Um dia, a patroa veio me contando essa história, e achei quase impossível que a dona Madalena conhecesse o Comercial, um clube que eu mesmo só conheço pela placa da Federação Paulista.

Falei o nome, a consorte foi confirmar. “Comercial, é isso mesmo! Um antro de desocupados que só queria saber de blá-blá-blá…” e por aí afora, na voz da não-doce velhinha, lembrando-se das vezes em que cruzava com a saída dos tais desocupados do clube em questão. É provável que ela conhecesse o time pelo tanto que a perturbasse, e não por sua galhardia esportiva propriamente dita. Nem tudo no mundo é surpreendente.

Foi então que o bichinho histórico-filosófico começou a me causar coceiras. Que coisa estranha a ausência de referências sobre esse time inconsueto. As buscas na internet causavam fácil confusão com os xarás de Ribeirão Preto e de Campo Grande, bem mais famosos e ainda existentes. Pouquíssima coisa se tem sobre o time da praça Clóvis Bevilácqua, local onde hoje se pode imaginar tudo, menos um futebolzinho sendo jogado, seja pela reles população (eu incluso), seja pelo fluxo laboral. Vejo os mendigos tenteando o esporte bretão, e o término é sempre o mesmo, com rudimentos de bolas indo parar na Rangel, onde é laminada pelos pesados ônibus. As publicações que relembram o antigo escrete geralmente são mais ligadas a estatísticas de suas atuações e algumas informações pontuais: sua fundação, a cessação de participações nos campeonatos, algumas escalações, as cores do seu uniforme. Eu bem que gosto desses times pequenos, como já falei neste espaço, muito por conta do amor que meu avô tinha pelas andanças nos campos menores, mas é impraticável achar a camisa de um fantasma. Como quem não tem cão caça com papel transfer, tratei eu mesmo de produzir minha camisa do Comercial do capital, o time fantasma:

Era um time de outros tempos. Não tinha uma sede social onde se pudessem praticar treinos, fazer exercícios, ensaiar jogadas ou qualquer coisa semelhante, a não ser fazer pequenas reuniões e desenrolar um carteado. Ela literalmente capitaneado pelo capitão Oberdan de Nicola, que o comandava com mão de ferro, como sói acontecer com militares. Até dele é difícil encontrar referências. Uma pesquisa na internet indica para uma rua na Água Branca e pouca coisa a mais.

Mas a estrutura era de um time de várzea metido à besta. Não tinha um estádio, treinava onde dava e possuía somente a sede que eu mencionei mais acima, em salão alugado. Mesmo para a época em que surgiu, sua organização era amadora, somente sendo possível por força da influência política do capitão e pela desistência dos times das ligas amadoras, em um momento em que ainda não se tinha a primazia absoluta do futebol nas praças esportivas. Por conta de sua pequenez, era visto como um adversário inofensivo, e conhecido como “o mais simpático”, uma espécie de time para o qual todos reservavam alguma torcida.

O fato inescapável, entretanto, é que foi um dos fundadores da Federação Paulista. Faz parte dos onze daquela placa da Barra Funda porque possui sua importância histórica. Quer dizer… deveria ter. Não se consegue achar quase nada dele, a não ser a curiosidade de constar na placa de tantas agremiações famosas no mundo inteiro, ou de outras que ainda são ao menos encontráveis. O Comercial é uma demonstração de como somos desleixados com a nossa história, resumida pelo seu derradeiro desaparecimento.

Um belo dia, o proprietário do prédio onde ficava a última salinha que abrigava seus troféus e registros, diante da falta de pagamentos, mandou meter um pé de cabra na porta e baixou tudo em um caminhão para doar e jogar no lixo, e tudo aquilo que podia render uma parte importante da história do nosso futebol partiu irremediavelmente. Fotos, fichas, estatutos, troféus, medalhas, camisas, tudo foi para a lata do lixo da história. O que choca não é a necessidade de se resgatar o imóvel propriamente dito, mas a completa indiferença sobre o que estava indo fora. O dono nem apresenta consciência do que estava indo para o vinagre, o que o coloca como representante geral de nossa maneira de encarar o mundo. O último endereço, de onde seu espólio foi removido como escolho, é na parte morta da Sé, um prédio que faz parte da decadência geral do Centro:

Depois queremos dizer que somos o país do futebol… Mas aí vem um tipo de pergunta que pode ser incômoda: qual seria o proveito de se manter a memória de um clube como o Comercial?

A resposta óbvia não é a que eu quero dar. Dizer que conhecer o passado evita erros para o futuro é uma verdade, mas não preciso repetir isso. Só que não colocamos em prática esse ensinamento. E por que precisamos ser pragmáticos sempre? Por que precisamos de uma utilidade para tudo?

Cito um exemplo, repetido, mas proveitoso. Têm sido comuns os testes para verificação genética, não mais aqueles que afligiam os pais fugidios em programas do Ratinho da vida, mas sim os que se dedicam a rastrear as ascendências do curioso consulente, como eu. No meu resultado, não deu quase nada que eu não esperasse: um monte de genes italianos, uma parte grande de ibéricos e algumas pontinhas judaicas e árabes, comuns entre os mediterrâneos. Mas o espantoso foi uma porção meio grande de genética armênia, cujo parentesco não encontro nos meus alfarrábios. Tentando achar ainda alguma coisa com os poucos macróbios da família, não achei rigorosamente nada, a não ser o vizinho seo Poladian, detto “o turco” (sobre essa contradição, leia mais aqui). Ora, vizinhos não são parentes, e maldosamente eu poderia pensar em escapadelas da nonna, mas o tanto de armênio encontrado também não daria o percentual de neto, então culpar a avó de maldades é injusto.

A princípio, pode-se observar que, primordialmente, o propósito de um exame desse tipo nada tem de essencial para a sobrevivência ou para o conforto, a não ser conhecer os rastros genéticos de um contribuinte qualquer, mas ele fala muito mais do que meramente produzir especulações sobre a dignidade da vozinha. Em primeiro lugar, é que a extensão de um exame desses dá aspectos de saúde da pessoa que o faz, traçando um mapeamento das tendências que a predisposição genética fornece às doenças dessa categoria. E não tem como dizer que isso não é importante.

Mas a parte útil, no final das contas, pode importar menos que a parte divertida. Se eu vir que tenho uma tendência ao câncer do pulmão, lembrarei que fumei por mais de vinte anos e colocarei uma espada sobre a minha cabeça. Se eu não tiver o psicológico em dia, de repente entro em parafuso, e mesmo tendo feito todos os abusos desfavoráveis, posso terminar os dias tendo pulmões de lobo mau, enquanto minhas origens não são hipotéticas, mas reais. Entretanto, não há como não admitir que o aspecto pragmático não esteja presente.

Ora (direis), isso é jogar sujo, porque daí está se dando uma utilidade prática ao exame e está se saindo do aspecto histórico para ficar em um aspecto bem presente. Como meu insuportável interlocutor imaginário tem razão, sou obrigado a dar outro tipo de demonstração.

O curso superior de filosofia tem aspectos iguais aos de qualquer outro, composto de entusiasmo e açodamento. É comum alunos de medicina querendo clinicar, ou futuros causídicos defendendo e atacando, ou ainda aprendizes de desenvolvimento que viajam em seus notebooks tentando invadir a Nasa. Não é diferente com estudantes de filosofia, que querem aplicar respostas rápidas ao seu quotidiano, e achar soluções para os grandes problemas da humanidade como quem decide se quer pudim ou maria-mole de sobremesa. Para fazer isso, querem partir de cabeça para as temáticas que mais lhe atraem, como questões éticas, metafísicas, existenciais, e assim por diante. Todas as vezes em que isso acontece, nós damos de cara com paredes cognitivas, que são as dificuldades de compreender como algo chegou a ser como é. Eu lanço a pergunta fundamental da epistemologia e lá eu já sofro a primeira queda: temos conhecimento inato ou só aprendemos pela experiência? Se eu não voltar à história da filosofia desde o começo, eu poderei estar arrogando a mim uma conclusão que já existe há séculos, há milênios talvez. Isso acontece com a essência das coisas, a ética da felicidade, os conceitos de beleza e bem, o que é o ser humano. Não se estuda filosofia se não se estudar a história da filosofia. No máximo, o que se conseguirá fazer é papagaiar falso conhecimento, e, no mínimo, repetir conhecimento já existente.

Ok, pode-se dizer então que as grandes questões conduzem as grandes pesquisas, e ater-se a pequenos detalhes é irrelevante. Não, crianças.

Quando se olha para os primórdios da filosofia, é bastante comum encontrar informações que parecem cacos de cerâmica arqueológicos. Um pedacinho aqui, um pedacinho ali, e se projeta toda uma ânfora ou um vaso. Quanto mais caquinhos encontrarmos, melhor será a precisão do suposto artefato. Cada pequeno vestígio dá uma conformação melhor ao objeto todo, por menor que seja. Quase todos os primeiros filósofos são como esses pequenos pedaços, mas quando você olha para Parmênides, percebe que a meia dúzia de fragmentos que ele deixou é um dos pontos de inflexão mais expressivos da história da filosofia. Naqueles poucos versos que nos restaram aparece uma concepção absolutamente original sobre a metafísica das essências, aquela ideia de permanência que torna as coisas identificáveis e associáveis a qualquer tempo e em qualquer lugar. E Parmênides, com as poucas palavras que restaram de seu patrimônio, influencia a metafísica até hoje.

Não vou dizer que o Comercial teria mudado o futebol paulista se sua história fosse mais bem conhecida. Não vou dizer que haveria títulos mudando de mãos, ou que regras diferentes seriam adotadas, ou se uma lógica distinta no mercado de jogadores seria implantada. Mas a história do Comercial é tão única que nos evidencia algo muito nosso: o quanto cuidamos mal de nosso passado. Gostamos das glórias, e elas são boas, é verdade. Mas as escórias também existem, e fazem diferença. O Comercial não deveria ser tão fantasmagórico quanto é, porque lá passaram craques como Nardo, Alan, Gino Orlando e Dino Sani, este último campeão mundial em 1958, consagrado no trio de ferro da capital. Foi fundado em 1939 a partir da desistência do Luzitano em participar dos campeonatos da APEA, e estava lá quando a Federação Paulista foi fundada, participando dos campeonatos até 1961, quando a criação dos acessos e rebaixamentos colocou o time na última divisão de então. Fundiu-se por um período com o São Bento de São Caetano, e isso é tudo o que temos de sua história, porque não há mais onde buscar informações.

E, para além de qualquer utilidade, é como minha partezinha armênia, que eu sei agora existir, mas não sei de onde veio. Não me serve para nada, não fará com que eu ganhe um único dia de vida, não aumentará meu saldo bancário em um único cruzado, não mudará meu arroz-com feijão diário, mas traz tempero. Muda minha história, as histórias que contarei para meus filhos e netos, e me ensina um pouco mais sobre mim mesmo. Deveria ser assim com o Comercial, e ainda que não tenhamos mais como resgatar seu ferro-velho, que tenhamos aprendido uma lição e não deixemos de lado nossa história, para não nos lamentarmos depois e dizermos que nos mesmos fomos esquecidos. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Um curta-metragem precioso que resgata um mínimo dos registros históricos do Comercial e de alguns dos personagens que chegaram a conhecê-lo.

COMERCIAL F.C. – A EQUIPE FANTASMA. Direção: Ugo Giorgetti. São Paulo: SescTV, 2014. HD.

Este livro é uma coletânea das estatísticas do Comercial, sem grandes informações narrativas, mas com dados importantes para se compreender o tamanho do clube. Está disponível no Museu do Futebol.

DIOGI, Júlio B.; STELLA Jr, Rodolfo. Comercial: Histórico Estatístico do Comercial Futebol Clube. São Paulo, 2016.