(Já falei bastante sobre produção acadêmica por aqui. Mas e a minha? Sobre o que escrevi na minha monografia?)
Olá!
Na
última vez que fui a Curitiba, tive a sanha de conhecer uma cafeteria chamada
Café do Moço, que estava ganhando fama com certa rapidez. É o caso de uma leva
de siriris: sumiu em questão de horas, vítima de desencontros do quadro social.
Só que há males que vêm para bem. A tal cafeteria não existe mais, acontecendo
de cindir-se em duas, ambas ótimas: Rituais e Ô Barista, o que me permite
visitar não somente uma, mas duas casas de meu líquido predileto. Não ganho um
tostão de nenhuma, mas estou aberto a negociações.
A
segunda é um negócio mais de café-bar mesmo, enquanto a primeira investe em um
cardápio mais amplo e em mercearia voltada ao café, com vários métodos bastante
caros. Mas vi um que ainda não tinha tido contato, extremamente parecido com o
Hario V60, só que muito mais barato. Veio em minha mala para São Paulo, e seu
nome é Waals.
É um artefato de fabricação brasileira, o que ajuda a explicar seu preço mais convidativo. É praticamente igual ao famoso sistema V60 desenvolvido pela japonesa Hario, de quem já falei nesta postagem.
O princípio de funcionamento é o mesmo: produzir um fluxo de água espiralado para disparar um certo turbilhonamento no escoamento, fazendo-a percorrer com mais intensidade pelo pó.
O furo é maior do que o de um porta-filtro Melitta, garantindo que haverá pouca retenção de líquido, e evitando que o café seja superextraído (sinônimo de amargor).
As diferenças mais marcantes estão em aspectos de acabamento, que na Waals são menos bem cuidados, embora não gerem discrepâncias no produto final.
O restante é o formato da alça, que se emenda ao disco de apoio, e os furos laterais próximos à saída de água, o que permite observar mais facilmente o fluxo. Além do preço, esta é a única vantagem real do método com relação ao equivalente nipônico.
Nome
do utensílio: Filtro Waals 02
Tipo
de técnica: coador cônico espiral
(percolação)
Dificuldade: Baixa
Espessura
do pó: Médio
Dinâmica: um coador de papel cônico é introduzido em um
porta-filtros de fundo denteado e guias espirais, que retém as partículas
enquanto a água faz a extração do café, desembocando em um decanter ou outro
recipiente por ação da gravidade.
Resíduos: Mínimos.
Temperatura
de saída: Baixa
Nível
de ritual: médio
No
meio do primeiro cafezinho que passo nesse engenho vem meu debate mental.
É bastante discutível, no meu entender, se não há algo de errado com a
propriedade intelectual deste método, que tem tudo de igual ao seu concorrente
no que há de essencial: material, angulatura, estrutura de construção, tamanho,
capacidade e outras sutilezas. Eu sinceramente não tenho nada com isso, já que
não sei bem se a patente do original já está expirada. São coisas das
contradições do capitalismo, que reza pelo livre mercado, mas não gosta que
invadam suas propriedades intelectuais.
Meu
papo não é, entretanto, voltado a questões econômicas, mas um assunto levemente
correlato carregou minha cabeça para outra parte do universo. As cópias, no
âmbito legal e acadêmico, recebem o nome de plágio. Com inúmeros casos nos
meios artísticos, é uma prática bastante tentadora que estudantes
sobrecarregados de tarefas busquem textos já prontos para fundear seus trabalhos,
poupando a eles a trabalheira concorrente. Só que é, na verdade, um jogo sujo,
e para tentar detê-lo (ou minimizá-lo), há uma série de regras para citações e
paráfrases, consubstanciadas, aqui no Brasil, nas normas ABNT. Os orientadores
vêm com estas embaixo do braço para tocar o terror nos pobres concluintes. É
assim que tem que ser, e assim será.
Eu
já contei para vocês as aventuras e desventuras de minha monografia em um dos
meus melhores textos, este aqui,
ao qual convido a vocês, meus poucos leitores, a conhecer. Mas eu nem de perto
passei pela temática abordada, o que eu gostaria de fazer hoje, até porque ele
teve uma linha um pouco menos convencional. Acompanhem.
São
Paulo não mata ninguém de tédio – deslocar-se pela cidade é uma aventura diária.
Logo que comecei a trabalhar no centro desta Terra da Garoa, e morando próximo
à divisa com o ABC, tomei por hábito sair bem mais cedo do que precisava (já
falei sobre o caso neste
texto). Isso porque atrasos representam descontos e eu não estava podendo,
como ainda não posso. Acontece que às vezes as coisas dão certo demais, e eu
acabava chegando MUITO mais cedo do que o necessário. Sentinela na porta da
guarita quer serviço, o que me fazia ocupar o tempo do lado de fora, onde há
numerosos sebos de livros e de discos. Alguns deles faziam promoções de
bancada, que nada mais são do que pilhas de livros colocados do lado de fora da
loja, em um mostruário. A grande maioria eram livros encalhados, de pequeno
valor literário, mas o preço era tão baixo que valia a pena arriscar uma
porcaria qualquer, porque também ali apareciam coisas boas.
Em
uma dessas escavações, apareceu um livrinho de pequeno formato, com capa dura,
ainda em estado bastante razoável. Em sua capa, podia-se ler: “Giovanni
Guareschi - Dom Camilo e os Cabeludos”, com uma caricatura de um jovem rebelde
sendo repreendido por um padre. Era a péssima tradução para um livro chamado no
original italiano de “Don Camillo e i giovani d’oggi” - Dom Camilo e os jovens
de hoje. Olhei meio de soslaio e dei uma folheada desconfiada. Como a temática
do pós-guerra já aflorava logo nas primeiras páginas, acabei me interessando e
dispendi os dois reais da aquisição, para lê-lo já logo na viagem de volta.
O
fato é que eu engoli o livrinho em uma sentada só. Não se trata de literatura
rebuscada, nem de profundas reflexões filosóficas, mas é uma maneira
interessante de abordar um tema difícil e, principalmente, de modo
divertidíssimo. Isso me levou a caçar outras edições das histórias, com um
duplo resultado surpreendente: seus livros não são editados faz tempo e há
certa abundância de livros antigos nos sebos, inclusive em língua italiana. Com
isso, acabei completando a coleção de contos com a personagem Dom Camilo. É
estranho, mas justamente o último livro, aquele que li primeiro, é o mais
diferente de todos. Os primeiros são apanhados de crônicas que primeiramente
eram publicadas no periódico Cândido, uma prática muito comum na atividade
jornalística de meados do século XX, inclusive aqui no Brasil. Diante do
sucesso editorial, estas crônicas foram coligidas em filmes, que, observados
com cuidado, deixam transparecer um certo aspecto fragmentário, como naquelas
comédias de situações que não tem um grande fio condutor, tendo foco na esquete
do momento. O livro que primeiro li, já antevendo sua transposição para a
película, tem muito mais a cara de um roteiro de cinema, com capítulos mais
longos e mais encadeados entre si, além de ter claramente uma finalização
proposital. Conto isso tudo a título de curiosidade.
Em
linhas gerais, a história trata de dom Camilo, um pároco de uma pequena cidade
no vale do rio Pó, norte da Itália. Temporalmente, estamos no imediato
pós-guerra, em um dos países que mais ficou destruído durante os embates, pelo
óbvio motivo de ser um país vencido. Nas incertezas da reconstrução, ele se
debate com o prefeito comunista, Peppone, de temperamento iracundo e
voluntarioso. O próprio dom Camilo é um símbolo da oposição de forças, sendo
descrito como um armário de portas abertas e mãos semelhantes a enxadas, mas
que se deixa derreter indefeso por um simples furto de bicicleta. Esses dois
protagonistas vão se debater incessantemente por toda a narrativa, ora brigando
por uma nova via social, ora resgatando antigos valores, geralmente se ameaçando
mutuamente com excomunhões e expurgos, além, é claro, de uma boa dose de vias
de fato.
Eu,
sem dúvida, fui influenciado na minha simpatia pela minha própria infância,
quando via meu avô fazer debates acalorados com o padre Antônio, então pároco
da freguesia onde eu habitava, e que, de certa forma, se assemelhavam a esse
mote. O velho era ateu convicto, e gostava muito de espezinhar o padre quando o
trombava pelas cercanias. "Eh, padre… com saudades do titio?". Essa
pergunta se dava maldosamente por causa do sobrenome do sacerdote, Franco.
Fazia isso porque o generalíssimo Francisco Franco aderiu às causas fascistas
de Mussolini e Hitler e lhes fazia coro, embora a Guerra Civil Espanhola tenha
sido suficiente para que a Espanha não tivesse forças de fazer alinhamento
explícito na guerra. Francisco Franco era o típico ditador que usava uma
pretensa religiosidade para agregar em torno de si a opinião pública assustada
com a ameaça vermelha*. Em troco de se proteger uma religião, faz-se tudo o que
é contrário a ela, com repressões violentíssimas.
Era
uma brincadeira de todo injusta, embora carregasse um certo sentido. O padre
Antônio era jovem, saído direto do sínodo de Medellín**, com os novos ares do Concílio
Vaticano II, que queria mudar os trilhos da igreja – sua função social deveria
ir além das rezas. Ele instalou uma CEB na paróquia e, a custo, montou uma
escolinha nos fundos da igreja, aventura narrada neste
texto. Acontece que meu avô era daqueles que dizia que o mundo só valeria a
pena quando o último padre se enforcasse nas tripas do último político***, e a
provocação era mais para levar a discussão para o balcão de um boteco. O padre
Antônio compreendia que também lá, entre as garrafas de cerveja, havia suas
ovelhas.
Mas
como o simpático padre e seu furioso oponente foram parar na minha monografia?
Bom… na faculdade de Filosofia, nós temos aulas de Iniciação Científica e de Metodologia
de Pesquisa, que visam abastecer o aluno com conhecimentos suficientes para
produzir academicamente, e o Trabalho de Conclusão de Curso, vulgo TCC, é a
prova de fogo para a averiguação da suficiência formal do aluno. Ocorre que nem
só de forma o TCC viverá, mas de todo conteúdo que vier da pesquisa do
discente. Isso quer dizer que não adianta estar tudo direitinho como mandam os
cânones normativos, mas é preciso que, além do ineditismo e originalidade, o
trabalho tenha base e serventia, embora instituições menos sérias não prezem lá
muito pela qualidade do que se apresenta. E, para conseguir isso, é preciso
consciência do longo caminho a ser trilhado.
A
primeiríssima dica do mestre de Iniciação era escolher um tema que o aluno
amasse, de modo que os percalços da pesquisa não gerassem desânimo, já
consciente de que ele baterá às portas. Por isso, a grande maioria dos colegas
normalmente escolhia um filósofo com os quais se apetecesse e fechasse o foco
para um aspecto específico de seu pensamento. Há uma armadilha nesse rumo. Se
eu quiser falar, digamos, na vontade de potência de Nietzsche, encontrarei
milhares de artigos que tratam do mesmo assunto. Se eu quiser sustentar a
temática, talvez eu chegue a uma abordagem que tente ser tão original que acabe
por escapar do assunto, estragando a proposta. Por esse motivo, saí do sentido
filósofo-tema e caminhei para o sinal inverso, só que a partir da linha-mestra
dada pela obra do escritor italiano. O objetivo era ter o tema pós-guerra, mas
não seguindo o fluxo de um livro de história, e sim das crônicas de Guareschi.
O
título da minha monografia foi "Religião e Política na Itália do
Pós-guerra: A Visão da Literatura de Giovanni Guareschi". Girei por todos
os ciclos necessários, apresentando o autor em breve biografia, descrevendo
minuciosamente o contexto histórico e fornecendo até circunstâncias geográficas
necessárias à boa compreensão do trabalho. Minha ideia era produzir um texto
que conseguisse ser agradável de ler ao mesmo tempo em que cumprisse todos os
rigores acadêmicos. O segundo objetivo foi claramente atingido, dada sua
aprovação e franqueamento à publicação. Já com relação ao primeiro, volta e
meia o recupero para dar uma lida, e constatar se ainda me produz o mesmo
encantamento de outrora. Por enquanto, tem dado certo.
Algumas
referências são óbvias. Como falei de confrontos políticos tendo de um lado o
comunismo e do outro a democracia cristã, explorei muito Marx, Engels, Gramsci
e as encíclicas papais voltadas para a doutrina social da igreja. Outro aspecto
de que tratei foi a laicização cada vez maior da sociedade, o que ocasionou
debates antes impensáveis, quando a política, especialmente na Europa
ocidental, não passava sem o crivo sacerdotal. Mas o objeto ia além disso,
porque a forma como Guareschi tratava de seus assuntos incluía muito uso do
humor, então discorri também sobre o efeito psicológico da ironia e da paródia,
no que lancei mão de gente como Freud e Lacan. A hipótese básica foi: o humor popular é uma ferramenta para contar a História? Foi um belo trabalho, modéstia à parte.
Eu
gostaria de liberá-lo para a leitura de vocês, meus corajosos leitores, mas
ainda não desisti por completo da ideia de utilizá-lo em um mestrado, e, por
esse motivo, preciso manter seu ineditismo. Garanto que me mantive mais
comportado do que muita gente com relação a plágios, até mesmo em propriedades
intelectuais que nem sempre me parecem
grandes argumentos para impedir o conhecimento. Bons ventos a todos!
Recomendações:
Como
já mencionei outros livros de Guareschi nesta casa, segue mais uma recomendação
de livro típico, que dá uma boa amostra do que levei em conta para meu
trabalho.
GUARESCHI,
Giovanni. Dom Camilo entre o Diabo e a
Água Benta. Rio de Janeiro: Record, 1981.
Outra
recomendação é o pacote de normas técnicas que dizem respeito à produção
acadêmica. Os sites de universidades costumam tê-las, e são as seguintes, em
ordem numérica:
NBR6022:
Apresentação de artigos em periódicos
NBR6023:
Referências bibliográficas
NBR6024:
Numeração das seções
NBR6027:
Sumário
NBR6028:
Resumos
NBR6034:
Índice
NBR10520:
Citações
NBR12225:
Lombadas
NBR14724:
Apresentação dos elementos
NBR15287:
Estrutura do projeto de pesquisa
*
Qualquer semelhança com os estranhos dias atuais não é mera coincidência
**
As conferências episcopais da América latina são realizadas de tempos em
tempos. A última, realizada em Aparecida, foi de uma inocuidade de dar pena,
mas a de Medellín propôs uma igreja integrada à realidade de desigualdade
social que, de fato, teve efeitos práticos no meio da sociedade. Até a chegada
de João Paulo II e a volta do conservadorismo na igreja.
***
Há muitas variações possíveis: o mundo só será mais mundo quando o último
político se enforcar nas tripas do penúltimo, quando o último padre se enforcar
nas tripas do último pastor e via
discorrendo.
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