“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua
origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender e,
se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.”
(Mandela)
“A explosão não vai acontecer hoje. Ainda é muito cedo... ou tarde
demais. Não venho armado de verdades decisivas. Minha consciência não é dotada
de fulgurâncias essenciais. Entretanto, com toda a serenidade, penso que é bom
que certas coisas sejam ditas. Essas coisas, vou dizê-las, não gritá-las. Pois
há muito tempo que o grito não faz mais parte de minha vida.”
(Frantz Fanon)
Olá!
Não posso deixar de enfrentar a notícia da morte de Nelson
Mandela. É um dos homens mais importantes do nosso tempo.
Não vou aqui me deter em relatos pungentes, podem ficar
calmos. Também não vou contar em detalhes toda a retrospectiva de sua longa
vida. A grandeza de Nelson Mandela se resume, paradoxalmente, a algo muito
simples, muito fácil de compreender. Quando ele foi eleito presidente da África
do Sul, o principal temor residia na arquitetura de um projeto de vingança, em
que os brancos, minoria numérica, poderiam transformar-se também em minoria
excluída.
(Rapidíssima explicação sobre o apartheid, destinada aos mais jovens: foi um regime de segregação
racial que perdurou de 1948 a 1994 na África do Sul, quando a minoria branca
governante – descendentes de ingleses e holandeses – estabeleceu uma divisão
formal entre as diferenças raças existentes no país, incluindo a
impossibilidade de casamentos inter-raciais e a criação de áreas específicas
para moradia, com as piores destinadas aos negros. Inúmeros direitos eram
reservados aos brancos, como o voto para as instâncias superiores do poder e o
emprego público. Tudo era dividido. Havia ônibus, trens, ambulâncias,
hospitais, escolas, bibliotecas para brancos – sempre melhores – e para negros.
O descumprimento das regras sempre terminavam em cadeia ou sjambok, o temível chicote utilizado pela polícia).
Mandela conseguiu restabelecer os direitos dos negros sem
que, com isso, a minoria branca fosse execrada no país. Sua palavra de ordem se
baseou na reconciliação, o que tornou a iniciativa de reformas que
distribuíssem renda aos mais pobres muito mais lenta do que se podia imaginar,
mas, de toda forma, conseguiu que isso fosse feito de maneira plenamente
democrática, e evitou confrontos que poderiam levar à guerra civil.
Ou seja, Mandela brindou a humanidade com algo raríssimo:
inteligência.
Mas, se Mandela foi um homem de ação, que soube por em
prática um projeto de reconstrução de toda uma etnia, é bem certo que ele
também soube captar os ensinamentos de um outro negro, um grande intelectual,
um tanto quanto menosprezado nos meios acadêmicos, mas que figura como um dos
maiores pensadores da segregação racial. Seu nome: Frantz Fanon.
Frantz Fanon foi um médico e psicanalista francês, nascido
na Martinica, situada no Caribe. É uma província ultramarina francesa, com a
predominância populacional de descendentes de escravos africanos. Na juventude,
foi participar da Segunda Guerra Mundial, na campanha de libertação da Argélia.
Daí, foi à França estudar, onde tomou contato com os literatos da chamada Négritude, além de se transformar em um
fã de Jean-Paul Sartre, o papa do Existencialismo, de quem recebeu influências
(e depois influenciou). Ele falava com a rara autoridade de quem, a despeito de
sua cor, conseguiu se inserir no meio acadêmico.
O principal núcleo de seu ideário reside na Psicopatologia
da Colonização. Diante de sua vivência em uma terra colonizada há séculos, e
das viagens que fez a outros países em igual situação, fez a constatação de que
o racismo não é simplesmente uma atitude de exclusão adotada por uma
determinada classe dominante, mas uma estrutura que habita o cerne da máquina
social, com evidentes reflexos psicossociais.
A dominação age em nível psicológico. O mundo perfeito é
apresentado aos negros como uma dádiva concedida aos homens brancos. Esta
condição é interiorizada de tal modo que ganha o estatuto de verdade, por mais
incômodo que possa ser. A mais famosa frase de Fanon diz que só há um destino para o negro, e ele é
branco. Ou seja, o negro deve reconhecer sua condição de inferioridade
econômica, social, territorial e principalmente cultural, e deve desejar que a
solução para essa inferioridade seja a transformação de suas características,
para que se assemelhe cada vez mais ao europeu.
Isso traz à luz uma visão psicológica inédita da questão do
racismo. Fanon entende que é racista aquele que reconhece a hierarquia das
raças, esteja ele no polo ativo, que reprime e impõe sua cultura como superior,
esteja ele no polo passivo, que reconhece e aceita a condição de inferioridade.
Isso significa que também o negro é racista, mas de uma forma muito mais
dolorosa: aceita sua própria dor, entende a si mesmo como um ser que deve
buscar um aperfeiçoamento desvinculando-se de suas raízes. Ser racista, em
suma, é reconhecer a existência de raças.
Isso tudo acontece porque o europeu, em sua sanha de
conquista e de colonização, possui uma patologia que Fanon vai chamar de
“complexo de autoridade”. Trata-se de uma síndrome que “obriga” o homem branco
a titular todos aqueles que não se encaixam em seu padrão civilizatório. Não há
um ser humano do outro lado da relação, há alguém diferente. Mas não é uma diferença
meramente cultural, em que é possível se estabelecer uma dialética positiva.
Para o branco europeu (e todos os outros brancos, não nos enganemos), a
hierarquia das etnias é uma realidade posta, incontestável. Basta que se
verifique o avanço tecnológico e o progresso científico de cada nação para que
se dê essa conclusão. Há, portanto, uma relação de colonização que tem o véu de
ser natural (e, em um passado mais remoto, divina), devendo ser admissível por
todas as partes envolvidas, esteja na situação em que estiver.
Desse complexo de autoridade, teremos uma derivação
psicológica muito cruel. O ser colonizado, como sói acontecer, é extremamente
vigiado. Tem seus costumes desnaturados, na forma de repressão, que,
evidentemente, vão transpor suas barreiras físicas e atingir seu inconsciente.
Como deve recalcar seus desejos, estes ficam represados e esperando a
oportunidade para extravasar. As ocasiões para dar essa vazão são raras, e vão
sendo introjetadas cada vez mais, até o ponto em que o mecanismo psíquico perde
os seus sustentáculos e acabam por explodir, de forma violenta. O colonizado
poderia voltar essa violência contra seu dominador, mas este se encontra
guarnecido; tem armas, tem poder, tem dinheiro. Conclusão: o colonizado
sujeitado volta toda essa violência em seu próprio gueto, contra si mesmo. É um
processo de auto-destruição, que pode ser visto nos índices de criminalidade
dos bairros mais pobres. Como a estrutura racista se alimenta de fatos que
deponham contra a etnia que quer dominar, o negro ganha mais um estatuto, o de
violento, inadequado para a vida em sociedade.
Nosso caro filósofo, como eu disse anteriormente, teve
contato na França com um movimento denominado négritude, que tinha entre seus líderes os escritores Aimé Césaire,
igualmente martinicano e Léopold Senghor, senegalês. Estes intelectuais negros
eram defensores de que a cultura africana era suficientemente rica para
construir uma contraposição à cultura europeia. Para levar esta ideia a cabo,
era necessário trazer evidências das melhores características do pensamento
negro. Para eles, à razão sistemática das escolas europeias, em sua maioria
calcada no distante logos grego, era
preciso demonstrar que o substrato da intelectualidade e do modus vivendi da África era fundeada pela
emotividade. O caso aqui não é de negar a natureza impulsiva do africano, mas
de confirmá-la. O negro deve se estabelecer como diferente do branco, e não
baixar a cabeça diante da dominação.
Fanon tinha uma visão oposta a esta. Para ele, movimentos como
o Négritude nada mais fazem do que
repetir a ação do homem branco. Não à toa, esse movimento foi a base
intelectual para os movimentos de independência das diversas colônias da
África, sempre levadas a termo de forma sangrenta, porque contrapunham duas forças
sem possibilidade de conciliação. Com isso, a diferença sempre irá persistir. O
próprio termo “negro” é uma invenção do colonizador para colocá-lo em situação
passiva. É como se existisse um organograma onde devemos dar nome às
“caixinhas”, e partir para o confronto aberto, ainda que seja uma reivindicação
justa, fará apenas com que se troquem os nomes no organograma. Parafraseando
Sartre, negro é aquele que os outros
chamam de negro. Para Fanon, não há negros, nem brancos; o que existem são
seres humanos. Eles querem e devem ser reconhecidos como tal, e ponto. Dividi-los
e classificá-los sempre vai estabelecer uma posição de guerra mútua, porque
nessa relação não se conhece respeito mútuo.
Fanon está, em meu entender, no mesmo nível do citado
Mandela ou de Gandhi, por exemplo. Há uma novidade em seu pensamento que
poderia diminuir o sofrimento dos povos sem que se derrame milhões de litros de
sangue. Pensem bem: não está hoje em dia a ciência chegando à conclusão de que
raças não existem, de que são conceitos criados a partir de uma ideia não
experienciável? Pois bem, Fanon já tinha detectado isso há muito tempo atrás...
Comecei este texto com o início do livro que recomendo logo
abaixo. Encerro-o com sua conclusão, de forte sabor existecialista. É um pouco
longo, mas vale muitíssimo a pena. Sejam pacientes e procurem lê-lo:
Desperto
um belo dia no mundo e me atribuo um único direito: exigirdo outro um
comportamento humano.
Um
único dever: o de nunca, através de minhas opções, renegar minhaliberdade.
Não
quero ser a vítima da Astúcia de um mundo negro.
Minha
vida não deve ser dedicada a fazer uma avaliação dos valores negros.
Não
há mundo branco, não há ética branca, nem tampouco inteligência branca.
Há,
de um lado e do outro do mundo, homens que procuram.
Não
sou prisioneiro da História. Não devo procurar nela o sentido do meu destino.
Devo
me lembrar, a todo instante, que o verdadeiro salto consiste
em introduzir a invenção na existência.
No
mundo em que me encaminho, eu me recrio continuamente.
Sou
solidário do Ser na medida em que o ultrapasso.
E
vemos, através de um problema particular, colocar-se o problema da Ação.
Lançado neste mundo, em determinada situação, “embarcado”, como dizia Pascal,
vou acumular armas?
Vou
exigir do homem branco de hoje que se responsabilize pelos negreiros do século
XVII?
Vou
tentar por todos os meios fazer nascer a Culpabilidade nas almas? A dor moral
diante da densidade do Passado? Sou preto, e toneladas de grilhões, tempestades
de pancada, torrentes de escarro escorrem pelas minhas costas.
Mas
não tenho o direito de me deixar paralisar. Não tenho o direito de admitir a
mínima parcela de ser na minha existência. Não tenho o direito de me deixar
atolar nas determinações do passado.
Não
sou escravo da Escravidão que desumanizou meus pais.
Para
muitos intelectuais de cor, a cultura europeia apresenta um caráter de
exterioridade. Além do mais, nas relações humanas, o negro pode se sentir
estrangeiro ao mundo ocidental. Sem querer bancar o parente pobre, o filho
adotivo, o bastardo rejeitado, o negro deve tentar avidamente descobrir uma
civilização negra?
Não
quero, acima de tudo, ser mal compreendido. Estou convencido de que há grande
interesse em entrar em contato com uma literatura ou uma arquitetura negras do
século III a.C.. Ficaríamos muito felizes em saber que existe uma
correspondência entre tal filósofo preto e Platão. Mas não vemos,
absolutamente, em que este fato poderia mudar a situação dos meninos de oito
anos que trabalham nas plantações de cana da Martinica ou de Guadalupe.
Não
se deve tentar fixar o homem, pois o seu destino é ser solto.
A
densidade da História não determina nenhum de meus atos.
Eu
sou meu próprio fundamento.
É
superando o dado histórico, instrumental, que introduzo o ciclo de minha
liberdade.
A
desgraça do homem de cor é ter sido escravizado.
A
desgraça e a desumanidade do branco consistem em ter matado o homem em algum
lugar. Consiste, ainda hoje, em organizar racionalmente essa desumanização.
Mas, eu, homem de cor, na medida em que me é possível existir absolutamente,
não tenho o direito de me enquadrar em um mundo de reparações retroativas.
Eu,
homem de cor, só quero uma coisa:
Que
jamais o instrumento domine o homem. Que cesse para sempre a servidão do homem
pelo homem. Ou seja, de mim por um outro. Que me seja permitido descobrir e
querer bem ao homem, onde quer que ele se encontre.
O
preto não é. Não mais do que o branco.
Todos
os dois têm de se afastar das vozes desumanas de seus ancestrais respectivos, a
fim de que nasça uma autêntica comunicação. Antes de se engajar na voz
positiva, há a ser realizada uma tentativa de desalienação em prol da
liberdade. Um homem, no início de sua existência, é sempre congestionado,
envolvido pela contingência. A infelicidade do homem é ter sido criança.
É
através de uma tentativa de retomada de si e de despojamento, é pela tensão
permanente de sua liberdade que os homens podem criar as condições de
existência ideais em um mundo humano.
Superioridade?
Inferioridade?
Por
que simplesmente não tentar sensibilizar o outro, sentir o outro, revelar-me
outro?
Não
conquistei minha liberdade justamente para edificar o mundo do Ti?
Ao
fim deste trabalho, gostaríamos que as pessoas sintam, como nós, a dimensão
aberta da consciência.
Minha
última prece:
Ó meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona!
Recomendação de leitura:
É comum encontrarmos leituras sociológicas e políticas dos
motivos e dos efeitos do racismo. Fanon dá uma alternativa psicológica bastante
interessante, que compensa muito conhecer. Sugiro sua obra-prima para entender
melhor seu pensamento.
FANON, Frantz. Peles
negras, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008.