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sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Sobre diferenças e indiferença

Olá!

O que te faz ser único? O que determina que você seja José, e não João? Qual a característica que faz com que você não seja apenas mais um, uma cabeça indistinguível dentro de uma estação de metrô lotada?

Qual é o seu distintivo? Talvez seja algum traço físico – cabeça grande, pé pequeno, nariz torto, boca fina, pescoço grosso, bunda redonda, pernas arqueadas, peito de pombo, cicatriz de vacina, dente saltado, orelha de abano, tudo isso junto ou nenhum dos anteriores.

Mais especificamente, talvez seja seu cabelo – curto mas cobrindo as orelhas, curto e sem cobrir as orelhas, comprido com rabo de cavalo, com modelito mullet (argh!), com modelito chanel, com modelito pigmalion, com mecha branca, com mecha azul, com mecha verde, com mecha multicor, meio baixo, muito baixo, baixíssimo, sem cabelo, com cabelo só onde a natureza manteve, um deles ou vários deles.

Talvez seja algum hábito – colecionar selos, colecionar chaveiros, colecionar decepções, juntar figurinhas, trocar figurinhas, trocar confidências, romper confianças, falar mal dos outros, falar bem dos outros, falar pouco, falar muito, falar nada, olhar pelo buraco da fechadura, jogar papel no chão, ler jornais nas bancas, consultar tarólogos, ouvir música MUITO alto, beber, não beber, sonhar acordado, falar sozinho, sentar no chão, andar descalço – isso, aquilo e isso mais aquilo.

Talvez seja alguma neurose – medo de altura, medo de barata, medo de ladrão, medo de cruzamentos, medo de macumba, medo de gato preto, medo de fogo, medo de água, medo de sentir medo, mania de grandeza, complexo de inferioridade, síndrome do pânico, transtorno obsessivo-compulsivo, bipolaridade, caquexia, caduquice, hiperatividade – um ou muitos.

Talvez seja sua história – um troféu de futebol de salão, o primeiro (ou último) aluno da sala, membro de uma turma de boteco, uma expulsão da escola; um, dois, três, quatro, cinco casamentos; um, dois, três, quatro, cinco divórcios; um, dois, três, quatro, cinco filhos; uma glória pequena seguida de uma grande decepção (ou vice-versa), um bom emprego com um mau salário (existe?), um vício deixado de lado, uma colisão de carro, um livro escrito e esquecido na gaveta, um diploma que nunca veio, um diploma que não serviu para nada – ou outra coisa qualquer.

Talvez seja alguma roupa, principalmente fora de moda – uma camiseta preta com estampa gasta, uma camisa de flanela com os pulsos abertos (metáfora?), uma bermuda cheia de bolsos e vazia de dinheiro, um top que mais parece uma gravata borboleta, uma saia estilo Janis Joplin, um boné virado para trás, uma jaqueta de couro surrada, uma jaqueta de couro novinha, uma jaqueta de couro que não é de couro, uma corrente no pescoço, uma corrente no braço, uma corrente no tornozelo, uma corrente na cintura, uma meia de lã xadrez, um tênis branco sujo, um tênis preto limpo.

Talvez seja uma tendência política: você pode ser de esquerda, de direita, de centro, anarquista, comunista, fascista, democrata cristão, democrata ateu, liberal, conservador, radical, municipalista, federalista, republicano, monárquico – ou não ligue para nada disso.

Talvez seja algum gosto. Talvez você goste de animais.

Seja lá o que for, estas pequenas características constituem o que cada um de nós efetivamente é. Não adianta acharmos que somos tão personalizados a ponto de nos formamos exatamente como queremos, sem influências externas. Devemos ter consciência de que nossa formação de caráter se dá, ainda que involuntariamente, por nossos gostos e preferências, além das influências do meio. Isso se chama aceitação. E é exatamente isso que nos aproxima das pessoas, quando a amizade é desinteressada. O que temos de diferente é que nos torna marcantes. E isso se chama individualidade.

Falei, logo acima, que você talvez goste de animais. Se você gosta mesmo, é uma característica que julgo nobre. A humanidade tripudiou tanto da natureza que hoje a ecologia está na pauta de qualquer tipo de negociação que se faça a nível planetário. Os homens, de tão decantada racionalidade, agora precisam inverter a lógica da dialética entre destruição e preservação por um motivo muito simples: é uma questão de sobrevivência da espécie. Os homens, a duras penas, descobriram que a natureza não foi posta sob seu jugo, mas sob sua tutela. E os homens se viram agora diante de uma encruzilhada: ou cuidam do ambiente, da natureza, de seus ecossistemas, ou passa a contar os anos, os dias e as horas para que o mundo se torne inabitável.

Se você gosta de animais, talvez seja considerado um chato, quase um fanático. Já falei sobre o tema aqui. Há extremistas, é verdade; há gente que não se conscientiza de que, ao mesmo tempo em que defende a natureza, ajuda a queimar algumas toneladas de combustível fóssil, o que tira um pouco da legitimidade da causa. Mas somos humanos em constante aprendizado; e aprendemos que é preciso estabelecer uma relação de real respeito com a natureza, de troca mesmo. Temos cérebro, coloquemo-lo em funcionamento. Uma humanidade que produziu maravilhas como aviões e televisores é capaz de desenvolver formas não agressivas de exploração do ambiente.

Se você gosta de animais, certamente gosta dos lugares onde eles são bem acolhidos. Esse é um distintivo destes lugares, e, assim como as características das pessoas as atraem mutuamente, também os locais tem seus atrativos particulares. Quem gosta de pintura, gosta de galerias; quem gosta de filmes, gosta de cinema; quem gosta de futebol, gosta de estádios.

Desde o começo deste ano, os animais não são mais bem vindos na igreja do padroeiro da ecologia, São Francisco de Assis. O que a fazia distinta, o que a diferenciava das demais, não existe mais. Dizem que o povo não conhece a fundo a história de São Francisco. O que eu sei é que seu nome sempre esteve ligado aos animais, às plantas, à alegria de viver. Não vejo nada mais franciscano do que um pequeno frei, vestido a caráter, tocando uma gaita para as criancinhas, fazendo-as admiradas no encanto simples de ser feliz com o pouco que se tem. As representações de São Francisco sempre incluem um pombo num ombro, um lírio na mão, um cervo e um lobo apascentados ao seu lado, um convívio integrado; mais que isso: um retorno à pureza infantil, a um coração livre da culpa. É isso que eu sei, e é isso que eu entendo. Não sou um doutor nem teólogo, sou só um professor de Filosofia, que neste momento não ensina nem filosofa, apenas opina. Por isso posso estar errado. Mas é isso o que eu intuo, na condição de ser humano. É isso o que me foi ensinado, desde muito pequeno.



O distintivo desfeito estabelece que não há mais diferencial. E, se este não existe, se não há mais diferença, infelizmente só resta a indiferença.

Recomendação de leitura:

Para conhecer um pouco das histórias que se contam sobre São Francisco de Assis, é recomendável ler suas “florzinhas”, a disposição no seguinte endereço eletrônico:

SÃO FRANCISCO. I Fioretti. Disponível em: <http://www.procasp.org.br/subcapitulo.php?cSubcap=58>

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