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quinta-feira, 27 de novembro de 2025

O café filosófico do quotidiano – versões não são inocentes (ou: os 50 anos de Wish You Were Here, um capolavoro atemporal)

(Surfar no sucesso de uma música pode esconder tanta coisa que não vale a pena fazê-lo)

“Bem-vindo, meu filho, bem-vindo à máquina. Com o que você sonhou? Tudo bem, nós te dissemos com o que sonhar”

Roger Waters

Olá!

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Vivemos em um mundo onde o primado do indivíduo tem resultado em pessoas que vivem cada vez mais sozinhas. Isso é um problema em si mesmo? Para mim, é, principalmente levando em conta que eu tinha uma família grande, que eu estudei em escola pública, que eu trabalhei em firmas grandes, que eu tenho costumes de grandes espaços, especialmente nos campos de futebol da vida. Mas hoje em dia, nossas redes de dependências têm se tornado mais optativas do que obrigatórias, e como há momentos em que o melhor é estar só de fato, as pessoas lançam mão de subterfúgios para compensar as ausências físicas, redes sociais à frente.

Isso leva a uma redução nas coisas da vida, nas dimensões e nas quantidades. Apartamentos de 20 metros quadrados são suficientes, modas minimalistas tornam desnecessárias grandes coleções de pratos, copos e talheres; carrinhos 1.0 que carregam uma mochila são mais do que suficientes, isso quando não se lança mão de motos. E há o café.

Esta minúscula cafeteira de uma dose só tem uma historinha por trás dela. Eu estava em um daqueles chatíssimos eventos de lançamento de uma determinada plataforma de antivírus, que apresentam maravilhas que te salvaguardarão de qualquer ameaça virtual através de um appliance assim-assado e etc. Sabemos que essas coisas nunca batem com a realidade, mas tenho que admitir que uma coisa foi inesquecível: um café da tarde de cinema, com quantidade e qualidade a toda prova, daqueles de fazer um monge arregar. Como souvenir, um artefato relacionado - um minicafeteira individual.

O utensílio é simples, bonito e funcional. A mesma tampa que lhe protege é o porta-copos que recebe a xícara. Esta, por sua vez, é um recipiente de vidro, que é muito mais agradável do que o esperado copinho de plástico. Óbvio que há uma logomarca impressa, mas, como não ganharei centavo, vou mantê-la oculta.

O coador é uma tela de metal que recobre o fundo do filtro, e, uma vez montado, não passa de dez centímetros de altura, resolvendo muito bem os supostos problemas de armazenamento em um canto de trabalho ou estudo, por exemplo.




Nome do utensílio: Conjunto de dose única

Tipo de técnica: percolação

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Média/grossa

Dinâmica: O conjunto é multifuncional, e deve ser montado na ordem certa. A tampa superior deve ser virada para despejo do pó, e o liquido deve ser vertido aos poucos até o limite do filtro, para não extrapolar a capacidade da xícara abaixo.

Resíduos: Médios

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: Baixo

Ideal para hoje, quando estou sozinho em casa. Isso é raro, mas a patroa precisou sair cedinho e eu estou com pouco ânimo, demandando a energia que a cafeína me propicia. Só que enquanto escoo meu cafezinho, dou-me conta de que chegou gente nova no segundo andar. Nem faz tão pouco tempo assim, mas é hoje que eles se dão a perceber, da pior maneira possível: um rádio com uma música alta o suficiente para perfurar a parede do horizonte de fundo sonoro. Se você viesse com um decibelímetro, acharia que os limites do conforto estariam longe de ser vazados, mas a questão é de conteúdo, e não de volume. Pelo vitrô da cozinha, começam a subir os acordes de uma música conhecida - Wish You Were Here. Mas em versão sertaneja.

Não vou perder nem dois minutos tentando saber quem canta, porque eu já o odeio, sem que nem ao menos eu lhe deduza o rosto. Recaio no mesmíssimo fenômeno que já descrevi neste texto, com os mesmos efeitos físicos e psicológicos. O incômodo, já natural em mim, é multiplicado por mil por conta do vilipêndio. Quem faz essas versões não sabe (e está cagando para saber) o que está modificando. Embora não haja a menor perspectiva de que eu esteja mudando o mundo, sinto uma espécie de obrigação em me manifestar, e vou tentar explicar que tipo de pérola estão atirando aos porcos.

Começamos desagravando. Meus vizinhos não estão cometendo crimes, nem praticando pecados, nem perpetuando comportamento sem ética. Eles estão curtindo o que gostam e isso basta para eles. A questão se limita a mim mesmo, e, se quero deixar claro o desconforto, devo explicá-lo. Balizados estamos, andiamo avanti.

Já pronunciei uma pincelada daquilo que me aprofundarei neste texto. Nominar o que consideramos como arte é problemático, o que não impede de existirem fronteiras mensuráveis pelo esforço e pela técnica, sendo esses critérios um pouco mais objetivos. Mas arte não é só isso, e tem muito a ver com a relação pessoal que temos com o mundo. Artistas inovadores costumam quebrar a cara várias vezes, porque fugir de padrões nunca é confortável para grandes públicos. Revisitar arte já existente, portanto, dá a vantagem de apostar na certeza, mas também forja um aspecto de preguiça, embora haja sempre o argumento da homenagem. Certos bustos de jogadores consagrados demonstram que homenagens nem sempre pode ser uma boa ideia*, mas não há problemas em fazer covers e versões de músicas consagradas. Só que é preciso, salvo melhor juízo, saber onde se está tocando. Daí para frente, a decisão é sua.

Mas de onde vem tanta deferência por uma música e a revolta pela sua execução fora do círculo original? Aí, vai ter que ter história, porque é justamente todo o seu pano de fundo que dá sentido a isso tudo. Vou tentar alongar e cortar um monte de detalhes.

O Pink Floyd é uma banda que nasceu no contexto da psicodelia dos fins dos anos 60. Como tal, inseriu-se na mesma mecânica que seus parceiros de movimento, o que inclui muita pesquisa sonora, temas pouco convencionais e experimentação de todo tipo, em especial a abertura química das portas de percepção. Em outras palavras, no consumo de drogas psicoativas, principalmente alucinógenas. E, aqui, imperava o ácido lisérgico. Com efeitos psicotrópicos descobertos em 1943, chegou ao seu auge duas décadas depois, quando, sob impulso de efeitos psicoterápicos, espalhou-se pela classe artística, sob argumento de percepção sensorial mais aguçada e consequente incremento criativo.

Como em tudo na vida, há os famosos dois lados. Se por um lado a derrubada dos bloqueios mentais fazia com que a criatividade ficasse a mil, por outro, fígados e cérebros eram detonados pela substância pouco compatíveis com eles. E ao lado da explosão criativa, vinha o fim de feira orgânico. É aqui que vamos falar de Syd Barrett.

Este guitarrista e compositor era o líder do Pink Floyd, e suas composições falavam de um tempo e de um espaço criados a partir da confusão mental, como em See Emily Play, ou dimensões siderais exóticas, como em Astronomy Domine, dentre outras maluquices. Estas músicas estão em The Piper at the Gates of Down, primeiro álbum da banda e o único gravado sob sua liderança. O sucesso deste disco levou a banda a uma infinidade de shows, mas o excesso de consumo de substâncias rapidamente demonstrou seu efeito devastador na mente de Syd. O seu comportamento esquizofrênico lhe causava longos períodos de catatonia, o que, no palco, resultava em momentos de paralisia enquanto o show se desenrolava. Esse, inclusive, foi o motivo pelo qual foi chamado um segundo guitarrista, David Gilmour. Sem horário, sem comunicação e errático, se tornou um empecilho ao bom funcionamento da banda. Com isso, Syd passou a ser figura decorativa nos palcos, até chegarem à conclusão de que ele era um peso morto, e o excluíram em definitivo, mesmo tendo pensado inicialmente em deixá-lo a cargo das composições.

Como sabemos, o sucesso veio retumbante, em especial após o álbum The Dark Side of the Moon, até hoje uma obra-prima da música contemporânea, daquelas que até os mais empedernidos metaleiros respeitam. Isso trouxe um problema para a banda, daqueles bons: criar uma obra que o sucedesse com dignidade. No começo, pensaram em partir para a ignorância, com uma experimentação ainda mais intensa, cheia de efeitos sonoros e sons extraídos do ambiente, como tão bem fazia Hermeto Paschoal, mas acabaram trabalhando em pesquisas de palco, sentindo o que assentava bem com o público e sem um destino muito certo. Durante essa fase de construção, com sérios bloqueios criativos e sem uma linha clara a seguir, receberam a visita inesperada de Syd Barrett no estúdio, quase sete anos depois de seu último contato, muito gordo, inteiramente sem pelos e com as falas e comportamentos completamente desconexos. A fase de início do Pink Floyd o destruiu física e mentalmente, e o abandono só reforçou sua condição.

O peso da culpa se abateu sobre os membros, e o novo álbum deu uma virada completa no seu direcionamento. Do experimentalismo sonoro, o trabalho guinou para um tom menor, melancólico de ponta a ponta. O álbum virou conceitual, percorrendo todo ele a ideologia massacrante da busca pelo sucesso e sua manutenção comercial, destruindo corpos e consciências no mesmo ritmo da busca dos cifrões. A visita era a gota que faltava para transbordar o balde da revolta.

O álbum é temático, coisa inexistente no universo que o imita, e gira em torno da pressão ocasionada pelo mercado sobre a área criativa. Essa pressão era sentida pelos membros do grupo, que precisavam suceder o megasucesso anterior com um mínimo de resultado financeiro. A gravadora não estava lá muito preocupada com o teor artístico, como sói acontecer até hoje.

Só que o difícil é tirar o leite criativo da pedra financeira. Não se trata de ligar o gerador de lero-lero e falar sobre qualquer coisa. O processo criativo não funciona com um botão de liga e desliga, e demanda tempo, atmosfera, reflexão, escrita e reescrita, tanto de músicas, quanto de letras, de arranjos, de ideia de todo, harmonia entre as partes, conciliação temática. Fora disso, é lero-lero sim.

O álbum fala exatamente sobre o desfazimento de laços humanos. É toda uma cadeia de causas e consequências que fala sobre a desnaturação e desestruturação mental (Shine on You Crazy Diamond), ocasionado por um ambiente de pressão e objetificação (Welcome to Machine), em um processo de avareza e cinismo que não se importa com a história das pessoas (Have a Cigar?). A pungência chega ao máximo na música título. Uma ode lírica que retrata a lamentação por ter deixado o antigo amigo sozinho, deixado à própria sorte e todo o arrependimento causado pelo ato impensado. A poética é aplicável universalmente a quem se remói de ter deixado uma amizade de lado em nome de um objetivo mais mesquinho. Ela fala sobre o dogmatismo de nossas ideologias, de como nos alienamos e desconectamos de realidades e de como abandonamos pessoas e projetos, para depois acharmos falta de tudo isso.

É um dos usos mais nobres da linguagem: a expressão de realidades interiores, a tradução de estados de espírito, ainda que sejam dolorosos (muitas vezes, é tudo o que nos resta de nossas escolhas). “Como eu queria que você estivesse aqui” pode significar um monte de coisas, mas a música não é sobre a perda de uma paixão, e sim sobre como renegamos nossas origens, como permitimos que se ergam muros entre nossas subjetividades, como deixamos que nossas personas dominem nossas pessoas, como esquecemos de estender a mão a quem amávamos. Wish you were here não é uma linguagem que rima amor com dor, mas sobre correr sobre a mesma estrada e sempre encontrar a mesma dor. É tentador aproveitar a melodia comovente e reaproveitá-la, mas isso se torna impossível quando ela observada na lupa.

Percebem como há inúmeras coisas por trás de uma canção? Não se trata de ser chato com o uso de uma melodia bonita, mas do que se destrói ao colocar uma historinha de amor mal resolvido no lugar de tudo o que uma obra de arte carrega, e isso equivale a jogar uma lata de tinta na Mona Lisa. E ninguém fica feliz com isso. Pegue a canção que você acha mais bonita na sua igreja e a transforme em um metal satânico. Você não se sentiria mal?

Há certas reservas de sacralidade que fazemos por conta de nossas próprias idiossincrasias. Pode ser qualquer coisa: um objeto antigo, uma camisa de time, uma foto de um antepassado, um brinquedo de infância, até um chaveirinho de estimação. O que importa é que por trás disso há valores que nos são caros, como é o caso das músicas que apreciamos, que nos tocam. E por mais que sejamos liberais e tolerantes, o fato é que a adulteração da sacralidade tem em nós o efeito de um ultraje. E não dá para dizer que está tudo bem.

Há um efeito maléfico nas versões que não respeitam minimamente o original, aproveitando deles unicamente a melodia adaptada. Ao invés de estimular o ouvinte a procurar saber mais sobre a origem, incitam-no a entender que a música é só isso, um choramingo sentimental sobre a perda da mulher amada ou coisa parecida. Não significa que toda e qualquer versão seja ruim, sendo até possível uma superação do original. É célebre a versão de With Little Help from my Friends, dos Beatles, na voz de Joe Cocker. Uma cançãozinha com ar infantil pegou um peso apoteótico. Outra versão que ficou soberba é a música Special Care, originalmente do grupo folk Buffalo Springfield, que ganhou uma consistência absurda na voz das meninas do Fanny, virando um hardão daqueles de arrebentar a tampa da cabeça. Mas nota-se o respeito justamente pelo que se acrescenta à versão, e não do que se tira. Afe!

Eu acho que sou um Dom Quixote atacando moinhos de vento. Bons ventos a todos!

Recomendação de álbum:

Ele acabou de fazer 50 anos e ainda está no panteão dos grandes discos de rock progressivo, psicodélico, espacial ou seja lá o nome que se der ao estilo. Grandioso como seu antecessor, sendo que bons nomes o colocam até como melhor. Como obra da coesão, é melhor mesmo, na minha humilde. Vale a pena prestar a atenção, deitar no sofá com os fones de ouvido e fazer seguidas incursões. Percebam o fenômeno de se aperceber de detalhes em cada uma delas. Obra de gênio, que não deveria ser tratada sem reverência.

WISH YOU WERE HERE. Pink Floyd. Londres: EMI, 1975.

 

* Olhem “belos” exemplos neste endereço:

https://www.uol.com.br/esporte/amp-stories/homenagem-estatuas-de-jogadores-de-futebol-que-nao-deram-certo/


segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Sobre aproveitamento de tempo e o valor da invisibilidade em locais específicos

(O que você faz quando um ato solene é tomado como inutilidade? Eu vou para o banheiro)

“Da privada eu vou dar com a minha cara de panaca pintada no espelho, e lembrar, sorrindo, que o banheiro é a igreja de todos os bêbados"

Cazuza

Olá! 

Já tem um tempão que venho dialogando com vocês aqui neste humilde espaço, meus bissextos leitores, sempre sobre temas que não são exatamente líderes de audiência. Efetivamente, rende mais falar sobre futebol, novelas e conspirações do que epistemologia, metafísica e estética (a não ser que seja facial). É que versar sobre filosofia pressupõe muito estudo, horas de empenho e um estranho lazer com coisas que não parecem lazer, normalmente se assemelhando mais a excentricidades do que a diversão. Quem me lê, talvez tenha de mim aquela imagem do senhor sentado numa poltrona da sala, lendo seus livros espessos à luz de um abajur de pé alto. Ledo engano, triste ilusão, desditosa fantasia. Para mim. Eu estou sempre para lá e para cá, já descontados os dias de serviço, atrás de algum afazer doméstico ou aflição familiar.

Eu divido os cuidados de minha própria casa, versões Sampa e Taubaté, acompanho meus sogros idosos e tenho um filho em cada cidade. A patroa não dá conta de tudo, e é preciso que eu me mova em seu auxílio, muitas vezes. Não passo um dia sem que eu corra, às vezes como um coelho assustado, às vezes como um trem desgovernado, dando toda sorte de nó possível e imaginário em realidades que, como se vê, estão longe de ser tranquilas.

Mas é óbvio que não é só isso. Existem algumas ocupações que não são ocupações. Melhor dizendo, há ocupações que são consideradas puro lazer, e, com isso, são colocadas no fundo do segundo plano. Quando alguém se põe a ler, exceção feita ao ato de estudar para provas, vestibulares e concursos, está em uma atividade que dificilmente será considerada essencial, mesmo no âmbito doméstico, ou, pior ainda, nele. E então você ouve: “Já que você não tá fazendo nada, leva o lixo lá fora”. Pois é, ler é não fazer nada.

Já falei por aqui que a leitura é essencial não só para deleite dos espíritos, mas por questões práticas também. Já me disseram que eu redijo bem, e isso vai além deste blog, muito além. E as razões para isso passam obrigatoriamente por um bom nível de leitura, modéstia à parte, porque nada sai se não entrar primeiro. Para escrever bons contratos, boas petições, bons requisitos, bons artigos, boas aulas, é preciso estar em dia com a leitura, e isso não se faz no momento em que se está escrevendo contratos, petições, requisitos, artigos ou aulas, mas naquela poltroninha com abajur. Por isso, ainda que componha o lazer do contribuinte, uma boa leitura tem esse benéfico efeito colateral: aumentar o patrimônio intelectual.

É possível ler abobrinhas? Claro. O pior é que muitas delas são revestidas de uma capa de verdade que leitura nenhuma deveria ter, e de seriedade que nenhuma crítica pessoal deveria deixar passar imune. Mas aí entramos na regra geral de que o cuidado deve ser do comprador*, e esse traquejo só se pega com o tempo. E há também o saudável costume de se ler textos opostos: não adianta criticar Marx se você nunca leu Marx, para citar um exemplo recorrente, aplicável a qualquer autor. Se prender apenas a quem corrobora suas opiniões é um exercício ruim, de quem não usa a leitura como ferramenta de aprendizado, mas de reconforto interior e fortalecimento acrítico de opiniões. Isso vale para quem se lhe opõe.

Então ler nunca é um ato inocente: ou ele te evolui, ou te estraga, e isso comprova o tal cuidado do comprador que eu mencionei. É possível estabelecer critérios quando o conteúdo se dirigir a formação de opinião, que é esse aí de cima: pegar comentadores de um e de outro lado. Mas isso vai do leitor. Ele deve conseguir meios de ter um continuum para melhores absorções daquilo que quer adquirir. Não faz sentido ler sem isso. É como ouvir música de protetor auricular. Aí, é melhor dormir.

Ora (direis), se afirmas terdes pouca chance de continuidade, por quais caminhos arrogas seguires em tuas pretensas leituras? É, meu imaginário interlocutor, não é simples, de fato. Há muito, aproveito o momento das compras da cara-metade, onde minha função é de burro de carga, mas um burro culto, já que empurrar carrinhos não é exatamente um sacrifício. Mas eu tenho um lugarejo inconfessável onde consigo emendar bom tempo de leitura com baixo índice de perturbação. Sim, ele mesmo: o banheiro.

O hábito não é novo e nem unânime, porque o argumento dos detratores do recinto como sala de leitura tem bons motivadores: é um local que, por maior que seja a higiene aplicada, é sujo. Além disso, não é propriamente confortável como a tal da poltrona acolchoada, e dizem que o costume de ficar por muito tempo sentado em um buraco pode causar prejuízos aos países baixos. E o mais mortífero dos argumentos se aplica em casas onde esse lugar é único: ele é ocupado individualmente, e precisa ter acesso democrático a todos na casa. Mas as razões de uso são igualmente boas.

A primeira é a privacidade. Dificilmente é possível considerar simpático que alguém se tranque em um quarto enquanto lê, mas a principal maneira de se conseguir a melhor absorção possível de conteúdos é esse certo isolamento do mundo exterior. No banheiro, essa privacidade é obtida automaticamente, já que, por suposição, não há como se desenvolver as atividades típicas do recinto em outros lugares da casa. Além disso, não é de bom tom existir companhia nos momentos de uso, pelos óbvios motivos. Embora seja um ato naturalíssimo, praticado por absolutamente toda a humanidade, há um constrangimento reconhecido socialmente de não se fazê-lo na solidão, porque, vamos e venhamos, o produto cheira mal. Conclusão é que ninguém achará ruim que alguém se isole, o mesmo isolamento que a leitura requer.

A segunda é a disponibilidade de tempo. Em tese, quando se vai à casinha, o campo de atividades possíveis fica bastante limitado. Não dá para executar a maioria das tarefas do quotidiano, mas dá para ouvir música, fuçar no celular e… ler! Há clássicos armarinhos de revistas nos banheiros que ficam repletos para cumprir essa tarefa, o que demonstra que não se trata de situação excepcional. Quando eu era um molecão, era moda colocar bidês no banheiro. A questão é que o costume de usar essa louça sanitária, destinada à higiene íntima, não pegou entre os brasileiros, já que na maior parte do tempo temos clima propício para banhos completos, e ela acabava ficando exposta como uma mera marca de época, ou como porta-revistas, o que era mais costumeiro. E ali tinha gibis, jornais dobrados, revistas de variedades e até alguma publicação mais danadinha, oculta lá pela parte de baixo. Tirando tudo isso, é perfeitamente possível, independentemente da existência do bidê, adentrar-se no território com um bom livro, dos mais variados assuntos, inclusive filosofia.

A terceira é correlata, ou seja, se há disponibilidade de tempo em um mundo onde vivemos reclamando de sua escassez, é um período ideal para o uso mais proveitoso possível. Eu não só leio, mas também escrevo no toalete, inclusive componho um bocadinho dos textos que vocês leem aqui. Escrita virtual não pega cheiro, o que é um bem. Também gosto de cantarolar algumas melodias para encaixar nas minhas cada vez mais raras poesias (sim, por vezes também elas são escritas lá), o que é outro clássico do desprezado cômodo, e, com isso, pode-se notar que é também um espaço da criatividade.

Por fim, e principalmente, a invisibilidade. Ao contrário da poltrona, ninguém manda você colocar o lixo na rua se você está na privada. A não ser que você tenha montado acampamento na retrete, e aí a cobrança será pela desocupação, é garantido que haverá um lapso de paz durante o período em que você estiver instalado, pelo simples fato de que estar fora do circuito te deixa imperceptível. O contribuinte sentado na sala está dando sopa, quase reluzente na sua “desocupação”, enquanto aquele em processo de alívio está trancadinho, quietinho, silente, impossibilitado.

Jocosidades à parte, temos diante de nós a triste realidade do que reputamos como importante ou irrelevante em nosso país. Conforme falei em outro texto, ser flagrado em boa leitura durante o serviço deveria ser considerado hora trabalhada, louvável dentro de certos limites, especialmente para quem trabalha com a linguagem. Uma instrução bem escrita, uma especificação bem redigida, uma determinação clara ou uma regra que não deixe dúvida dificilmente produzirá erros, retrabalho ou necessidade de esclarecimentos, o que representa ganho, cara-pálida. Não só de tempo, mas de grana, gaita, erva, vil metal, wampum.

É um contrassenso o que nós fazemos. Reclamamos diuturnamente da educação no país, e mandamos um leitor levar o lixo lá fora. Falamos que as telas são prejudiciais, sem nem ao menos saber se o cidadão não está lendo. Os livros físicos estão condenados à morte, como já aconteceu com os jornais físicos, e a versão para celular tem os benefícios que vão além do romantismo: portabilidade, compartilhamento de uso, iluminação própria, custo. Se alguém diz que você “fica o dia inteiro no celular”, precisaria saber o que você faz com ele. O pessoal que me vê enquanto eu escrevo certamente pensa que estou em grupos de conspiração ou falando putarias com os amigos, mas nada mais faço do que redigir para este blog ou pegar referências para ele. Certo: precisamos ser parcimoniosos e levar o lixo, evidentemente, mas também é preciso reconhecer o valor da cultura e não a considerar objeto de descarte, coisa secundária, de somenos importância. Do contrário, vamos fixar no nosso substrato mental que o hábito da leitura é um demérito e alimentar o círculo vicioso do desprazer pela escola, ou então vamos enaltecer o subterfúgio do banheiro. Eu não sou um bobo que prefere sentar-se na beira de um buraco a uma almofada fofa, mas é fato que ali as coisas rendem. Tentem ler meia hora de Kant sem que haja um mínimo de concentração. É a mesma coisa que ouvir músicas em sânscrito. Desde que não compreendamos sânscrito, bem entendido.

Já ficou bem louco este texto. De vez em quando tenho mesmo vontade de abordar temas mais leves, mas dessa vez eu me superei. Mas não deixa de ser uma forma de ser filosófico falar sobre o quotidiano mais prosaico de todos, aquele que todos precisam apelar, e não é de vem em quando. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Existe nos Estados Unidos um termo chamado de bathroom reading, que diz respeito a leituras leves e rápidas, específicas para serem absorvidas nos momentos de alívio, o que também comprova a universalidade do hábito. Embora não se chegue a tanto, há uma boa série no Brasil que tem a dupla função de ser leitura ligeira e de dar aprendizado a quem vem iniciando no mundo das letras (independentemente do lugar onde se lê), já consagrada e que traz muita coisa boa. 

VV. AA. Para Gostar de Ler. São Paulo: Ática, a partir de 1977.

*Caveat emptor é uma antiga expressão latina que significa algo como “tenha cuidado, comprador”. Ela significa que o cuidado em fazer uma aquisição deve estar do lado de quem granjeia, porque quem vende tem interesses diferentes, evidentemente. Essa expressão hoje parece obsoleta por conta do Código de Defesa do Consumidor, que inverteu a lógica de muitas das relações mercantis envolvidas no comércio, mas foi justamente por causa das intenções espúrias que se fez necessária a legislação. Como eu sempre digo, a necessidade da lei é o fracasso da moral.