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segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Sobre aproveitamento de tempo e o valor da invisibilidade em locais específicos

(O que você faz quando um ato solene é tomado como inutilidade? Eu vou para o banheiro)

“Da privada eu vou dar com a minha cara de panaca pintada no espelho, e lembrar, sorrindo, que o banheiro é a igreja de todos os bêbados"

Cazuza

Olá! 

Já tem um tempão que venho dialogando com vocês aqui neste humilde espaço, meus bissextos leitores, sempre sobre temas que não são exatamente líderes de audiência. Efetivamente, rende mais falar sobre futebol, novelas e conspirações do que epistemologia, metafísica e estética (a não ser que seja facial). É que versar sobre filosofia pressupõe muito estudo, horas de empenho e um estranho lazer com coisas que não parecem lazer, normalmente se assemelhando mais a excentricidades do que a diversão. Quem me lê, talvez tenha de mim aquela imagem do senhor sentado numa poltrona da sala, lendo seus livros espessos à luz de um abajur de pé alto. Ledo engano, triste ilusão, desditosa fantasia. Para mim. Eu estou sempre para lá e para cá, já descontados os dias de serviço, atrás de algum afazer doméstico ou aflição familiar.

Eu divido os cuidados de minha própria casa, versões Sampa e Taubaté, acompanho meus sogros idosos e tenho um filho em cada cidade. A patroa não dá conta de tudo, e é preciso que eu me mova em seu auxílio, muitas vezes. Não passo um dia sem que eu corra, às vezes como um coelho assustado, às vezes como um trem desgovernado, dando toda sorte de nó possível e imaginário em realidades que, como se vê, estão longe de ser tranquilas.

Mas é óbvio que não é só isso. Existem algumas ocupações que não são ocupações. Melhor dizendo, há ocupações que são consideradas puro lazer, e, com isso, são colocadas no fundo do segundo plano. Quando alguém se põe a ler, exceção feita ao ato de estudar para provas, vestibulares e concursos, está em uma atividade que dificilmente será considerada essencial, mesmo no âmbito doméstico, ou, pior ainda, nele. E então você ouve: “Já que você não tá fazendo nada, leva o lixo lá fora”. Pois é, ler é não fazer nada.

Já falei por aqui que a leitura é essencial não só para deleite dos espíritos, mas por questões práticas também. Já me disseram que eu redijo bem, e isso vai além deste blog, muito além. E as razões para isso passam obrigatoriamente por um bom nível de leitura, modéstia à parte, porque nada sai se não entrar primeiro. Para escrever bons contratos, boas petições, bons requisitos, bons artigos, boas aulas, é preciso estar em dia com a leitura, e isso não se faz no momento em que se está escrevendo contratos, petições, requisitos, artigos ou aulas, mas naquela poltroninha com abajur. Por isso, ainda que componha o lazer do contribuinte, uma boa leitura tem esse benéfico efeito colateral: aumentar o patrimônio intelectual.

É possível ler abobrinhas? Claro. O pior é que muitas delas são revestidas de uma capa de verdade que leitura nenhuma deveria ter, e de seriedade que nenhuma crítica pessoal deveria deixar passar imune. Mas aí entramos na regra geral de que o cuidado deve ser do comprador*, e esse traquejo só se pega com o tempo. E há também o saudável costume de se ler textos opostos: não adianta criticar Marx se você nunca leu Marx, para citar um exemplo recorrente, aplicável a qualquer autor. Se prender apenas a quem corrobora suas opiniões é um exercício ruim, de quem não usa a leitura como ferramenta de aprendizado, mas de reconforto interior e fortalecimento acrítico de opiniões. Isso vale para quem se lhe opõe.

Então ler nunca é um ato inocente: ou ele te evolui, ou te estraga, e isso comprova o tal cuidado do comprador que eu mencionei. É possível estabelecer critérios quando o conteúdo se dirigir a formação de opinião, que é esse aí de cima: pegar comentadores de um e de outro lado. Mas isso vai do leitor. Ele deve conseguir meios de ter um continuum para melhores absorções daquilo que quer adquirir. Não faz sentido ler sem isso. É como ouvir música de protetor auricular. Aí, é melhor dormir.

Ora (direis), se afirmas terdes pouca chance de continuidade, por quais caminhos arrogas seguires em tuas pretensas leituras? É, meu imaginário interlocutor, não é simples, de fato. Há muito, aproveito o momento das compras da cara-metade, onde minha função é de burro de carga, mas um burro culto, já que empurrar carrinhos não é exatamente um sacrifício. Mas eu tenho um lugarejo inconfessável onde consigo emendar bom tempo de leitura com baixo índice de perturbação. Sim, ele mesmo: o banheiro.

O hábito não é novo e nem unânime, porque o argumento dos detratores do recinto como sala de leitura tem bons motivadores: é um local que, por maior que seja a higiene aplicada, é sujo. Além disso, não é propriamente confortável como a tal da poltrona acolchoada, e dizem que o costume de ficar por muito tempo sentado em um buraco pode causar prejuízos aos países baixos. E o mais mortífero dos argumentos se aplica em casas onde esse lugar é único: ele é ocupado individualmente, e precisa ter acesso democrático a todos na casa. Mas as razões de uso são igualmente boas.

A primeira é a privacidade. Dificilmente é possível considerar simpático que alguém se tranque em um quarto enquanto lê, mas a principal maneira de se conseguir a melhor absorção possível de conteúdos é esse certo isolamento do mundo exterior. No banheiro, essa privacidade é obtida automaticamente, já que, por suposição, não há como se desenvolver as atividades típicas do recinto em outros lugares da casa. Além disso, não é de bom tom existir companhia nos momentos de uso, pelos óbvios motivos. Embora seja um ato naturalíssimo, praticado por absolutamente toda a humanidade, há um constrangimento reconhecido socialmente de não se fazê-lo na solidão, porque, vamos e venhamos, o produto cheira mal. Conclusão é que ninguém achará ruim que alguém se isole, o mesmo isolamento que a leitura requer.

A segunda é a disponibilidade de tempo. Em tese, quando se vai à casinha, o campo de atividades possíveis fica bastante limitado. Não dá para executar a maioria das tarefas do quotidiano, mas dá para ouvir música, fuçar no celular e… ler! Há clássicos armarinhos de revistas nos banheiros que ficam repletos para cumprir essa tarefa, o que demonstra que não se trata de situação excepcional. Quando eu era um molecão, era moda colocar bidês no banheiro. A questão é que o costume de usar essa louça sanitária, destinada à higiene íntima, não pegou entre os brasileiros, já que na maior parte do tempo temos clima propício para banhos completos, e ela acabava ficando exposta como uma mera marca de época, ou como porta-revistas, o que era mais costumeiro. E ali tinha gibis, jornais dobrados, revistas de variedades e até alguma publicação mais danadinha, oculta lá pela parte de baixo. Tirando tudo isso, é perfeitamente possível, independentemente da existência do bidê, adentrar-se no território com um bom livro, dos mais variados assuntos, inclusive filosofia.

A terceira é correlata, ou seja, se há disponibilidade de tempo em um mundo onde vivemos reclamando de sua escassez, é um período ideal para o uso mais proveitoso possível. Eu não só leio, mas também escrevo no toalete, inclusive componho um bocadinho dos textos que vocês leem aqui. Escrita virtual não pega cheiro, o que é um bem. Também gosto de cantarolar algumas melodias para encaixar nas minhas cada vez mais raras poesias (sim, por vezes também elas são escritas lá), o que é outro clássico do desprezado cômodo, e, com isso, pode-se notar que é também um espaço da criatividade.

Por fim, e principalmente, a invisibilidade. Ao contrário da poltrona, ninguém manda você colocar o lixo na rua se você está na privada. A não ser que você tenha montado acampamento na retrete, e aí a cobrança será pela desocupação, é garantido que haverá um lapso de paz durante o período em que você estiver instalado, pelo simples fato de que estar fora do circuito te deixa imperceptível. O contribuinte sentado na sala está dando sopa, quase reluzente na sua “desocupação”, enquanto aquele em processo de alívio está trancadinho, quietinho, silente, impossibilitado.

Jocosidades à parte, temos diante de nós a triste realidade do que reputamos como importante ou irrelevante em nosso país. Conforme falei em outro texto, ser flagrado em boa leitura durante o serviço deveria ser considerado hora trabalhada, louvável dentro de certos limites, especialmente para quem trabalha com a linguagem. Uma instrução bem escrita, uma especificação bem redigida, uma determinação clara ou uma regra que não deixe dúvida dificilmente produzirá erros, retrabalho ou necessidade de esclarecimentos, o que representa ganho, cara-pálida. Não só de tempo, mas de grana, gaita, erva, vil metal, wampum.

É um contrassenso o que nós fazemos. Reclamamos diuturnamente da educação no país, e mandamos um leitor levar o lixo lá fora. Falamos que as telas são prejudiciais, sem nem ao menos saber se o cidadão não está lendo. Os livros físicos estão condenados à morte, como já aconteceu com os jornais físicos, e a versão para celular tem os benefícios que vão além do romantismo: portabilidade, compartilhamento de uso, iluminação própria, custo. Se alguém diz que você “fica o dia inteiro no celular”, precisaria saber o que você faz com ele. O pessoal que me vê enquanto eu escrevo certamente pensa que estou em grupos de conspiração ou falando putarias com os amigos, mas nada mais faço do que redigir para este blog ou pegar referências para ele. Certo: precisamos ser parcimoniosos e levar o lixo, evidentemente, mas também é preciso reconhecer o valor da cultura e não a considerar objeto de descarte, coisa secundária, de somenos importância. Do contrário, vamos fixar no nosso substrato mental que o hábito da leitura é um demérito e alimentar o círculo vicioso do desprazer pela escola, ou então vamos enaltecer o subterfúgio do banheiro. Eu não sou um bobo que prefere sentar-se na beira de um buraco a uma almofada fofa, mas é fato que ali as coisas rendem. Tentem ler meia hora de Kant sem que haja um mínimo de concentração. É a mesma coisa que ouvir músicas em sânscrito. Desde que não compreendamos sânscrito, bem entendido.

Já ficou bem louco este texto. De vez em quando tenho mesmo vontade de abordar temas mais leves, mas dessa vez eu me superei. Mas não deixa de ser uma forma de ser filosófico falar sobre o quotidiano mais prosaico de todos, aquele que todos precisam apelar, e não é de vem em quando. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Existe nos Estados Unidos um termo chamado de bathroom reading, que diz respeito a leituras leves e rápidas, específicas para serem absorvidas nos momentos de alívio, o que também comprova a universalidade do hábito. Embora não se chegue a tanto, há uma boa série no Brasil que tem a dupla função de ser leitura ligeira e de dar aprendizado a quem vem iniciando no mundo das letras (independentemente do lugar onde se lê), já consagrada e que traz muita coisa boa. 

VV. AA. Para Gostar de Ler. São Paulo: Ática, a partir de 1977.

*Caveat emptor é uma antiga expressão latina que significa algo como “tenha cuidado, comprador”. Ela significa que o cuidado em fazer uma aquisição deve estar do lado de quem granjeia, porque quem vende tem interesses diferentes, evidentemente. Essa expressão hoje parece obsoleta por conta do Código de Defesa do Consumidor, que inverteu a lógica de muitas das relações mercantis envolvidas no comércio, mas foi justamente por causa das intenções espúrias que se fez necessária a legislação. Como eu sempre digo, a necessidade da lei é o fracasso da moral.