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segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (40 - Historiografia)

(A História é uma ciência humana, e, como tal, precisa de métodos par fazer seu trabalho direitinho)

“Eu vejo o futuro repetir o passado

Eu vejo um museu de grandes novidades

O tempo não para”

Cazuza

Olá!

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Contei bastante coisa da minha vida para vocês aqui neste espaço, porque esse é o mote do meu blog. É evidente que não acontecem coisas interessantes todo santo dia, então eu busco muita coisa do meu passado para ilustrar um tema que eu queira desenvolver. Ou, vice-versa, uma sessão de rememorações traz inspirações filosóficas. Como é possível supor, essas lembranças não são cem por cento precisas, pela via das distorções esperadas pelo tempo passado, e não têm o rigor científico esperado por quem quer a realidade ipsis litteris. As coisas são assim, a vida é essa. O que vamos fazer?

Essa é a mesma base que tem a tradição oral: lembranças que são passadas de pais para filhos e que vão ganhando incrementos ou decrementos na medida em que um conta para o outro. Eu tenho histórias dos meus avós que foram contadas para os meus pais e que eu transmiti para meus filhos, que, se houverem, também as repassarão para os meus netos. Se confrontadas as primeiras com as últimas, pode ocorrer de termos uma variação tão fantástica que seriam irreconhecíveis. Talvez só tenham um quê de intenção original. Quem conta um conto aumenta um ponto, é o dito popular.

Tudo seria diferente se o nonno tivesse pegado uma pena e escrito suas aventuras e desventuras. Bastaria, assim sendo, apresentar a missiva aos descendentes e evitar as discrepâncias. Perderíamos em saborização? Certamente, mas teríamos uma precisão maior. Desde que o vetusto parente mantivesse um mínimo de proximidade com os fatos.

E isso mostra que o problema persiste. A escrita do vovô garante uma persistência do relato, mas não sua veracidade (ou mesmo sua verossimilhança), e, sendo assim, percebemos bem de leve o grande problema da História como Ciência. Eu posso medir a potência de um raio, a velocidade de um fluxo sanguíneo, a distância entre astros, a potência de um veneno, a profundidade de uma fossa marítima. E a verdade de um fato?

Sim, gregos e romanos já destoavam no que eles consideravam verdade. Os primeiros gostavam do objeto no olho, mensurável e observável em sua aletheia, enquanto os últimos preferiam a coerência do relato, o encadeamento bem-feito e crível na sua veritas. Essas concepções são diferentes, e as ciências naturais se beneficiam da observação possível dos objetos presentes, enquanto a História não tem como prescindir da força do relato, seja direto ou não, porque seu material não está em cima de nossa mesa.

Já falei neste espaço sobre as diferenças entre Ciências naturais e Ciências humanas, e o fiz com o intuito de esclarecer como é possível estabelecer critérios para que consigamos reconhecer a cientificidade dessas áreas de conhecimento. Nesse bojo, está a História, que precisou construir todo um método para conduzir suas pesquisas e ganhar estatuto de estudo científico. Um método apropriado para sua realidade que, por muitas vezes, precisa lançar mão de expedientes colaterais à observação direta dos fenômenos, especialmente quando eles são exíguos. Esta metodologia recebe o nome de Historiografia.

Primeiro, vamos fixar a diferença: a História é a atividade humana que pretende investigar o passado para estabelecer correlações entre este e o presente. Já a Historiografia são os meios materiais com os quais se levam a cabo esses estudos. Ou seja, a Historiografia é uma ferramenta da História para produzir resultados minimamente confiáveis.

Normalmente, ciências exatas não dão margem a erros, e ganham um nível de especificidade difícil de desviar. Solva dez gramas de bicarbonato de sódio em 20 ml de vinagre e veja a espuma se formar. Aplique 20 bar de pressão em uma bexiga com a espessura de 1 micrômetro e veja ela explodir. Aumente a temperatura de 100 ml de água a 100 graus centígrados por 15 minutos e perceba que o recipiente ficará vazio. É A+B=C, sem furo. Se houver, procure uma condição para a falha, e certamente você encontrará um motivador (ou terá em mãos uma falsificação da teoria).

Nada disso é possível em História, que não é uma ciência experimental. Se não estamos falando de ocorrências recentes, que possuem diversos suportes para manter fidedignidade aos relatos, contamos com elementos muito difusos que são facilmente postos em dúvida. Se formos parar para pensar, meios de registro são invenções recentes. Internet existe há a 50 anos, imagens em filme existem desde o finalzinho do século XIX, os primeiros áudios são de um pouco antes, a imprensa foi inventada no século XVI e, mesmo a escrita, tem alguma coisa próxima de cinco mil anos, bem pouco para uma espécie que existe há mais de 300.000. Então registros precisos como as ciências exatas exigem são impossíveis.

Então vamos colocar a viola no saco e nos conformar com a impossibilidade da História? Não. O que é preciso é estabelecer métodos que permitam reconhecer a estrutura mais verossímil possível sobre as realidades passadas, especialmente as mais remotas.

Em primeiro lugar, é preciso estabelecer que as fontes históricas não se limitam aos registros escritos, mas a tudo que possa dizer sobre uma determinada época, e, nesse sentido, a Arqueologia é uma auxiliar de mão cheia. Desde as antiquíssimas pinturas rupestres das grutas de Maltravieso, os registros da ação humana são elementos que são considerados vitais para a tentativa de descrever modos de vida e fatos quotidianos.

Os registros, quanto mais longínquos se vão no tempo, mais fragmentados se apresentam. A alegoria do quebra-cabeças é perfeita para a montagem do painel histórico, e muitos dos claros são suprimidos com suposições que vão sendo corroboradas através de elementos externos à própria sequência de fatos. Frequentemente, é preciso adotar uma postura de lateralidade, ou seja, de olhar para os lados em busca de dados confirmatórios indiretos. Como é comum termos poucos elementos para dar guarida à veracidade dos relatos obtidos, é preciso que se olhe ao redor do contexto para obter elementos que ajudem a explicar, confirmar ou refutar o que se diz. Se eu olhar para a historinha do nonno, é de bom tom (por amor à veracidade) validar as afirmações, como a existência de histórias parecidas, de outras fontes que indiquem ser possível o fato descrito, se faz sentido a temporalidade informada ou se isso tudo somente comprova a criatividade do macróbio progenitor. Sendo assim, é preciso estabelecer critérios que orientem a pesquisa historiográfica para além do fato diretamente descrito.

Um desses critérios, talvez o principal deles, é o de múltipla atestação. Para cada vez em que encontramos um relato sobre um determinado acontecimento, dizemos que possuímos uma atestação, ou seja, uma afirmação sobre um fato que tem a intenção de corresponder à realidade. Contar uma piada ou cantar uma música, por exemplo, não são atestações, porque, a princípio, não há aí uma intenção em ser verdadeiro. Quanto mais gente fala sobre um fato, mais provável é que o mesmo tenha ocorrido. Ainda mais: tendo várias atestações distintas, é possível filtrar as que possuem maior quantidade de indicações. Sendo assim, havendo um relato dissidente em meio a dez outros convergentes, é muito mais provável que o multiplamente atestado seja o real. Sendo assim, essa é a linha que será primariamente pesquisada, por ser mais provável. A não ser… 

A não ser que sejam observados outros critérios, o que demonstra a complexidade que há em estabelecer uma metodologia historiográfica. Um deles é o curioso embaraço. Ele diz que, entre versões dissonantes, a que causaria maior constrangimento a quem a profere tende a ser a verdadeira. Isso é fácil de explicar: quando teu time tem uma derrota acachapante, daquelas traulitadas históricas, normalmente você dirá que a culpa é do juiz mal intencionado, enquanto teu coleguinha mais sensato dirá, mui simplesmente, que o time jogou mal. Qual das duas é mais embaraçosa? A segunda, evidentemente. Temos a tendência de procurar culpados externos quando sofremos decepções, ou a atribuir heroísmos em atos corriqueiros, e nossa análise fica enviesada, como prova a psicologia com o efeito ator-observador. Sendo assim, se confessamos uma condição embaraçosa, dificilmente será porque estamos mentindo (conscientemente ou não). É a velha questão da história contada pelos vencedores.

O critério da dissimilaridade é razoavelmente parecido com o do constrangimento. Ele reza que uma afirmação é tanto mais digna de confiabilidade, quanto mais estiver afastada de uma prática comum. Trocando em miúdos: se algum fato histórico está em dessemelhança com uma tradição anterior ou posterior, ou seja, é “diferentão”, tem mais chances de ser real. Isso acontece porque é mais esperado que um fato dissonante esteja mais de acordo com as tradições em voga, justamente para corroborá-las. É em cima deste critério que surgiu o lectio difficilior potior, termo latino que significa “a leitura mais difícil é a mais forte”, um princípio da crítica textual que entende ser o texto de compreensão mais difícil aquele que tem maiores chances de ser o mais correto, justamente porque os escribas teriam a tendência de adaptar os textos à sua realidade, ao seu tempo e ao seu espaço físico, de modo que, na concorrência entre os textos, o mais “estranho” tende a ter a menor carga cultural daqueles que os transcreveram, e, consequentemente, menos modificado.

Só que há também o critério da coerência. Mesmo que haja indicativos de dissimilaridade ou de constrangimento, as narrativas precisam seguir alguma lógica para ganharem o selo de verossímeis. Não basta um texto ser antigo: ele não pode ser contraditório, precisa ser semanticamente interpretável e precisa estabelecer relações lógicas entre as ideias que exprime. A questão é que nem sempre a coerência é facilmente visível. Digamos, por exemplo, que as casas de um determinado local foram inundadas após uma chuva muito forte. A priori, é um fato que pode ser facilmente aceito. Entretanto, o histórico de inundações daquele lugar somente se iniciou após a construção de uma represa. Neste caso, relatos de inundações anteriores a essa construção são incoerentes, mesmo sendo um caso que, na atualidade, seja perfeitamente factível. Portanto, questões de coerência são uma condição primária para a boa aceitação de uma fonte.

Outro ponto importante é o critério de linguagem e ambiente, que trazem boas balizas para consolidar entendimentos. Por exemplo: uma expressão que nasceu no Brasil em meados da década de 80 é o tal “da lata”. Sua origem foi a curiosíssima história do pesqueiro Solana Star, que fazia uma carga ilegal de cannabis da Austrália para os Estados Unidos. Quando estava no Atlântico Sul, o navio precisou de reparos e, para isso, aproximou-se da costa brasileira. Ao perceber a aproximação da guarda costeira, a tripulação se livrou da carga danada, desovando 22 toneladas de latas repletas de maconha no mar. A Marinha somente conseguiu recuperar três e meia dessas toneladas, o que significa que a maior parte ficou boiando no oceano, até que as correntes marítimas as levassem para o litoral de São Paulo e Rio de Janeiro. Como era produto de primeira linha, muito diferente dos talos de chuchu que se vendiam nos carrinhos de pipoca, a expressão “da lata” era sinônimo de produto bom: tênis da lata, música da lata, comida da lata. Como esses fatos todos ocorreram entre 1987 e 1988 (o “verão da lata”), essa expressão linguística só tem sentido se ocorrida nesse período ou, no máximo, a posteriori. Nenhum fato pode ser considerado anterior se calçando nessa expressão. Mesma coisa com tópicos relacionados aos locais onde se conseguem as informações, que forma o ambiente onde uma história é narrada. Percebam que não se falam em corvos nas mitologias tupi-guarani, porque esse interessante bicho não faz parte da fauna brasileira. Ambientações corretamente definidas em um texto ajudam a enquadrá-lo como mais confiável, porque muitas vezes os usos e costumes de um determinado local são os poucos elementos que temos para referendar o que está sendo dito.

Notem como todos esses critérios são como “esquentadores de palpites”, e não como certificadores da verdade. Eles são indicativos de que uma assertiva é mais crível, ou, melhor ainda, que é menos provável do que outras, mas não asseguram a veracidade de modo incontestável. Por exemplo: Sócrates tem três atestações robustas: a de Platão, a de Xenofonte e a de Aristófanes. Os três trazem visões substancialmente diferentes sobre a mesma pessoa. Em Platão, Sócrates é mais filosófico; em Xenofonte, mais prático e, em Aristófanes, um parlapatão. Essa dissonância, ao contrário do que pode parecer a princípio, é benéfica para a pesquisa histórica, porque dá mostras de um indivíduo multifacetado e que desperta diferentes sentimentos, como sói acontecer com nós mesmos. Mas comprova em definitivo a existência socrática? Não, mesmo que sejam evidências muito boas. O contrário ocorre com os evangelhos, por exemplo. A cadeia de semelhanças existentes entre os três sinóticos, ao contrário de anunciar uma unicidade, denuncia compartilhamento de fontes, embora todos eles possuam material próprio. Ou seja, embora haja três fontes, há a hipótese de que elas sejam apenas uma, até porque o Evangelho de São João é muito mais teológico do que histórico.

Reconhecidas as dificuldades desta metodologia, é necessário reconhecer como seu espírito é legitimamente científico, primeiro por buscar caminhos onde eles parecem não existir, e principalmente por reconhecer sua falibilidade. Quer mais científico que isso? Bons ventos a todos!

Recomendação de canal:

Um lugar e tanto para aprender como funcionam os métodos historiográficos é o canal do professor Jonathan Matthies, especializado em antiguidades religiosas, e que sempre evidencia as dificuldades e as soluções para interpretar textos que são naturalmente cercados de polêmicas. Vale maratonar.

https://www.youtube.com/@Jonathan14734

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Sobre a caixa de Pandora e a esperança vista como o pior dos males

(É bom ter esperança? Ou é mais uma maneira de se imobilizar?)

“Zeus quis que os homens, por mais torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes deu a esperança: ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens”

Nietzsche

Olá!

Entre prós e contras, há os contras e os prós. Embora haja absolutamente de tudo a vinte passos de distância, o centro de São Paulo é um lugar sujo, isso está assente e bem consolidado. O meu lugar de fala é o de quem mora lá, e, com isso, analisa todo aquele universo que lhe afeta diretamente. O primeiro olhar de qualquer pessoa é o de que os responsáveis pela lixeira são os mendigos e catadores, mas esse é um ledo engano. Os porcos somos nós mesmos, auxiliados por um poder público que parece não saber o significado de zeladoria urbana. São nossos legítimos representantes, e, sendo assim, nossas mãos que assinam decretos.

Saindo do geral para o miúdo, nós do centro acabamos nos acostumando a ter um passo de bêbado para fugir da sujeira. Pulo uma casca de fruta à esquerda e já encolho o pé para evitar um saco de lixo à direita e, nesse estranho balé, vou evitando ter que lavar o tênis. Mas, da mesma forma que renomada bailarina, mesmo na prática há passos em falso, e é inevitável cair em alguma armadilha.

Uma delas foi uma caixa de papelão que estava bem na porta do balansarte prédio em que habito, numa das tardes desses domingos pasmacentos. Um treco daqueles bem no meio do caminho da estreita passagem é algo irritante para alguém que já vive irritado, e mandei ela para longe com um chute digno de Nelinho. O problema é que a tal caixa foi lá colocada para encobrir um conteúdo pouco nobre, e, espalhafatoso, cai com o pé do chute em cheio da massa disforme, que se espalhou por toda a realidade circunstante, eu incluso. Como era inevitável, a supernova orgânica chegou ao tapete da entrada e o melecou todo, implantando um cenário caótico. Como ainda tento manter civilidade, contei até dez e não quis deixar a hecatombe para o pobre seo Antônio, o porteiro ocasional dessa bodega de condomínio caro e zeladoria ausente, e lá vim com balde e esfregão para curtir um domingo perfeito. A cada etapa da limpeza, um impropério berrado em alto e bom som, daqueles de rachar um carvalho ao meio e aumentar o léxico de carroceiros. Levando em consideração que é um prédio de senhorinhas católicas conservadoras, virei atração turística por um dia, da pior maneira possível. “Que moço boca suja!” foi a afirmação mais elogiosa, por causa do “moço”.

Momentos impulsivos não trazem belos resultados, como se pode ver. Algumas ações imediatas são necessárias para a própria sobrevivência, como provam os instintos, mas, em geral, elas vão muito além da necessidade, porque são desmedidas. Mas o fato é que muita coisa na humanidade já foi decidida nessa base, a ponto de um dos mais significativos mitos gregos estar associado a eles: a caixa de Pandora. Essa não é só uma explicação para a presença do mal no mundo, mas também como a fraqueza de um ser pode influenciar todo o universo, assim como a inconsequência de um ato impensado encadeia uma série de consequências imprevisíveis.

Mitos são assim mesmo: formalizam uma determinada maneira de pensar, geralmente de um pensamento assentado em uma comunidade, que adotam a voz de um profeta ou outra autoridade para consolidar a narrativa como se fosse única, daquele povo. Os gregos formaram a base filosófica do pensamento ocidental, e, por essa razão, há inúmeros mitos que conhecemos e aplicamos poeticamente. Dentre tantos, a história da jovem Pandora é um dos mais célebres.

A narrativa mais consolidada de Pandora e sua caixa é a seguinte: em um momento em que ainda não existia a humanidade, o universo assistia deuses e titãs se digladiando pelo poder. Como essas lutas incluem desde sempre não somente a força, mas a trairagem, os titãs Prometeu e Epitemeu se bandearam para o lado dos deuses, o que desbalanceou o equilíbrio a favor destes últimos. É dito de Prometeu que ele tinha a capacidade de antever os acontecimentos com base em sua aguçada inteligência, e prevendo a vitória dos deuses, convenceu seu irmão a segui-lo. Como prêmio pela ajuda dos dois, Zeus, o líder dos deuses, não só não os jogou no Tártaro* com os demais titãs derrotados, como também concedeu a ambos o direito de povoarem a terra. Epimeteu, aquele que vê depois, utilizou todos os atributos possíveis para criar todos os animais, restando a Prometeu a criação de características únicas ao homem. Ocorre que este era um animal dentre os outros, um bruto sem nenhum brilho, já que Epimeteu não lhe reservou nada de mais insigne. Prometeu foi a Zeus pleitear o uso do fogo pela humanidade, o que foi prontamente negado, dado ser esta a ferramenta de sabedoria equalizadora aos deuses. Insatisfeito, Prometeu roubou o fogo dos deuses e o deu aos homens, que, dessa forma, passaram a ter sabedoria equivalente, e, dessa forma, imperar sobre as demais criaturas.

Zeus ficou puto não gostou nada da atitude de Prometeu, e lhe impingiu um castigo eterno: acorrentá-lo em uma pedra do Monte Cáucaso, aonde uma águia viria diariamente para lhe rasgar o ventre e comer seu fígado. Sendo um imortal, todos os dias seu corpo era regenerado, o que o penalizava infinitamente. Mas sobrou também para nós, a criatura do infeliz titã, e o castigo veio na forma de ardil.

Uma vez livre de Prometeu, Zeus criou uma companheira para Epimeteu, a primeira de todas as mulheres, e lhe deu o nome de Pandora, que, em grego, significa algo como “todos os dons”. Ela recebeu a criação de todos os deuses olímpicos, que, de algum modo, deram a ela características: dentre outros dons, de Afrodite, recebeu a beleza; de Atena, recebeu as habilidades artísticas, e recebeu o poder de persuasão de Hermes, bem como a curiosidade de Hera, o que acabou por ser sua desgraça. Foi entregue em casamento para o titã, apaixonadíssimo por sua beleza. Zeus deu-lhes um presente de casamento inusitado: um jarro** a quem foi recomendado a Pandora jamais ser aberto. Conhecer do espírito humano, Zeus sabia que essa proibição era quase uma ordem para que Pandora fizesse o oposto. Movida pela curiosidade, a bela mulher descumpriu a ordem divina (já ouvi essa história em algum lugar) e abriu a tampa do jarro, e o fenômeno aconteceu: lá dentro, estavam contidos todos os males que acometem a humanidade: a fome, as doenças, as guerras, a solidão, a fraqueza, as dores físicas e morais, o sofrimento externo e interior. À abertura do receptáculo, todos eles fugiram e se espalharam incontidamente, por toda parte para onde pudessem ir. Quando Pandora se deu conta do que havia feito, tentou fechar novamente o tampo, mas reteve somente um último item: a esperança. Compreendendo que não fazia sentido mantê-la no recipiente, achou por bem libertá-la também, e ela foi se espalhar pelo universo, como todos os demais conteúdos.

Normalmente, a interpretação da libertação da esperança é vista de forma positiva. Apesar do grande projeto de vingança de Zeus contra a criação de Prometeu, ele ainda tem alguma piedade, e a esperança seria o alimento espiritual que faria com que os homens ainda tivessem alguma forma de encarar o mundo, apesar da dor e do reconhecimento da dor. Não fosse a esperança libertada, a raça humana não teria grandes motivos para permanecer viva.

Entretanto, há quem interprete essa esperança que resta no fundo da caixa de Pandora como um bem entre os males, ou não só um mal entre os outros, mas também como o pior dos males. É de Nietzsche, dentre outros, que eu falo.

A ideia é a seguinte: se eu saio de um estado de felicidade para um mundo assombrado por todas as desgraças possíveis, seria natural pensar que a opção seria sair desse mundo, mesmo que pela via da morte. Imaginar-se como sofredor de um mal eterno é precisamente o expediente das quais as religiões lançam mão para quando querem criar uma atmosfera infernal: a dor eterna. Se isso não ocorre, o que pode explicar o fenômeno? 

Notem, meus amigos, que um mundo sem vida é, também, um mundo sem dor. É preciso que os seres existam para que a dor também exista, já que sofrimento é uma inerência da vida. Não se preocupem com o metal que o ferreiro malha, nem com a pedra que o britador perfura: elas não sentem dor. Sendo assim, a abertura da caixa de Pandora só é efetiva porque a humanidade persiste em sua existência. Seria mais ou menos como um vírus que exterminasse todos os bípedes implumes: ele mesmo se exterminaria junto. Os males, portanto, só existem se a esperança de dias melhores motiva as pessoas a se manterem vivas. E, por isso, a esperança é o mal maior, o mal que nos impede de nos apartar do mal.

A esperança, olhando por um ângulo mais psicológico, é a concretização do instinto de sobrevivência. Ele é muito difícil de explicar, mas sua função biológica grita: manter a existência de uma espécie. Tentamos nos defender mesmo quando é óbvio que não o conseguiremos. Uma pessoa em queda livre tenta se agarrar desesperadamente a qualquer salvaguarda imaginária, e isso é uma das inerências da espécie dos caniços pensantes, mesmo que não haja tempo de pensar. O instinto é isso: uma reação imediata a uma situação que pede solução urgente, mesmo que não haja nenhuma chance racional de sucesso. Nós vamos sempre tentar e isso é algo que ajudou o homo sapiens a chegar onde está, assim como a pulex irritans, o canis lupus e outros mais que ainda povoam o planetinha azul em cuidados paliativos. Por outro lado, todas as espécies têm, de uma forma ou de outra, estratégias de reprodução que visam ampliar a quantidade de indivíduos para mantê-la ou ampliá-la, o que é uma salvaguarda para os fracassos individuais. Não há consciência de que reproduzir perpetua a espécie; há apenas os atos individuais em si, que ocorrem porque são prazerosos. 

É difícil determinar por que temos essa sanha de preservação da espécie? Seleção natural, meus caros. Aqueles indivíduos que, de uma forma ou de outra, estabeleceram estratégias de prevenção acabaram durando mais do que os valentões. Nem sempre a força é sinônimo de longevidade, e, no sentido da perpetuação, melhor ter algum cagaço.

O medo é filho deste instinto de sobrevivência, e, no final das contas, a sua ferramenta prática. Ele é certamente um dos males liberados por Pandora no mito, mas, sem ele, seria mais difícil de estarmos aqui. Viram como o sinal se inverte? Levados ao extremo, os próprios males comprovam ter um lugar nas cadeias consequencialistas dos fenômenos do universo.

No final das contas, a medida está no ponto onde a vida vale a pena, onde o balanço entre dores e prazeres pende irresistivelmente para o primeiro lado, e na insistência que fazemos em ainda ter projetos onde eles não podem prosperar. É aqui onde a assertiva de Nietzsche parece contraditória. Quando lembramos que ele é um defensor da vida levada pelo caminho da tragédia grega, com tudo o que ela carrega em si mesma, fica estranho achar que a esperança, ou seja, a vida vivida em seu limite, seja um mal. Pior ainda, o mal dos males. Na verdade, a questão é outra: Nietzsche se posiciona exatamente contra a ilusão da esperança, o que justamente impede de ver a vida como ela é. O amor fati não pode acontecer se ficar refreado por uma esperança que se fixa a um mundo ideal e infactível. Esse é o grande ponto de Nietzsche contra a esperança.

A própria palavra esperança explica esse sentido. Ela denuncia que ficamos à espera, que aguardamos sentados enquanto os navios passam ao longe, e nisso reside seu mal. É que ficamos muito acostumados às assertivas religiosas de que a esperança é o tempo de aguardar por um mundo eterno mais justo, mas isso acaba ocultando o quanto essa atitude é engessante. Quem espera nunca alcança, deveria ser o ditado popular, porque não se move, não busca, não combate, e, em resumo, não cai no fluxo da vida e a incorpora à sua própria existência. Basicamente, essa é a maneira com a qual Nietzsche encara o mito de Pandora.

Sendo assim, pisar na merda não deixa de ser um mal, e ficar na esperança de que o tempo vai limpar o corredor de entrada do prédio só vai fazer com que o fedor aumente. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Como vários outros mitos, o de Pandora está espalhado em diversos escritos e na tradição oral. A obra abaixo é onde ele é tratado com uma versão relativamente bem detalhada.

HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Curitiba: Segesta, 2012.

* O Tártaro é uma espécie de inferno da cultura grega, um submundo onde há dor e punições àqueles que ousaram contra os deuses. Semelhante ao xeol judaico? Muito. Uma mera coincidência? Sei não.

** Ou vaso, ou caixa, dependendo da narrativa. Tem até um termo usado em Portugal que não cabe bem usar no Brasil, para evitar mal-entendidos.