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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (39 - Arqueologia)

(Você tem certeza que sabe o que é a Arqueologia?)

“O passado não reconhece o seu lugar… está sempre presente”

Mário Quintana

Olá!

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Aqui no centro de São Paulo há muita probabilidade de você sair sujo, porque se há um fato inconteste é o pouco caso que se faz com a higiene pública. Mas não é esperado que essa sujeira seja barro, porque quase não há lugar onde haja terra exposta, cidade fria* e cinzenta que é a ex-Terra da Garoa. Só que ultimamente é bem possível que você carregue belos cascões em seus solados, como ocorria na infância das ruas periféricas e ainda não asfaltadas. Isso porque a prefeitura decidiu trocar as tradicionais pedras portuguesas das ruas do Triângulo** por placas de concreto. Há gente que gosta da ideia, especialmente as mulheres de salto alto. Eu sou contra até a raiz da medula, mas sou voto vencido e nada mais posso fazer que lamentar e narrar o que tem acontecido pelo centro da metrópole da solidão.

A troca de pavimento exige que o piso anterior seja removido e que a terra por baixo seja reassentada, e isso tem levado à descoberta de elementos inesperados: artefatos históricos. Como a história desta terra sempre foi muito mal contada, cada pedaço que se palmilha é um potencial sítio arqueológico que se encontra. Na Rua José Bonifácio, encontraram-se os antigos trilhos do bonde que por lá singravam. Na Paulo Egídio, vários fragmentos de cerâmica europeia indicam a existência de conjuntos de residências. Mais recentemente, na Quintino Bocaiúva, o achado mais impressionante: as antigas galerias daquilo que foi provavelmente o primeiro aqueduto da cidade. Agora as obras estão na Barão de Paranapiacaba, a conhecida Rua do Ouro. Vamos ver qual vai ser a novidade que surgirá lá.

A pergunta que surge diante da circunstância é: por que há tanta importância em manter buracos abertos em um local onde a movimentação já é difícil? A resposta passa pela nossa incapacidade tão decantada em contar a própria história, e qualquer caco de louça pode trazer informações preciosas para quem tem muito pouca preservação. Daí, pagamos o nosso preço e aproveitamos a rara ocasião da reforma para valorizar o que se localizou, ainda que seja um grande transtorno trafegar pela lama inconsueta. Por isso, é vital que tais sítios arqueológicos fiquem disponíveis pelo tempo necessário, ainda que não gostemos deles.

Isso significa que os arqueólogos terão bastante trabalho para fazer suas catalogações e verificações. Só que muitas vezes nos perguntamos onde cabem esses estudos de velharias, e, por esta razão, tento descrever agora o que é essa tal de Arqueologia.

A Arqueologia é indissociável da História. Ela é a ciência que procura desvendar os acontecimentos passados relacionados diretamente aos seres humanos através de fontes não escritas. Isso vai incluir um sem-número de objetos, que vão desde simples fragmentos de pedra até elementos surpreendentes, como a famosa Pedra de Roseta, que levou à descrição da escrita do Egito antigo.

A Arqueologia, ao contrário do que faz crer as divertidas aventuras de Indiana Jones, ou das violentas caçadas de Lara Croft, é muito mais feita de estudos do que exploração de campo. Sim, é verdade que a parte mais espetacular está nas descobertas e escavações, mas é no estudo comparativo de épocas e culturas que está a maior parte do trabalho do arqueólogo. Isso acontece porque normalmente não se encontram elementos completos que se expliquem por si sós, mas pequenos fragmentos que precisam de muito exercício de contexto para justificarem sua interpretação. Nunca poderá ser negada a afirmação de que a Arqueologia é um grande quebra-cabeças.

O nome desta ciência faz forte ligação com a filosofia. “Arché” é um termo especialmente caro para ambas, que vem do grego e significa algo como origem, começo e, por extensão, antigo. Arché era a busca dos primeiros filósofos, que queriam explicar as essências de todas as coisas, seu substrato mais primordial, e a Arqueologia vai buscar origens históricas através de vestígios culturais.

O grande sonho de qualquer pessoa interessada pelo passado é encontrar fontes escritas múltiplas, para que um determinado fato seja descrito por vários ângulos de visão e ajude a interpretar qual é mais confiável. Entretanto, quanto mais nos afastamos no tempo, menor a possibilidade de encontrá-las. Em primeiro lugar, porque os meios de registro são perecíveis: papeis, papiros e pergaminhos são materiais extremamente deterioráveis, sendo prejudicados por umidade, calor, bolor e tantos outros fatores. Mesmo os registros em pedra estão sujeitos a erosão, a ruptura, a soterramento e assim por diante. E isso ainda é pouco, porque embora cultura e linguagem possam ser consideradas contemporâneas, a realidade é que o período em que essa última esteve capacitada para ser registrada fora da fala vem de 5000 a 6000 anos atrás, uma ínfima parcela do total da aventura na Terra dos bípedes implumes, caniços pensantes, pó que retornará ao pó. Sendo assim, tudo o que vem antes só é “legível” através de vestígios, e a reconstrução do passado se torna muito mais complexa e incerta. Qualquer toquinho de pedra pode trazer informações preciosas. Os indícios são a grande matéria-prima da Arqueologia, e é através de complexas correlações que o seu trabalho anda.

Mas como podemos situar um vestígio no tempo? É bem verdade que os cacos da Rua Paulo Egídio são muito próximos, e isso permite que catálogos de objetos sejam os métodos mais simples para determinar aproximadamente sua época, mas há coisas muito mais antigas que precisam lançar mão da química para fazê-lo, em um processo comumente chamado de datação. Não vou querer aqui ficar discutindo sobre processos que não conheço, mas, pelo bem da informação, vou dar uma passadinha no assunto.

Os elementos químicos em geral possuem um marcador temporal conhecido como meia-vida, que é a metade do tempo necessário para que os componentes radioativos neles existentes se dissipem. A cada vez que o tempo de meia-vida se completa, novamente se verificará que houve perda de conteúdo, sempre decaindo pela metade. Isso significa que durante a meia-vida dos elementos químicos, existe a possibilidade de modificações na sua composição atômica, em especial a perda de nêutrons de seu núcleo. Alguns elementos são mais estáveis, outros menos, mas o mais interessante é que há certas perdas que se dão em um ritmo de tempo sempre igual. Isso é um relógio temporal inigualável. Quando conseguimos determinar a existência desses elementos instáveis em um artefato qualquer, podemos fazer a medição do quanto há nele do átomo em questão e, com isso, aproximar a sua idade. O caso mais clássico é do carbono-14, muito usado para medir a idade de matérias orgânicas, mas há outros elementos que podem ser utilizados para períodos mais antigos, já que a meia vida do carbono-14 é precisa para um máximo de 60 mil anos***. Isso não somente serve para fósseis, mas para datar rochas e outros materiais. Um pedaço de cerâmica pode ter sua idade indeterminável, mas outras informações do ambiente podem dar essa resposta indireta.

Isso tudo comprova a multidisciplinaridade da Arqueologia, que vai muito além de seu vínculo natural com a História. Ela interage com a Química, como acabamos de dizer; com a Antropologia, que fornece informações de cultura, enquanto recebe substrato das formações dessas culturas; interage com a Geologia, porque aproveita dados de estratigrafia e datação indireta para decifrar os períodos de seus achados; interage com a Arte, porque esta também carrega consigo possibilidades de concluir épocas, e assim por diante.

É importante ressaltar aqui que a Arqueologia não pode ser confundida com a Paleontologia, uma troca de atribuições muito comum de acontecer. A primeira está para a História, assim como a segunda está para a Biologia. Portanto, quando falamos de elementos culturais, estamos pensando na Arqueologia, e quando falamos do contexto natural, pensamos na Paleontologia.  Evidentemente, ambas se cruzam, por tratar da mesma matéria prima: o passado. E também pode ocorrer de uma fornecer informações para a outra, mas é bastante comum alguém achar que a Arqueologia cuida de fósseis e a Paleontologia de estátuas de deuses gregos. Não, crianças. A Arqueologia sempre se dirige para seres humanos, essa é uma regra básica.

Não há dúvidas, nestes dias em que uma polêmica, porém já iniciada reforma é aguardada para acabar com a perturbação, que haja muita gente que se incomode com o fato de que aqueles buracos nas ruas sirvam para propósitos caros e pouco práticos, mas isso é uma ilusão de ótica imediatista. Como eu já disse neste link, a história não se serve apenas como curiosidade, mas como substrato para compreender a realidade atual, com suas benesses e controvérsias, e isso a torna essencial. Isso tudo pode ser atribuído também à Arqueologia, pela intrínseca relação que ambas possuem. Se a História é útil por parametrizar decisões futuras, a Arqueologia vai no mesmo condão.

Mais ainda, a Arqueologia tem a missão antropológica de demonstrar o quanto as diferentes culturas são iguais na sua utilidade para o ser humano. Contar as histórias dos povos é, fundamentalmente, verificar como eles deram diferentes respostas para os mesmos problemas encontrados aqui ou nos confins do mundo. Todos as populações se defrontaram com questões práticas, como a alimentação e a proteção das tribos, e com problemas abstratos, que vão desde explicar seu próprio surgimento até discutir o que vai além da vida. A forma presente como pensamos hoje depende, por cadeias causais, da primeiríssima vez em que um problema colocado teve uma tentativa de solução, e somente através dos indícios e vestígios que estão ainda escondidos, ou guardados pelas mãos dos arqueólogos, que podemos formar algum tipo de noção sobre essas origens. Isso não é importante?

Por fim, não existe limite para o estudo arqueológico. Evidentemente, como já mencionei, é muito mais fácil identificar e contextualizar os canais da Rua Quintino Bocaiúva do que sistemas de aquedutos romanos de séculos anteriores ao tempo comum, mas há momentos em que, pela nossa pobreza documental, nada mais reste do que apelar para os métodos arqueológicos. Assim, um estudo pode ser voltado para coisas muito recentes, de cinquenta anos atrás, embora sempre tenhamos em mente as difíceis expedições que buscam o mais longínquo dos passados.

Em resumo, a Arqueologia é uma ciência humana que foge muito do estereótipo que lhe é atribuído e muito mais importante do que faz crer o primeiro olhar e o primeiro incômodo. Bons ventos a todos! 

Recomendação de canal:

É difícil se desvencilhar de bobagens quando o objetivo é achar bons vídeos sobre o tema no YouTube. Seja porque há muito sensacionalismo em achados, seja porque há muito viés de caráter religioso, o fato é que o tema fica muito poluído para quem quer conteúdo mais sério, e não no sentido de sisudez, mas de obter informações relevantes e desapaixonadas. Mas há um bom canal para isso, tocado pela especialista Márcia Jamille, a quem recomendo a inscrição.

https://www.youtube.com/@ArqueologiapeloMundo

**Para quem não é de São Paulo, as ruas do Triângulo compõem um conjunto de ruas com o trânsito impedido para veículos, repletas de comércio. São locais que parecem ovos de tão cheios durante o dia, e absolutamente vazios durante a noite, quando o comércio fecha. Levam esse apelido pelo formato do mapa de suas principais vias (Direita, São Bento e Quinze de Novembro):


*** A partir deste ponto, a quantidade de carbono-14 é tão baixa que não permite fazer medições precisas.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

O Futebol e suas diferentes filosofias: o saudoso Ypiranga e as guinadas que nos transformam por inteiro

(Mudanças radicais não são oriundas de desgraças, mas do dia-a-dia)

“A mesma velha canção

Apenas uma gota d'água num oceano sem fim

Tudo o que fazemos

Desmorona até o chão, embora nos recusemos a perceber”

Dust in the Wind - Kerry Livgren

 

"Dos nossos planos é o que tenho mais saudades"

Vento no litoral - Renato Russo

 

Olá!

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Diz o vulgo futebolístico que, quando alguém não sabe chutar com uma das pernas, a dita cuja só serve para descer do bonde. Pois bem. Para o máximo desgosto de Nietzsche, aquele para quem a dança era a manifestação por excelência da afirmação da vida, minhas pernas só servem para descer do bonde, ambas, quando a questão é dançar. Quer dizer, desgosto não só dele, mas da própria patroinha, que adora riscar os salões com seus pezinhos amestrados. Não posso dizer que não tentei, mas, embora ame a música, não consigo traduzir isso em expressão corporal, e quem tenta dançar comigo tem a alegre sensação de estar acompanhada de um daqueles bonecos de escapamento que ficam à frente dos postos, tão falto de articulações que sou.

Entretanto, ninguém pode alegar que eu não tenha tentado. Além da consorte, minha mãe era uma emérita pé-de-valsa, e fazia aulas de dança não para aprender, mas para manter o corpo em movimento. As duas, mãe e patroa, levaram-me para muitos salões de baile, na esperança de que meu corpo destravasse minimamente. Alguns eram tradicionais, como o Cartola, o Carinhoso ou o Independência. Outros eram modernos, incluindo aí as domingueiras do Juventus. E teve o que mais eu fui na vida: o Clube Atlético Ypiranga, no bairro de mesmo nome, muito por conta dos bailes de formatura, frequentes por lá. Fracasso, derrota. Meus pés até se coordenam, mas com um balanço harmonioso de um robô.

O Ypiranga não tem nada de novo, como se pode perceber por sua grafia. Surgiu no começo do século passado e está em uma condição especial com relação aos seus colegas fundadores da Federação Paulista de Futebol, que constam da famosa placa desta série. Ainda existe como clube, mas já não tem um departamento de futebol profissional. Se tivesse, seria o mais antigo time de futebol profissional da capital, honraria hoje cabida ao Corinthians. Assim, fica em um meio termo entre o extinto (e desaparecido) Comercial e as demais agremiações, ainda militantes nos gramados.



Só isso já basta para dar uma boa manutenção na sua história. O Ypiranga foi um concorrente bem mais incômodo que o Comercial no início de sua história. Craques de primeira magnitude passaram por lá, em especial aquele considerado o primeiro gênio do futebol brasileiro, Arthur Friedenreich. Chegou próximo dos títulos, mas não os obteve, embora possa ser que, na atual onda de reconhecer tudo quanto é festival de quadros como campeonato legítimo, surja uma tacinha que se considere como Campeonato Paulista. Tinha uma estrutura razoável, localizada próxima ao Sacomã, em uma região elevada, e, por isso, ficou conhecido como Vovô da Colina. Em um de seus muitos altos e baixos, inaugurou um campo entre as ruas dos Sorocabanos e Ituanos, que subsistiu enquanto disputou o futebol profissional, o que deixou de fazer no momento em que aconteceu o crescimento do futebol do interior, e que redundou nos mecanismos de acesso e descenso.

Hoje o Ypiranga continua ativo. Sua sede social fica localizada por entre a parte ainda fabril do bairro, com os fundos dando para o Rio Tamanduateí. Tem seu futebolzinho de base, seu basquete, sua bocha, suas piscinas e seus bailes, aqueles onde eu desfilava meus passos mecânicos, mas não tem mais seu time profissional. Eu tenho uma camisa geral do time, que é usada para outras atividades, mas que tem a elegância de manter o mesmo design do passado. Vejam que legal ela é aí em cima.

Isso tudo me faz pensar o quanto são transitórias as nossas decisões. Assim como um dia o Ypiranga sonhou ser o melhor time de futebol do Brasil, todos nós fazemos as melhores projeções futuras. Algumas vezes, chegamos até a colocar alguns projetos em andamento, mas é como diz a letra da famosa música em epígrafe, tantas vezes vilipendiada por copiadores que querem aproveitar de sua bonita melodia: tudo é pó no vento.

Eu e você e todo mundo, caro leitor, sonhamos sermos alguma coisa, termos alguma coisa, fazermos alguma coisa que foi engolida pelas circunstâncias da vida que levamos. Eu tenho pelo menos três, dentre outras miudezas. Já estou até excetuando o mundo fantástico das crianças - penso em projetos mais maduros, sustentados com alguma base mais concreta. Primeiro, quis ser músico, e fui montando bandas até concluir que não iria para lugar nenhum e escolher seguir na vida vibrante dos escritórios de contabilidade. Depois, quis me formar em uma disciplina fora das minhas atividades, e abri o bico quando percebi que faria melhor estudando para minhas habilidades já obtidas. Por fim, quis ter um canal de filosofia, mas um simples vídeo de trabalho para a faculdade me fez cair na realidade. Hoje em dia, eu ainda tenho a expectativa de gravar minhas músicas como atividade pós-aposentadoria, o que seria algo que daria uma razão para a minha vida, mas tenho severas dúvidas se vou conseguir fazê-lo. Isso porque eu ainda terei que estar sem artroses, com memória em dia e com alguma verba para comprar equipamentos que me faltam.

O projeto é simples e ambicioso. As letras estão em um caderno guardado no armário. As melodias, ainda as recordo bem. Consigo tocar os três instrumentos necessários, embora precise de um contrabaixo minimamente razoável, que dá para pagar em parcelas. Os microfones eu tenho, mas seria bom comprar algo mais apropriado para um estúdio (o famoso quartinho de despensa). Tudo bem, parcelas. Preciso também de um programa para edição, o que redunda em mais parcelas, e toda a paciência para gravar e regravar cada detalhe: notas fora, garranchos musicais, esganiçamentos de uma garganta que já não chega mais naquela altura de outrora. Basta uma covidzinha mal curada para jogar tudo isso na gaveta das desistências.

Nossas vidas têm esse grau de incerteza que são mais simples do que interrupções violentas ou contornadas por dramas. Não é preciso ter grandes histórias para contar para ter viradas irreversíveis na vida. São aqueles momentos em que recebemos sinais de que não nos adaptamos ao mundo que nos cerca, e isso acontece sem a impressão de cataclismas, apenas com conclusões de que os coaches que nos dizem que você pode tudo o que você quer estão mentindo, só isso. Isso tudo é muito distante do que as grandes tragédias que fundeiam as epopeias contadas pelos dramaturgos. Eles fazem isso justamente para dar um colorido que, no final das contas, a vida não tem. Ninguém morre quando um clube deixa de jogar futebol profissional. E, se morre, nada mais é do que a vida, que é assim mesmo: sempre se conclui.

Parece um pouco dramático demais, ou de menos. Demais porque nossas vidas nem sempre são fadadas ao fracasso, mas é como eu sempre digo: um terremoto sempre tem fim, o que não tem fim é a existência de terremotos. Quando olhamos para o conjunto da obra, podemos dizer que estamos realizados nisso ou aquilo, mas ao olhar para trás sempre se verá um longo rosário de abandonos. E é de menos porque é algo quotidiano, muito mais comum do que fazem pensar as grandes tragédias da literatura. Afinal, se não perseguíssemos sonhos, provavelmente viveríamos no mais chatíssimo dos pragmatismos. Sendo assim, é a vida como ela é.

Aristóteles falava de uma dynamis que traduzia a transição entre potência e ato, ou seja, entre a possibilidade de acontecer e o acontecimento em si. É uma espécie de força inerente que faz com que o universo se mova, e foi traduzida por inúmeros pensadores como um elemento que justificaria nossas ações e, por extensão, nossos destinos. O conatus de Spinoza, a vontade de Schopenhauer, a vontade de potência de Nietzsche, as pulsões de Freud, o élan vital de Bergson e outros são todos eles desenvolvimentos das explosões de forças criadoras, mas tanto ela arrefece, quanto refreia. O impulso que impele é o mesmo que puxa as rédeas? Talvez não, mas seu esvaziamento é real. Se o esforço humano é dedicado a perseverar na existência, quanto ele não arrefece quando se é defrontado com a sua impossibilidade?

Mas isso não significa que o abandono dos sonhos é o fim da vida. Para além do discurso autoajuda de balelas como “melhor idade”, é fato que o que resta de potência pode ser canalizado para coisas possíveis. Há muito tempo, falei sobre a tristeza das perdas, e como elas mexem com nossas mentes. Nem sempre a perda é uma desgraça (aliás, a maioria das vezes não é), e sempre temos como buscar por alternativas.

E por que isso? Se nos prendermos estritamente às expectativas que cercam nossas vidas, sempre daremos de cara para o muro. Nem se trata dos sonhos infantis de ser o jogador de futebol mais famoso do mundo, mas de quebrar o pé na véspera do jogo, por exemplo. A vida não permite planejamento, por mais que os coaches nos digam o contrário. Certo, certo… é preciso ter um mínimo de cabeça para nos prevenir de percalços. É a velha cautela e e a velha canja de galinha que não fazem mal a ninguém. Mas não adianta querer projetar cem por cento do seu dia, em cem por cento dos seus dias. Isso não existe e é só mais um motivador de ansiedade, um dos males nada raros deste mundo moderno.

Em resumo, o que eu quero dizer é que não há nada de errado quando as coisas não dão certo. Não quero me apoiar no lenitivo estoico de que as coisas são assim mesmo e não devemos sofrer com isso, mas o fato é que, ainda que não nos fiquemos nisso, precisamos saber que os caminhos não são únicos, assim como não são dicotômicos. Se não há alegria, não há tristeza obrigatória. Se não há calma, nem sempre se precisa de pressa. O Ypiranga um belo dia concluiu que não dava mais para perseguir seu objetivo futebolístico. Hoje é mais conhecido pelo seu baile? Sim, e qual o problema nisso? As vocações mudam, a vida se transforma, o destino só existe quando chegamos nele, e é isso que a vida é. Queimar muito a mufla com isso é só uma maneira de tornar a coisa mais dolorosa. Somos quem podemos ser, já dizia a letra de outra música.

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É um livro com uma visão muito pessoal, de um fã da agremiação que teve a vida toda vinculada a ela, mas traz vários dados históricos que são interessantes, e que fazem entender como essa instituição tão antiga ainda sobrevive no mundo moderno.

MURAHOVSCHI, Jacob. Clube Atlético Ypiranga. 110 Anos de História. São Paulo: Casa do Novo Autor, 2017.