Eu não estava brincando quando disse que Monte Alegre do Sul
é pequena, não. Quando estávamos de pouso na precitada cidade, encontramos
comida suficiente e bebidas em profusão, mas alguns outros pequenos itens que
tornam as viagens mais confortáveis (como repelentes) não eram muito simples de
encontrar na agradável micrópole, o que nos levou a buscá-los em outras plagas,
mais especificamente em Amparo, uma das maiores cidades da região.
A cidade possui o melhor conjunto de construções históricas
do Circuito das Águas, localizadas naquilo que é conhecido como Centro Velho.
Uma de suas marcas principais é uma praça belíssima, denominada
grandiloquentemente de “Parque Alonso Ferreira de Camargo”. O nome é originário
de um dos membros de uma família especialmente empenhada na Revolução
Constitucionalista de 32. É bastante arborizada e tem um bonito espelho d’água,
atravessado pela ponte aí embaixo:
Eu, particularmente, assisti com maior atenção a dois filmes
cujo roteiro foi desenvolvido pelo escritor em foco: Nina e O Cheiro do Ralo, ambos
em parceria com o diretor Heitor Dhalia e com o desenhista Lourenço Mutarelli. Ambos
os filmes tem muitos pontos em comum: ambiente lúgubre, clima psicológico
pesado, ação limitada, ritmo compassado e personagens problemáticos, mas que
diferem muito em seus desenrolares. Ou seja, que não se esperem estripulias
hollywoodianas. Comecemos falando de Nina.
O filme é soturno, na mesma São Paulo sombria que enxerguei
na cidade anônima do filme Ensaio sobre a
Cegueira (do qual falei aqui). Busca inúmeras referências no livro Crime e Castigo, capolavoro de Fiódor Dostoiévski, um dos
maiores mestres da literatura russa, mas não chega a se afigurar como uma
versão própria e acabada.
O filme Nina tem
um belo problema: este livro no qual se baseia. É simplesmente ousado demais
tentar filmar uma obra do porte de Crime
e Castigo, mas o roteiro acaba se saindo bem, já que se trata de uma grande
paráfrase, e não da tradução do texto para a linguagem do cinema. A ideia de
fazer um Raskólnikov feminino é boa, porque já ajuda a criar um pequeno
distanciamento. Mas o filme é também devedor de outro célebre escritor russo,
Anton Tchekhov. O filme tem a característica de pinçar a história de algum
lugar e arremessá-la à nossa frente. Não sabemos de onde Nina aparece, sabe-se
pouco de seus vínculos familiares, porque veio parar em um quarto de pensão
perdido na cidade grande.
O que é certo é que Nina extrai menos de seu psicologismo,
como faz Raskólnikov, e mais de sua vida tresloucada, regada a drogas e
festinhas de embalo. Nina é mais solta biograficamente: sabemos muito pouco
sobre ela, como já disse. Já Raskólnikov deixa explícita sua intenção de
cometer algo grandioso, apesar de pobre. Nina parece mais querer sobreviver,
Raskólnikov quer ir além do seu abandonado diploma de advogado, ser
extraordinário, uma espécie de übermacht
nietszcheano. Apesar de logo no início do filme Nina fazer a mesma distinção
entre ordinários e extraordinários (que, ao lado do assassinato da senhoria é o
principal ponto de contato com Crime e
Castigo), ela se vê às voltas com uma espécie de descuido de si mesma,
enquanto Raskólnikov filosofa, e muito.
Não vou revelar profundamente enredos, apenas mencionar que
o centro nervoso tanto do filme quanto do livro (o tal assassinato) comanda as
ações anteriores e posteriores a si constituindo um ponto de inflexão sobre
aquilo que ambos constroem mentalmente. A pressão sobre a psique de ambos é
imensa antes e após a ação criminosa. Antes, Nina é ódio que se acumula até se
purificar, não há nada além de ódio; Raskólnikov não é só isso: é calculismo
também, uma realização da sua ilusão de superioridade. Depois, Nina cada vez mais se encaminha para
a loucura – esse é seu castigo. Para Raskólnikov é pior – a consciência de que
ele não é um dos extraordinários. A sua consciência o condena antes de todos os
outros, como ocorreria a qualquer um. Raskólnikov tem algo a mais em seu
castigo, que Nina não tem – ele fracassa.
Algumas pontuações: é gratificante ver uma atriz realizar
outro trabalho que não seja aquele em que estamos habituados a vê-la. Guta
Stresser padece de acorrentamento a um personagem como nenhum outro membro da extinta
Grande Família. Marco Naninni e Marieta Severo já tinham carreiras teatrais,
cinematográficas e televisivas consolidadas antes da série. Pedro Cardoso tem
um vínculo forte com a imagem de humorista. Mesmo personagens laterais, como o
Paulão de Evandro Mesquita, contam com uma carreira musical para lhes dar caminhos
alternativos. Com Guta, não. Você consegue vincular Naninni e Irma Vap, Marieta
e Carlota Joaquina, Pedro e TV Pirata, Evandro e Blitz, todos externos à Grande
Família; mas não consegue desprender Guta de Bebel. Sua atuação nesse filme,
portanto, pode até não ser um máximo primor, mas é muito boa, passa bastante
convencimento, e faz entrever alguns caminhos que lhe proporcionem alternativas.
É um belo item de currículo. Além disso, o filme ganha completamente o jogo com
as intervenções de Lourenço Mutarelli. A ideia de substituir as ações mais
agudas pelos seus desenhos disformes e tresloucados é simplesmente genial. Se
nada no enredo e nas atuações valer a pena, o filme se basta nesta coletânea de
expressões rasgadas, a raiva e o desespero sintetizados em seus traços
angustiados.
Com relação ao filme O
Cheiro do Ralo, vemos novamente a trinca Aquino-Dhalia-Mutarelli dando as
caras, só que desta vez a participação que temos do último é diferente. Ao
invés de emprestar seu traço corrosivo, temos a transposição para a película de
seu livro homônimo. Trata-se da história de um homem, interpretado por um Selton
Mello irretocável, que vive de um ofício pouco provável: compra de
quinquilharias e antiguidades, em uma sala ordinária localizada em algum lugar
entre a Luz e o Paissandu (na minha percepção).
Para ele, Lourenço, uma atividade que parte da frieza à avareza.
O roteiro enfatiza sua personalidade autocentrada utilizando o artifício de não
atribuir nomes a quase ninguém (o nome de sua ex-noiva é conhecido, como se
para manter um peso a ser arrastado). É o amálgama do prazer sádico ao atribuir
valor ínfimo ou nulo a objetos que possuem extremo significado sentimental a
quem o traz para se desfazer. Já há a dor da separação entre o objeto que
lembra pessoas, eventos passados, glórias pretéritas, ato este que só se dá pelo
desespero de quem não tem dinheiro, banco, amigos a recorrer. É o confronto mais cruel entre o real e o
simbólico que podemos vislumbrar: tudo aquilo que há de mais significativo na
vida de uma pessoa, é mero objeto de especulação pela outra. Lourenço se
diverte com o seu poder de barganha, em jogar com os sentimentos pessoais. O
persistente cheiro que vem de seu banheiro dá nome ao filme e lhe traduz o
caráter.
Mas é um homem em permanente conflito. Tudo é sussurrado,
quase transmitido em segredo, como uma vergonha ou uma fraqueza. E, tudo isso
posto, podemos notar que ambos os filmes têm ainda outro elo, mais sutil e
importante, vinculados à obra de Dostoiévski. Os monólogos mentais de
Raskólnikov, ausentes em Nina, estão
a pleno vapor no personagem Lourenço de O
Cheiro do Ralo. Ele tem fixação por uma garçonete de um boteco barato (mais
especificamente por seu traseiro), que ameaça lhe corresponder, mas Lourenço é
um materialista irremediável. Também o corpo é mercantil, não só as
consciências. A garçonete é a sua bunda, nada mais. E o complexo de sentimentos
contraditórios vai se desenrolando, agora sim no plano psicológico que Dostoiévski
atribuiu à sua criatura.
Dois bons filmes, que recomendo, assim como recomendo também
uma visita à bela Amparo.
Recomendações:
DHALIA, Heitor. Nina.
Filme. Brasil: 2004. Cor. 90 min.
DHALIA, Heitor. O
Cheiro do Ralo. Filme. Brasil: 2007. Cor. 112 min.
Também vou indicar o livro mencionado neste texto:
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime
e Castigo. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
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