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terça-feira, 24 de novembro de 2015

Cartas náuticas para marinheiros de terra firme - 9º relato: Amparo, os filhos ilustres e os filmes psicológicos

Olá!


Eu não estava brincando quando disse que Monte Alegre do Sul é pequena, não. Quando estávamos de pouso na precitada cidade, encontramos comida suficiente e bebidas em profusão, mas alguns outros pequenos itens que tornam as viagens mais confortáveis (como repelentes) não eram muito simples de encontrar na agradável micrópole, o que nos levou a buscá-los em outras plagas, mais especificamente em Amparo, uma das maiores cidades da região.


A cidade possui o melhor conjunto de construções históricas do Circuito das Águas, localizadas naquilo que é conhecido como Centro Velho. Uma de suas marcas principais é uma praça belíssima, denominada grandiloquentemente de “Parque Alonso Ferreira de Camargo”. O nome é originário de um dos membros de uma família especialmente empenhada na Revolução Constitucionalista de 32. É bastante arborizada e tem um bonito espelho d’água, atravessado pela ponte aí embaixo:


A cidade de Amparo orgulha-se da sua vocação bandeirante, ponto de cruzamento entre os caminhos do sul de Minas Gerais, Campinas e Vale do Paraíba. Prova disso é a homenagem prestada pela colônia sírio-libanesa local, na forma de uma estátua alocada no parque já mencionado.


No cume do outeiro que faz o limite superior desse logradouro, fica a igreja dos franciscanos, a Fraternidade São Benedito, construída no início do século XX, a partir de uma escola preexistente. Viveu como local central de encontro da cidade até a construção da parte mais nova de Amparo.


Um de seus anexos são as grutas erigidas em honra a Nossa Senhora de Lourdes, a Nossa Senhora Aparecida e uma fonte encimada por São Francisco de Assis, natural padroeiro da ordem de sua criação. O conjunto todo tem aquele velho propósito de propiciar um pouco de paz aos transeuntes, no que tem sucesso.


Como não poderia deixar de ser naquela que é considerada a capital histórica do Circuito das Águas, há algumas bicas espalhadas pela localidade, com aquelas qualidades já bem conhecidas de todos nós: frescor, cristalinidade, agradável nas bocas e nas nucas calcinadas pelo calor de janeiro.


A pegada histórica de Amparo não lhe foi atribuída em vão. São inúmeros imóveis bastante antigos e bem conservados, especialmente nesse trecho da cidade. O casario térreo, feito em adobo ou taipa, dá-lhe o habitual aspecto de cidade centenária. A foto de baixo é só uma amostra: há muitas outras casas espalhadas pelo centro histórico.


Deslocando-se pela cidade, chegamos a outro conjunto arquitetônico composto por igrejas e praças. Não sei o que aconteceu com as fotos que tirei. Devo ter me atrapalhado todo na hora de copiar da máquina para o computador, há um buraco na numeração. Neste pedaço, há alguns prédios interessantes, como a Igreja do Rosário, um centro cultural, muitas lojas e dois salvados deste meu alegado sinistro: esta imagem da Mãe Amparense...


... e a estátua de um filho ilustre, o Dr. Paulino Moser Recch, médico e cientista local, que tinha como especialidade o cultivo de orquídeas e o estudo de insetos.


Mas não é só o honorável médico que é filho famoso dessa cidade. Quero destacar aqui o escritor e roteirista Marçal Aquino, que tem feito belos trabalhos no cinema nacional, e que extrapolou os limites da cidade bem mais do que nosso anterior benemérito.

Eu, particularmente, assisti com maior atenção a dois filmes cujo roteiro foi desenvolvido pelo escritor em foco: Nina e O Cheiro do Ralo, ambos em parceria com o diretor Heitor Dhalia e com o desenhista Lourenço Mutarelli. Ambos os filmes tem muitos pontos em comum: ambiente lúgubre, clima psicológico pesado, ação limitada, ritmo compassado e personagens problemáticos, mas que diferem muito em seus desenrolares. Ou seja, que não se esperem estripulias hollywoodianas. Comecemos falando de Nina.

O filme é soturno, na mesma São Paulo sombria que enxerguei na cidade anônima do filme Ensaio sobre a Cegueira (do qual falei aqui). Busca inúmeras referências no livro Crime e Castigo, capolavoro de Fiódor Dostoiévski, um dos maiores mestres da literatura russa, mas não chega a se afigurar como uma versão própria e acabada.

O filme Nina tem um belo problema: este livro no qual se baseia. É simplesmente ousado demais tentar filmar uma obra do porte de Crime e Castigo, mas o roteiro acaba se saindo bem, já que se trata de uma grande paráfrase, e não da tradução do texto para a linguagem do cinema. A ideia de fazer um Raskólnikov feminino é boa, porque já ajuda a criar um pequeno distanciamento. Mas o filme é também devedor de outro célebre escritor russo, Anton Tchekhov. O filme tem a característica de pinçar a história de algum lugar e arremessá-la à nossa frente. Não sabemos de onde Nina aparece, sabe-se pouco de seus vínculos familiares, porque veio parar em um quarto de pensão perdido na cidade grande.

O que é certo é que Nina extrai menos de seu psicologismo, como faz Raskólnikov, e mais de sua vida tresloucada, regada a drogas e festinhas de embalo. Nina é mais solta biograficamente: sabemos muito pouco sobre ela, como já disse. Já Raskólnikov deixa explícita sua intenção de cometer algo grandioso, apesar de pobre. Nina parece mais querer sobreviver, Raskólnikov quer ir além do seu abandonado diploma de advogado, ser extraordinário, uma espécie de übermacht nietszcheano. Apesar de logo no início do filme Nina fazer a mesma distinção entre ordinários e extraordinários (que, ao lado do assassinato da senhoria é o principal ponto de contato com Crime e Castigo), ela se vê às voltas com uma espécie de descuido de si mesma, enquanto Raskólnikov filosofa, e muito.

Não vou revelar profundamente enredos, apenas mencionar que o centro nervoso tanto do filme quanto do livro (o tal assassinato) comanda as ações anteriores e posteriores a si constituindo um ponto de inflexão sobre aquilo que ambos constroem mentalmente. A pressão sobre a psique de ambos é imensa antes e após a ação criminosa. Antes, Nina é ódio que se acumula até se purificar, não há nada além de ódio; Raskólnikov não é só isso: é calculismo também, uma realização da sua ilusão de superioridade.  Depois, Nina cada vez mais se encaminha para a loucura – esse é seu castigo. Para Raskólnikov é pior – a consciência de que ele não é um dos extraordinários. A sua consciência o condena antes de todos os outros, como ocorreria a qualquer um. Raskólnikov tem algo a mais em seu castigo, que Nina não tem – ele fracassa.

Algumas pontuações: é gratificante ver uma atriz realizar outro trabalho que não seja aquele em que estamos habituados a vê-la. Guta Stresser padece de acorrentamento a um personagem como nenhum outro membro da extinta Grande Família. Marco Naninni e Marieta Severo já tinham carreiras teatrais, cinematográficas e televisivas consolidadas antes da série. Pedro Cardoso tem um vínculo forte com a imagem de humorista. Mesmo personagens laterais, como o Paulão de Evandro Mesquita, contam com uma carreira musical para lhes dar caminhos alternativos. Com Guta, não. Você consegue vincular Naninni e Irma Vap, Marieta e Carlota Joaquina, Pedro e TV Pirata, Evandro e Blitz, todos externos à Grande Família; mas não consegue desprender Guta de Bebel. Sua atuação nesse filme, portanto, pode até não ser um máximo primor, mas é muito boa, passa bastante convencimento, e faz entrever alguns caminhos que lhe proporcionem alternativas. É um belo item de currículo. Além disso, o filme ganha completamente o jogo com as intervenções de Lourenço Mutarelli. A ideia de substituir as ações mais agudas pelos seus desenhos disformes e tresloucados é simplesmente genial. Se nada no enredo e nas atuações valer a pena, o filme se basta nesta coletânea de expressões rasgadas, a raiva e o desespero sintetizados em seus traços angustiados.

Com relação ao filme O Cheiro do Ralo, vemos novamente a trinca Aquino-Dhalia-Mutarelli dando as caras, só que desta vez a participação que temos do último é diferente. Ao invés de emprestar seu traço corrosivo, temos a transposição para a película de seu livro homônimo. Trata-se da história de um homem, interpretado por um Selton Mello irretocável, que vive de um ofício pouco provável: compra de quinquilharias e antiguidades, em uma sala ordinária localizada em algum lugar entre a Luz e o Paissandu (na minha percepção).

Para ele, Lourenço, uma atividade que parte da frieza à avareza. O roteiro enfatiza sua personalidade autocentrada utilizando o artifício de não atribuir nomes a quase ninguém (o nome de sua ex-noiva é conhecido, como se para manter um peso a ser arrastado). É o amálgama do prazer sádico ao atribuir valor ínfimo ou nulo a objetos que possuem extremo significado sentimental a quem o traz para se desfazer. Já há a dor da separação entre o objeto que lembra pessoas, eventos passados, glórias pretéritas, ato este que só se dá pelo desespero de quem não tem dinheiro, banco, amigos a recorrer.  É o confronto mais cruel entre o real e o simbólico que podemos vislumbrar: tudo aquilo que há de mais significativo na vida de uma pessoa, é mero objeto de especulação pela outra. Lourenço se diverte com o seu poder de barganha, em jogar com os sentimentos pessoais. O persistente cheiro que vem de seu banheiro dá nome ao filme e lhe traduz o caráter.

Mas é um homem em permanente conflito. Tudo é sussurrado, quase transmitido em segredo, como uma vergonha ou uma fraqueza. E, tudo isso posto, podemos notar que ambos os filmes têm ainda outro elo, mais sutil e importante, vinculados à obra de Dostoiévski. Os monólogos mentais de Raskólnikov, ausentes em Nina, estão a pleno vapor no personagem Lourenço de O Cheiro do Ralo. Ele tem fixação por uma garçonete de um boteco barato (mais especificamente por seu traseiro), que ameaça lhe corresponder, mas Lourenço é um materialista irremediável. Também o corpo é mercantil, não só as consciências. A garçonete é a sua bunda, nada mais. E o complexo de sentimentos contraditórios vai se desenrolando, agora sim no plano psicológico que Dostoiévski atribuiu à sua criatura.

Dois bons filmes, que recomendo, assim como recomendo também uma visita à bela Amparo.

Recomendações:

DHALIA, Heitor. Nina. Filme. Brasil: 2004. Cor. 90 min.

DHALIA, Heitor. O Cheiro do Ralo. Filme. Brasil: 2007. Cor. 112 min.


Também vou indicar o livro mencionado neste texto:

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

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