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terça-feira, 11 de outubro de 2016

Sobre a monadologia e a moldagem dos pontos de vista (Pequeno guia das grandes falácias - 32º tomo: a falácia relativista)

Olá!


Vocês já ouviram falar na expressão “olho da mira”? Ela se refere ao fato de que, assim como podemos ser destros ou canhotos, temos um olho cuja acuidade prepondera sobre o outro. É muito fácil perceber isso: olhando fixamente para um objeto próximo, tape um olho e depois o outro. Você perceberá que a visão conjunta que você obtém com os dois olhos abertos será mais semelhante para um dos olhos isoladamente do que para o outro. Esse será o seu olho de mira, também chamado de olho diretor ou dominante, que você provavelmente utilizará para suas necessidades de destreza visual, como competições de tiro, marotos olhares por buracos de fechadura, utilização de lunetas e microscópios, e outras atividades monoculares.

Isso significa que o seu outro olho é inútil? Mas é óbvio que não. Compare com a situação da cobrança de um pênalti. Em momento de tão intensa gravidade, você utilizará sua melhor perna para atingir a bola, mas a outra perna também é utilizada, como elemento de apoio. E certamente todos já passamos pelo vexatório escorregão da perna de apoio, que desperdiçará toda força ou jeito aplicados pela perna de chute. O mesmo acontece com os olhos – um prepondera sobre o outro, mas o sistema visual humano evoluiu para a boa visualização do ambiente frontal amplo, e por isso, ao fazermos o mesmo teste do tapa-olho observando o horizonte, não perceberemos diferença alguma.

Tudo isso para dizer que nós, seres humanos, temos um negócio chamado “ponto de vista”, que não só é físico, mas também psicológico, e que são expressos especialmente através de nossas opiniões, a boa e grega doxa. E a sua diversidade é que dá encanto ao debate e, em última instância, faz com que a humanidade cresça no seu exato oposto – o conhecimento, o bom e grego logos. Afinal, para que algo reputado por saber seguro tenha suas bases abaladas, alguém um belo dia precisou opinar contrariamente, e a partir daí correr atrás de novas evidências. É dessa forma que se constrói o conhecimento.


Só que – como já pude escrever neste texto – a perspectiva é algo difícil de desassociar de nosso modo de ser e de viver. Uma vez plantada, é raiz difícil de arrancar. Isso não é essencialmente um problema, que somente ocorre quando uma pessoa passa a tomar seu ponto de vista sistematicamente e desprezando a alteridade. E, principalmente, quando reputa não existir objetivamente uma verdade além da sua. Por que será que isso acontece?

Hoje, tentarei expor a teoria de perspectiva de Leibniz e de que maneira ele entende que uma verdade pode ser múltipla.

Leibniz viveu e atuou especialmente no século XVII, período em que a humanidade vivenciou os princípios daquilo que ficou conhecido como Revolução Científica. Eram os tempos de Francis Bacon e René Descartes, em que o misticismo e a metafísica teocêntrica da Idade Média davam lugar à precisão das metodologias de estudo. A especulação filosófica busca um novo alicerce, que, em certo aspecto, relembra os pré-socráticos. O objeto de estudo volta a ser o cosmos, mas, desta vez, desprendido de seus aspectos metafísicos: o mundo é investigado pelo o que ele é em si mesmo, o seu aspecto material. Desta forma, o fundamento aristotélico das causas, tão caro à escolástica até então em voga, perdeu boa parte do seu sentido. Vou dar uma passada nele para que o texto fique mais claro e melhor ilustrado. Tenham um pouquinho de paciência.

Aristóteles, mais que qualquer outro antecessor, elaborou um sistema sofisticado para explicar o que as coisas são. Como pudemos ler neste texto, a busca filosófica primordial foi a arché, o elemento-base que estaria no substrato de todo o cosmos. Mas Aristóteles percebe que esse é apenas um dos aspectos que constituem o Ser, essa estranha figura que configura a essência de cada coisa. Há outras questões a serem consideradas.

Aristóteles olha para o mundo e percebe que há uma correlação entre causa e efeito que o coloca em movimento. Tudo o que se move é posto em movimento por uma causa que o antecede. Tudo é derivação de algo que lhe deu origem, e essa regressão pode se dar ad infinitum (até chegar ao Primeiro Motor Imóvel, que já tratei aqui e que não é relevante para o presente tema). Desta forma, tudo o que temos à nossa frente tem causas, são a consequência de uma determinada causa, que nosso filósofo entende ser dividida em quatro. Para explicar, vou recorrer a um exemplo banal. Penso na xícara de café que tenho diante de mim neste momento. Ela é assim:


Vejo que ela é composta de alguns elementos: uma massa que foi cozida em um forno, que chamamos de porcelana; um esmalte que lhe protege e dá brilho, e pela tinta de sua decoração. Estes são os elementos que constituem a parte física da xícara – do que ela é feita. Por causa da utilização destas matérias, é possível dar existência à xícara. São a sua causa material.

Mas porcelana, esmalte e tinta não constituem obrigatoriamente uma xícara. Com esses mesmíssimos elementos é possível manufaturar inúmeros objetos: um vaso, um cinzeiro, um bibelô e até mesmo o pires em que posso repousar minha xícara. O que faz com que uma xícara seja reconhecida como tal? É a maneira com a qual os elementos materiais são organizados: uma concavidade que permita conter líquidos, um fundo chato para assentar em uma superfície plana, uma asa para enlaçar o dedo e levá-la à boca. Em miúdos: a sua forma. A existência de uma ideia de arranjo material que dá origem a um objeto que podemos reconhecer é a causa formal.

A causa formal e a causa material constituem o que Aristóteles chamava de ousia, ou seja, a substância de um objeto. Trata-se da essência das coisas que existem, a soma da ideia com a concreção. Mas essas duas causas, embora suficientes para reconhecer um objeto, não explicam todos os fatores e causas que o levam a ser como é. Retomando a xícara, não basta que eu reconheça sua forma e saiba que componentes físicos a compõem. Alguém teve que ter o impulso de fazê-la e dispender algum esforço para traduzir o mapa mental da forma nos elementos materiais e criar, efetivamente, a xícara que tenho à minha frente. No caso, é uma peça industrial, feita em máquinas seriadamente. Mas poderia ter sido feita por um artesão, que preparou a massa, moldou, coseu, esmaltou e decorou. As coisas são como são porque alguém as fez assim: um artífice. É a causa eficiente, que tem esse nome porque é esta causa que põe em prática a substância, ou seja, que une forma e matéria e possibilita a existência.

Por fim, minha xícara de café tem uma serventia. Obviamente, é portar o café que me delicia e que gela célere em manhã tão fria. A causa eficiente dá forma à causa formal a partir da causa material porque tudo existe para algum propósito, e este é o pulo do gato da metafísica de Aristóteles. Mais do que a forma e a matéria, e para explicar a noção do artífice, as coisas tem uma finalidade – nada está no cosmos por um mero acaso, há em tudo uma teleologia possível. É a causa final – o impulso que leva a causa eficiente a se movimentar.

Percebem como as duas últimas causas são aderentes ao pensamento teocêntrico medieval? Um Deus que é o artífice maior e que cria todas as coisas, com o propósito de dar vazão à sua perfeição. Por isso, São Tomás de Aquino e contemporâneos fizeram uso e abuso dos escritos metafísicos aristotélicos – em suas traduções árabes, bem entendido.

Mas a tropa de Bacon e Descartes tinham outras concepções em mente. Observando as teses de Aristóteles, apenas as causas material e eficiente tinham algum significado para eles: do que é feito o cosmos e como ele se constitui – os seus fenômenos. A forma é uma construção mental e a finalidade é ilusória, ou, no mínimo, desinteressante. Desta forma, dois dos conceitos basilares aristotélicos iam para o ralo. A substância sem a forma ficava de pé quebrado e a teleologia caía na mera especulação.

É aqui que vai entrar Leibniz, utilizando uma noção de perspectiva e relatividade inovadora. É preciso ter em mente, antes de tudo, que Leibniz era, ele mesmo, um grande entusiasta da Ciência e matemático de relevo, descobridor do cálculo infinitesimal, não se constituindo em religioso ranzinza ou metafísico viajandão que não queria se desprender do conforto de suas teses. Leibniz observa que a nova visão científica é plenamente válida. A descrição mecânica dos movimentos dos corpos e sua constituição física são reais e imprescindíveis, mas que não podem ser tomados por unívocos. De fato, trazendo o exemplo do aprisionamento de Sócrates*, Leibniz traz à berlinda o questionamento ético: o que leva Sócrates ao recolhimento é seu próprio corpo – seus músculos, ossos, tendões e membros, como explica uma perspectiva mecânica. Mas o que o impede de sair de lá? Que tipo de força o detém e inabilita os mesmos músculos, ossos, tendões e membros? Ora, o cumprimento da lei. Esse é um fenômeno que não pode ser explicado pelo ângulo puramente material, até mesmo porque perverte o instinto de sobrevivência. Há uma implicação moral na inércia socrática, que é o bem obtido pelo exemplo do cumprimento da lei, da virtude em manter uma ordem social. Uma finalidade, em suma. Uma causa final.

Essa visão conciliatória de Leibniz permite verificar que ambos os prismas são válidos sem serem mutuamente excludentes. Há uma filosofia perene, que é válida para todos os tempos, e uma filosofia nova, que se presta à análise do aqui e agora. Essa filosofia nova é a que se identifica com a Ciência que, como eu já disse, é plenamente válida e preciosa, no que tange à explicação dos fenômenos. Chama uma de “verdades de fato” e a outra de “verdades de razão”. Uma vem da experiência dos fenômenos, outra do puro raciocínio.

Mas precisamente por não conceber um universo limitado ao seu mecanicismo, Leibniz procura enxergar uma nova metafísica, uma espécie de força motriz que o mobilizaria. Sempre lembrando que estamos em uma época onde termos tão comuns hoje em dia, como gravidade, termodinâmica, atomística e outros ainda não estavam bem definidos, Leibniz não consegue se satisfazer com as explicações de Descartes sobre a mecânica dos corpos. E, nesse sentido, comprova sua genialidade como cientista.

Descartes havia estipulado que, em meio às variáveis que sustentavam o movimento dos corpos, existia uma constante: o produto da massa do objeto pela sua velocidade (m.v). Leibniz percebe um erro nessa equação, e descobre que a constante requisitada por Descartes era o produto da massa do objeto pela sua velocidade ao quadrado (m.v²), o que significa que não é apenas a velocidade, mas a aceleração (variação na velocidade) que compunha a equação. Esta é a conclusão científica. Mas há ainda uma especulação a ser decifrada: o que é a causa da aceleração? O que propicia a energia cinética? O que é essa força que interfere no movimento dos corpos? Para explicar essas e outras questões, Leibniz cria o conceito de mônada, que tentarei explicar com bastante calma, porque é bem complexo.

Como foi possível perceber até agora, Leibniz entende haver alguma coisa por trás das energias observáveis nos fenômenos: na aceleração progressiva de uma pedra que cai de um despenhadeiro, na resistência de uma bigorna à pancada de uma marreta, na ductibilidade de um fio de ouro que se estica sem se romper. Apesar de se tratarem aparentemente apenas de matérias, bastante diferentes entre si, é possível perceber que, entre elas, há algumas coisas em comum. Por exemplo, também a bigorna e o ouro cairão progressivamente mais rápido morro abaixo, também a pedra e o ouro terão alguma tenacidade com relação à pancada e também a pedra e a bigorna tentarão manter alguma unidade se submetidas à temperatura e à tração, muito embora de maneira bem mais humilde com relação ao ouro. Desta forma, Leibniz percebe uma unidade a partir da multiplicidade. Todas as coisas no universo seriam compostas por algo que combinaria o aspecto material com uma força originária, que foram batizadas de mônadas, termo vindo do grego monas (unidade). Este nome foi utilizado dada a simplicidade das mônadas, que nada mais seriam que centros de forças, uma espécie de átomo imaterial, igual em todos os lugares e em todos os tempos. Assim, tudo é mônada: a pedra, a bigorna e o fio de ouro; a montanha de onde se desprendeu a pedra, o martelo que golpeia a bigorna, o fogo que derrete e dilata o ouro; a natureza que contém a montanha e a pedra, o ferreiro que agride a bigorna com o martelo e a mente do ourives que distende o ouro em fio; todos os seus corpos e seus espíritos. Absolutamente tudo é composto de mônadas e da combinação de mônadas. Até mesmo Deus é mônada, segundo Leibniz. Uma mônada de onde emanam todas as outras.

Bem, se tudo é composto por mônadas, por que as coisas são tão diferentes entre si? Porque, apesar de unas e permear todo o universo, as mônadas são moldáveis. É como se cada uma delas fosse uma massa de argila perfeitamente igual às outras, mas que pudessem ser modificadas a partir de elementos externos. Cada uma destas formas tomadas pela mônada é chamada de representação, e é dada pela capacidade que a mesma tem de “perceber”. A percepção, no sentido monadológico, não é a consciência de algo, mas a característica de receber interferências. Desta maneira, a forma que uma mônada toma tem a ver consigo mesma e com tudo o mais que existe ao seu redor. Cada interferência provoca uma ação interna na mônada, que a faz modificar aquilo que representa.

A mônada não é espacial e não é temporal. É um centro de atividade, e que, por isso mesmo, possui um impulso para realizar as suas percepções, como se possuísse uma espécie de vontade. A essa volição, Leibniz deu o nome de apetição, que traduz esse “apetite” em ser ativa. Unindo suas capacidades de percepção e sua predisposição em agir, a mônada possui a propriedade de conter o universo inteiro em si mesma, já que, sendo uma e sendo componente fundamental universal, pode se tornar absolutamente qualquer coisa.

Se pensarmos nas modernas teorias que colocam a matéria como uma forma de energia, veremos que a ideia das mônadas não é tão impensável assim. Mas há ainda algo mais intrigante: a mente humana é mônada tal qual qualquer outra, e contém o universo inteiro como qualquer outra. Por isso, tem duas características:

1) Pode conhecer absolutamente tudo através do raciocínio, atingindo as verdades de razão. Só não o faz por suas próprias limitações. Para supri-las, precisa lançar mão da experiência, buscando no objeto exterior algo que já existe em si mesma (verdades de fato).

2) Pode ser atravessada de diferentes formas pela percepção, mas, além de perceber, também apercebe, ou seja, tem consciência e registro da percepção. Desta forma, cada mente é moldada de uma maneira específica e única. A maneira como se montam as perspectivas de cada uma, e como refletem as verdades contidas em si e no mundo exterior serão sempre diferentes, formando o bom e velho e já citado ponto de vista.

Ficou claro? É evidente que esta é apenas uma das muitas teorias da diversidade que existem em Filosofia, e que, infelizmente, acabou ganhando um certo aspecto místico, e é possível encontrar, aqui e ali, pretensos gurus que alegam “tratar a mônada” e outras derivações, como se fosse sinônimo de espírito. Mas é uma teoria interessante para demonstrar a dificuldade em se estabelecer algum tipo de objetividade para a verdade.

Mas será que ela é sempre impossível? Será que às vezes não nos deitamos no berço esplêndido da perspectiva para defender pontos de vistas objetivamente equivocados? É aqui que nosso humilde Pequeno Guia vai entrar.

Peguemos o eterno debate entre evolução e criação. Há abundantes evidências da primeira: registro fóssil, anatomia comparada, embriologia comparativa, filogenética, distribuição geográfica, convergência evolutiva, órgãos vestigiais... É sempre possível alegar que há um Deus a guiar todo esse processo, o que é uma perspectiva válida, diga-se. O que é inválido é alegar que todas essas evidências são muito relativas, que PARA MIM todas são falsas. É a falácia relativista.

Este problema ocorre quando o ponto de vista não se aplica a um argumento opinativo. É claro que o ponto de vista é vital e plenamente lícito ao se apreciar algo subjetivo, como uma obra de arte. Neste caso, uma pintura pode ou não ser bonita PARA MIM, independentemente do que dizem as outras pessoas. Mas não tenho como afirmar que 1+1=3 PARA MIM. Se eu lido com uma verdade objetiva, preciso contestá-la com refutações igualmente objetivas, e não a colocando na conta da opinião e no relativismo.

Portanto, meus caros amigos, a diferença entre a validade e a falaciosidade de um ponto de vista está no “alvo” de seu argumento. Se ele se volta a um assunto subjetivo, realmente estamos diante de algo relativo. Do contrário, trata-se de uma bela desculpa para se opor infundadamente, coisa tão comum em nosso dia-a-dia. Afinal de contas, a verdade sempre é relativa aos objetos a serem estudados, e não à opinião das pessoas que os estudam.

Recomendação de leitura:

Nada melhor que recorrer à fonte primária para compreender bem um determinado conceito. Segue o texto onde Leibniz melhor destrincha o conceito de mônada.

LEIBNIZ, Gottfried. A monadologia e outros textos. São Paulo: Hedra, 2009.

* Para quem não sabe, Sócrates foi aprisionado e condenado à morte por ingestão de veneno porque praticava atos em descompasso com os costumes e divindades gregas, subvertendo assim a juventude da época. Pelo menos, essa foi a causa declarada de sua condenação.