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terça-feira, 24 de maio de 2016

Pequeno guia das grandes falácias - 25º tomo: o dicto simpliciter (falácia do acidente) - e uma discussãozinha sobre as exceções da lei

Olá!


Quem me acompanha aqui neste espaço sabe que há coisa de dois anos minha mãe morreu, cabendo a mim correr atrás de todos os trâmites necessários para velório, enterro, registro de óbito e inventário. Nem vou ficar aqui arrolando uma por uma a quantidade insuportável de punhetações burocráticas necessárias para dar cabo destas tarefas, ainda mais em um momento em que você se encontra tão fragilizado. Parece que o cadáver fica exposto ao vento enquanto você cumpre a série infindável de obrigações. Mas eu tive um desavento adicional: pespegaram-me uma bela multa de trânsito. O motivo foi trafegar em hora de rodízio com veículo de placa restrita, imputando-me quatro preciosos pontos na carteira e lesando-me em injustos R$ 85,13. Não havia dúvidas. Lá estava a fotografia da traseira do meu carro e o inequívoco horário de 7:15.

Pagar ou recorrer? Reconheço que cometi o ilícito, como restou bem comprovado, mas, dadas as circunstâncias, não seria perdoável a conduta? Juntei meus documentos e resolvi impetrar o tal recurso.

Cópia da multa, cópia da CNH, cópia do óbito, cópia da nota do cemitério, contendo o horário do velório, além da declaração do hospital dizendo o horário em que o corpo da finada deixou o estabelecimento. Faltava redigir o requerimento, e, para isso, contei com os bons préstimos do vindouro causídico de casa, o filho Danillo. Ele removeu alguns “ni-qui-qui” que eu coloquei na primeira versão e me explicou que a lei tem um “espírito”, um intento (uma espécie de geist hegeliano?), e que a mesma não pode ser interpretada duramente, só na letra. É preciso compreender o que se quer regulamentar e se uma possível punição é aplicável ou não. Afinal, mais do que cagar regras, a lei pretende distribuir justiça.

No meu caso específico, a coisa estava no seguinte ponto: a lei de rodízio tem um objetivo que flutua entre causas ambientais e fluxo do trânsito, sendo que o meio utilizado é a restrição à circulação de veículos. Pois bem. Estes objetivos reservam uma punição para quem a infringir. Penaliza-se a desobediência, a distração, a negligência, e somente assim a lei funciona. Se alguém se propõe a burlá-la, corre o risco de pagar. Acontece que meu caso era o que conhecemos por motivo de força maior. É preciso resolver tudo em um piscar de olhos, e não dá para deixar de lado um carro em uma hora dessas, dependendo de caros táxis ou de lentos ônibus. E é aí que entra o tal do espírito da lei. Ela não pretende restringir cegamente a utilização de um meio que, mais do que facilitar, é imprescindível para desenroscar mais rapidamente os liames legais que nos fazem tropeço em momento debilitante. Com isso, ganhei o recurso!

No que baseei minha defesa? No ponto fora da curva. Fugi de uma situação em que a regra geral sugeriria a punição, mas o fato é que as exceções existem, e quando elas são negadas caímos em uma falácia chamada de Dicto Simpliciter, ou falácia do acidente.

Pegar a contramão é, às vezes, a única coisa a fazer

Dicto Simpliciter é a redução do termo latino dicto secundum quid ad dictum simpliciter, ou algo como “da afirmação qualificada para a não-qualificada”. Em resumo, trata-se de uma generalização tomada como obrigatória quando na verdade ela não é.

E o termo “falácia do acidente”? Tá meio óbvio, né? Acidente é tudo aquilo que é casual, que escapa a uma regra geral, como foi exatamente o caso que mencionei no começo deste texto. Afinal de contas, não é todo dia que você tem que sair apressado de casa para enterrar sua mãe. Mas, seguindo a caneta dura da regra geral, eu teria que ser multado. Dá para perceber como é maléfica a inexistência de exceções?

Acontece que, pelo fato de existir uma regra, o dicto simpliciter somente é aplicável quando se tratar de uma exceção justificável. Mantendo o foco na questão da lei, podemos lembrar que são apenáveis os comportamentos desviantes, ou seja, aqueles que escapam à norma – e que constituem exceções. Ao furar o rodízio, já estou caindo na exceção, e a penalidade é plenamente justificável, gostemos ou não. É preciso, portanto, que haja a exceção da exceção; no caso, o motivo de força maior, para que a lei geral não seja aplicada.

Esse tipo de discussão pode ser ampliado imensamente. Ainda no campo da legalidade e das cominações, podemos encontrar muitos paradoxos que nos fazem pensar insistentemente em como a própria defesa dos direitos podem largamente usar falácias com caras legítimas. Um exemplozinho básico:

“Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...)”
Constituição Federal (1988) – grifo meu

Os jurisconsultos chamam isso de princípio da isonomia, e é uma das vigas de sustentação da democracia. No entanto, o Código de Processo Penal estabelece, desde 1941, em seu artigo 295, o instituto da prisão especial, onde são garantidas internações provisórias apartadas para uma série de cidadãos, conforme se pode ler abaixo:

“Art. 295 – Serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva:

I - os ministros de Estado;
II - os governadores ou interventores de Estados ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários, os prefeitos municipais, os vereadores e os chefes de Polícia;
III - os membros do Parlamento Nacional, do Conselho de Economia Nacional e das Assembléias Legislativas dos Estados;
IV - os cidadãos inscritos no "Livro de Mérito";
V – os oficiais das Forças Armadas e os militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
VI - os magistrados;
VII - os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República;
VIII - os ministros de confissão religiosa;
IX - os ministros do Tribunal de Contas;
X - os cidadãos que já tiverem exercido efetivamente a função de jurado, salvo quando excluídos da lista por motivo de incapacidade para o exercício daquela função;
XI - os delegados de polícia e os guardas-civis dos Estados e Territórios, ativos e inativos”.

Ok. Não vou fazer grandes juízos legais, vou só fazer algumas elucubrações, dividindo a lista em três. No primeiro caso, mesmo constituindo exceções ao regramento constitucional, há funções públicas descritas nessa lei em que se pode justificar a prisão especial. São eles:

“II – (...) os chefes de Polícia;
(...)
V – os oficiais das Forças Armadas e os militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
VI - os magistrados;
(...)
X - os cidadãos que já tiverem exercido efetivamente a função de jurado, salvo quando excluídos da lista por motivo de incapacidade para o exercício daquela função;
XI - os delegados de polícia e os guardas-civis dos Estados e Territórios, ativos e inativos”.

Não se trata de propiciar conforto ou de apartar do convívio dos demais presos a estes cidadãos, mas é uma questão de segurança mesmo, dada a característica coativa de suas funções. Falando genericamente, presidiários não têm essencialmente nada contra universitários ou sacerdotes, mas têm contra juízes, promotores, jurados e policiais. A prevenção visa proteger uma classe de cidadãos que se ocupam de funções coercitivas, que poderiam sofrer injúrias e ameaças ainda que não condenados, e não apenas os indivíduos em si. Há o privilégio, mas este parece ser justificável.

Na segunda categoria, há aqueles casos dúbios. São eles:

“I - os ministros de Estado;
II - os governadores ou interventores de Estados ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários, os prefeitos municipais, os vereadores e (...);
III - os membros do Parlamento Nacional, do Conselho de Economia Nacional e das Assembléias Legislativas dos Estados;
(...)
IX - os ministros do Tribunal de Contas;”

Nestes casos, é discutível se a proteção é justificável ou não. Legisladores fazem leis e governantes as aplicam, de modo a poder desagradar a carceragem em geral, mas não são coisas obrigatórias na função. Um deputado pode passar quarenta anos na Câmara sem escrever uma única linha sobre legislação penal, e, mesmo assim, se aproveitar desta lei. Por outro lado, é possível alegar que, sendo a prisão provisória, não há necessariamente a perda do cargo, e o dito cujo pode sofrer coações irresistíveis no período em que se encontrar alojado, caso se misture aos presos da plebe rude. Enfim, são as intermináveis teses jurídicas, das quais pouco me familiarizo e apenas mando meus palpites.

E, finalmente, têm também aqueles que... bem...

“(...)
IV - os cidadãos inscritos no ‘Livro de Mérito’;
(...)
VII - os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República;
VIII - os ministros de confissão religiosa (...)”

Por que estas três classes de cidadãos caem na exceção da lei? Boa pergunta. Mas temos algumas dicas. A lei em questão foi promulgada em 1941, ocasião em que o acesso ao ensino superior era um sonho praticamente inalcançável para o povão. E, neste caso, não se tratava da plebe mais ignara (valendo-se da expressão de Stanislaw Ponte Preta). Mesmo os remediados tinham pouco acesso à universidade, que era ocupada predominantemente por classes abastadas. Era o tempo em que havia poucos estabelecimentos e poucas vagas, com custo altíssimo nas escolas particulares e com vestibular intransponível nas públicas. Financiamento? Rá, rá, rá... Só do papai. E como papai não trabalhava nas fábricas, nem arava no campo, o funil tinha um bocal muito estreito. Ser diplomado, portanto, era praticamente um distintivo menos de saber, e mais de classe social. Livrar a cara dos formados da prisão comum significa que, por tabela, o conteúdo desta lei traz proteção clara para um determinado segmento da sociedade, em detrimento dos demais. Segundo ponto: sendo o Brasil um país não oficialmente laico na ocasião, a proteção dada aos ministros de confissão religiosa dava, por consequência, uma maior cobertura aos sacerdotes, mas também extensível a outros credos, o que se mantém até hoje. E o misterioso “Livro de Mérito” é uma remanescência dos tempos da nobiliarquia. Ao invés de dar o título de barão ou marquês para determinado conspícuo, insere-se o nome do indigitado em tal livro, que, em rapidíssima consulta, percebi que só serve para dar prisão especial e fazer afagos no ego.

E concluímos, com isso, que tais alíneas foram inseridas claramente por questões historicamente elitistas, porque na época da proclamação desta lei eram formadas por indivíduos das castas mais altas da população. Não há outra justificativa para alguém receber tal privilégio, bem como ser mantida em vigor uma lei que está em flagrante oposição a um dispositivo pétreo constitucional.

É possível perceber como o dicto simpliciter depende de interpretação? Em uma única lei podemos encontrar exceções injustificáveis, justificáveis e discutíveis, dependendo do ângulo com o qual enxerguemos a situação. Vejam como a Constituição estabelece a regra e o CPP a exceção. Para alguns juristas, este desacordo faz com que a disposição do Código seja nula; para outros, a exceção é válida. Pois é. A questão da falácia também tem sua face de entendimento e opinião.

Mas a coisa pode se complicar muito. Questões como pena de morte, aborto e eutanásia vão de encontro à afirmativa de que a vida é um valor absoluto, um direito inalienável ou uma dádiva divina. E provam como a falácia do acidente muitas vezes depende menos de lógica e mais de convicção de quem a profere. Quando campeia por sendas polêmicas, é difícil atribuir a uma afirmação um valor de verdade. E daí uma rede intrincada de argumentos contrapostos se estabelece, sem chegar a conclusão alguma. Por isso, o dicto simpliciter, como falácia, nem sempre tem configuração confortável.

Mas, para o gáudio daqueles que se sentem incomodados diante de uma aporia, vou colocar aqui um exemplo canônico de falácia do acidente, vindo direto da antiguidade clássica. Eis um trecho da República, de Platão:

Céfalo – (...) Palavras maravilhosas. Devido a isto, tenho as riquezas em grande apreço, não para todos, mas somente para aqueles homens moderados e cautelosos. Jamais enganar alguém ou mentir, ainda que inadvertidamente, nem ser devedor, quer de sacrifícios aos deuses, quer de dinheiro a uma pessoa, e depois falecer sem nada recear. Para isso, a riqueza é de grande serventia. Existem várias outras vantagens. Porém, mais do que tudo, ó Sócrates, é por causa desta finalidade que eu considero a riqueza utilíssima para o homem judicioso.

Sócrates — As tuas são palavras maravilhosas, ó Céfalo. Mas essa virtude de justiça resume-se em proferir a verdade e em restituir o que se tomou de alguém, ou podemos dizer que às vezes é correto e outras vezes incorreto fazer tais coisas? Vê este exemplo: se alguém, em perfeito juízo, entregasse armas a um amigo, e depois, havendo se tomado insano, as exigisse de volta, todos julgariam que o amigo não lhe as deveria restituir, nem mesmo concordariam em dizer toda a verdade a um homem enlouquecido.

Céfalo — Estou de acordo.

Sócrates — Como vês, justiça não significa ser sincero e devolver o que se tomou”.

Temos aqui o debate entre Sócrates, Céfalo e Polemarco, que tentam chegar à conclusão do que seja justiça. É justo restituir a alguém tudo o que lhe foi tomado em empréstimo? Se respondermos que sim, incondicionalmente, cairemos fatalmente na falácia do acidente. Imagine uma metralhadora na mão de um psicótico, dono do mortífero aparelho. Desta forma, podemos determinar a verdade daquela famosa assertiva de que não há regra sem exceção, a não ser que queiramos desprezar o risco de levar chumbo. A rigidez de pensamento pode até parecer uma necessidade lógica, mas é uma atitude que dá de cara com o bom senso.

Recomendação de leitura:

Sabe aqueles textos que às vezes desprezamos, mas que são alguns dos pilares daquilo que pretendemos entender? É exatamente este o caso da República de Platão. Parece extemporâneo, arcaico, chato, mas não se estuda Filosofia sem conhecer as obras onde floresceram temas como o idealismo, a figura central do homem, a dialética, os temas mais caros ao conhecimento da época. Vale a pena ler, nem que seja só pela alegoria da caverna.

PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2000.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Sobre a discrepância entre o que vemos e o que lembramos - e o quanto isso pode ser fruto de manipulação

Olá!

Muitas pessoas relatam certas experiências suas e de seus filhos que seguem a um padrão, digamos, diferente do esperado. Não é diferente com meus filhos. O moleque dizia com surpreendente precisão, aos dois anos, que lembrava como fazia para utilizar um boticão, ferramenta que ele nunca havia visto até então. Já a menina alegava aos prantos que não queria crescer, porque um homem havia roubado seus filhinhos. Bem, bem, bem... Há quem diga que sejam eventos místicos, de recordação de outras vidas; há quem diga que seja o inconsciente em plena operação, manifestando-se através das fantasias (que nem sempre são positivas); há quem diga que são uma associação entre coincidências e as interpretações imaturas que a criança faz confusamente, dada sua linguagem neófita; e há quem diga que são coisas do demônio. O fato é que, no meu caso particular, não tenho recordação de nada extraordinário, nenhuma espécie de contato transcendental ou experiência mística. Nada que fuja estritamente às leis da Física, a não ser uma. Vamos a ela.

Tenho uma boa parte da família de origem italiana. O ramal no qual está inserida a matrona prima Nellyd, do alto de seus quase novantanni, possui uma campa no cemitério da Quarta Parada, cercada por vários oriundi: Barrichelli, Franciosi, Garofali, Basile, Buono, Sigismondi, Chiarello, Arduini e até os insólitos Sacco. Para quem não conhece o cemitério, é um daqueles à moda antiga, repletos de capelinhas e com pouca terra à mostra, que um dia esteve na periferia mais extrema da cidade, às margens do córrego do Tatuapé (que está embaixo da avenida Salim Maluf). No alto da entrada de cada capela, há o nome do respectivo patriarca, e a dedicatória ao santo de preferência, sempre lembrando que estes cemitérios nasceram em uma época na qual quase todo mundo no Brasil se declarava católico. No caso específico da minha turma, o fundador e patriarca era o tio Antonio (mas quem estreou mesmo foi a tia Rosa) e o padroeiro era o xará Santo Antonio.

A capela da família fica bem na esquininha de uma das inúmeras ruelas, e na parte de trás fica encostada uma campa menor, hoje em dia completamente largada, daquelas que são fechadas por portinhas de 80 X 80, onde os defuntos são acomodados em gavetas visíveis.


Sobre as sepulturas, uma pequena laje com uma imagem azulejada do Bom Pastor ao fundo, se eu não me engano. Na frente deste painel, havia uma pequeníssima imagem de Nossa Senhora Aparecida, inserida em uma igualmente minúscula igrejinha de portas abertas. Abaixo, um desenho bem porco, só para vocês entenderem a dinâmica da coisa:


Pois então. Naqueles mesmos arredores, havia vários vasos com aquelas plantas resistentes ao sol, incluindo uma suculenta de cachos conhecida como dedinho-de-moça, incrivelmente comum naquelas cercanias. Enquanto minha mãe e minha madrinha davam um trato na capela e faziam suas rezas e cantilenas (hoje ambas estão em seu subterrâneo), eu e minha prima, então crianças, enchíamos a mão dos bagos da precitada e íamos infernizar a pobre santa, fazendo-a de alvo. Iconoclastas (direis)! Nada disso. Crianças, apenas crianças.

Até aí, nada além de uma brincadeira sacrílega praticada por dois perigosos hereges, mas belo dia aconteceu: cansada de ser alvejada, a santa FECHOU as portinhas de igreja. Saímos correndo assustados. Contamos o ocorrido, levaram-nos de volta, sob broncas: portas abertas, a santa em seu lugar. Nova operação de tiro, novo fechamento, nova fuga, nova carraspana e inédita desistência. Melhor deixar a santa quietinha no seu canto, velando por seus mortos.

Volta e meia eu regressava ao assunto. Para ser mais preciso, todas as vezes em que marcávamos de ir ao cemitério. Levava todo mundo para trás da capela, mostrava a campa e a capelinha de Nossa Senhora. Nem minha mãe, nem minha madrinha, nem minha prima lembravam-se de nada. Com relação às duas primeiras, tudo bem. Os adultos não se ligam muito nas baboseiras das crianças. Mas minha prima... ela é dois anos mais velha do que eu. Deveria ter uma memória ainda mais presente do acontecimento. Não adianta, só eu me lembro da história.

Seria um sonho vívido o suficiente para ser tomado como verdade? Seria alguma história ouvida por aí e maquinada na minha cabeça? Seria uma experiência mística real, que se apagou das demais memórias por ser destinada somente a mim? Serão falsas memórias?

Falsas memórias? Isso é possível?



Sim, a memória é uma caixinha de surpresas, e seu funcionamento ainda é um mistério que precisa ser desvendado. Vou começar fazendo um pequeno apelo à literatura para ajudar a ilustrar o caso. É da obra Tartarin de Tarascon, do francês Alphonse Daudet, uma obra que retrata um protagonista que funde o idealismo de Dom Quixote com o materialismo de Sancho Pança. Vamos ler.

“Quase ter ido a Shangai ou ter ido lá, para Tarascon, era exatamente a mesma coisa. De tanto se falar na viagem de Tartarin, acabou-se por acreditar que dela voltava e à noite no clube todos aqueles senhores pediam-lhe informações sobre a vida em Shangai, os costumes, o clima, o apoio, o ‘Alto Comércio’. Tartarin, muito bem informado, dava prazerosamente os detalhes pedidos e, por fim, o bravo homem não estava muito certo, ele mesmo, de não ter ido a Shangai, de tal modo que, contando pela centésima vez o ataque dos tártaros, dizia muito naturalmente: ‘Então fiz armar meus empregados, hasteei a bandeira consular e pan! Pan! Das janelas sobre os tártaros’. Ouvindo isso, o clube estremecia. (...) Entretanto, ouçam bem isso. Já é tempo de entrarmos em acordo sobre essas reputações de mentirosos que a gente do Norte fez aos do Sul. Não existem mentirosos no Sul, não mais em Marselha do que em Nimes, do que em Toulouse, do que em Tarascon. Os homens do Sul não mentem, enganam-se. Nem sempre diz a verdade, porém acredita dizê-la. Sua mentira não é mentira, é uma espécie de miragem”.

Parece uma síntese da célebre frase atribuída a Goebbels, ministro da propaganda do III Reich: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. Mas não se trata exatamente disso, já que não é necessário que exista deliberadamente uma intencionalidade para ocorrer um fenômeno desses. O que podemos ter então?

Uma das teses mais significativas surgidas nos fins do século XX é o paradigma reconstrutivista da memória. Os defensores desta escola imaginam o seguinte processo para gravação e resgate das memórias:

Primeiramente, temos uma fase de aquisição, que nada mais é que a observação do fato ou do objeto. Acontece quando lemos um livro, assistimos a um jogo, vemos uma briga na rua, encontramos um bicho na salada... Enfim, quando experienciamos um acontecimento qualquer. O próximo passo é fazer a retenção de todos estes elementos na memória, a memorização propriamente dita. É como se colocássemos todos os elementos observados em um armário. E, finalmente, temos a recuperação das lembranças, a recordação. Acontece, como podemos bem perceber, que o fato resgatado nunca é idêntico ao fato ocorrido. Isso porque a memorização tende a ser feita pela divisão de elementos mais ou menos significativos, fazendo com que a nossa metáfora do armário não seja apropriada se o virmos como um guarda-roupas, que abrimos as portas e enfiamos tudo lá dentro, inteirinho. É melhor pensarmos naqueles gaveteiros, onde guardamos os elementos de um fato de acordo com sua importância. Os elementos mais vivazes são guardados nas melhores gavetas, muito bem arrumados, lavados e passados, enquanto os secundários vão para aquelas gavetas mais rotas, com o fundo desmanchando, e lá não são postas – são arremessadas e amarfanhadas, como bem fazem nossos queridos juvenis.

No processo de recordação, nossa mente faz uma reconstrução dos elementos do fato. Busca a sua estrutura lógica e vai remexer nas gavetas da memória. As memórias vivazes são aquelas em que não há dúvidas. Pensando no bicho da salada, resgatamos que se tratava de acelga povoada por uma lagartinha, e tudo se deu no bar do seo Quinzinho. Já o dia da semana, a mesa em que sentávamos, que bebida acompanhava, tudo isso é meio incerto. Estava guardado nas gavetas estragadas. E sabemos mais de suas existências por conta da estrutura lógica do que pela recuperação do dado em si. Em nosso exemplo, se almoçamos no seo Quinzinho, certamente foi em algum dia da semana, porque não estávamos alijados do tempo; provavelmente bebemos alguma coisa, por ser uma habitualidade. E, finalmente, é pouco provável que tenhamos comido de pé; portanto, ocupamos uma mesa.

Pois muito bem. Elizabeth Loftus é uma psicóloga norte-americana aderente ao paradigma reconstrutivista, dando a ele uma característica intrigante: o processo de reconstrução pode ter falhas graves. Basta, por exemplo, que se abra a gaveta errada. E pior. A cada recuperação, há uma nova retenção, e, se os elementos vão para a gaveta errada, a nova memória se perpetua sem reflexo na realidade. O que aconteceu de fato é uma coisa, o que se recorda do fato é outra. É a síndrome da falsa memória.

Esse fenômeno é muito mais comum do que podemos supor. Qualquer memória que esteja enevoada pode ser influenciada por algum item externo. Prosseguindo no exemplo da lagarta, talvez tentemos lembrar o tal dia da semana do ocorrido. Um amigo nosso diz que o seo Quinzinho costumava servir acelga na terça-feira, sugestionando nossa memória. Antes embaciado, agora esse registro é nítido. Já não temos mais dúvidas: foi numa terça-feira. Percebam que não estamos mentindo, achamos mesmo que essa é a verdade, porque ela foi reconstruída dessa forma.

Mas esse é um detalhezinho ilustrativo, de pouca importância. O que Loftus descobriu é que também as gavetas principais podem ser mexidas, especialmente nas experiências traumáticas, nas situações de pressão interna, em pacientes de psicoterapia e em experiências nas quais há alterações de percepção, como a hipnose, os transes místicos e o consumo de drogas. Buscou comprovar suas teses através de alguns experimentos, sendo o mais conhecido de todos um que consistia no seguinte: para um grupo de voluntários, foram levantados junto a pais e parentes próximos três acontecimentos moderadamente traumáticos ocorridos por ocasião da infância de cada um deles. Tais acontecimentos foram narrados aos participantes, mas com a adição de mais um evento, que nunca existiu – a experiência de se perder em um shopping. Para um melhor resultado, foi consultado aos parentes qual shopping era frequentado pelos voluntários, com alguns detalhes arquitetônicos e lojas normalmente visitadas – e se de fato não havia na história dos voluntários nenhum acontecimento semelhante, é óbvio. Inquiridos sobre os quatro acontecimentos, muitos dos voluntários disseram se recordar de todos, inclusive do susto do shopping. Mas o melhor estava por vir. Foi informado aos voluntários que um dos quatro eventos descritos era falso. Questionados sobre qual desses eventos seria de mentira, 12% dos entrevistados reputaram o evento do shopping como verdadeiro, indicando como falso um outro acontecimento que ocorreu de fato!

O grande problema levantado por Loftus foi a validade de provas obtidas por depoimentos, como as confissões, as acusações e os testemunhos. Se de fato a memória é uma reconstrução, e esta pode se dar com troca de elementos, isso implica em dizer que nenhum depoimento, visto isoladamente, pode ser confiável.

Além disso, há uma ferramenta relevante para adulterar a percepção que temos dos fatos: a maneira como a linguagem é utilizada na evocação dos mesmos. Voltando ao caso da lagarta, é muito diferente recordar alguém assim:

“Lembra de quando você encontrou aquele bichinho na salada? Coitado do seo Quinzinho! Tão trabalhador...”

Ou assim:

“Lembra aquele dia que você encontrou aquela nojeira toda na espelunca do porco do seo Quinzinho? Ave, ninguém merece...”

Ou ainda assim:

“Lembra daquele dia que o seo Quinzinho quis te sacanear? Você não acha que ele botou aquele bicho na salada de propósito?”

Percebam o potencial transformador que cada uma das colocações tem. A própria maneira de questionar já carrega consigo elementos que influenciam uma resposta. Na primeira pergunta, há um viés que leva o fato para o lado do acidente; já na segunda, para a negligência; e a terceira para a intencionalidade. Isso pode ser transposto para um tribunal? Claro que pode. A pergunta em si já pode carregar um juízo e indicar ao inquirido uma tendência, que pode, inclusive, ser lesiva para si mesmo. Olhem como, no nosso exemplo, a primeira pergunta aponta para a inocência, a segunda para a culpa e a terceira para o dolo.

Alguém por aí se lembrou do meu texto sobre leitura fria? Sim, incutir falsas memórias é mais uma técnica de engodar o cérebro humano, e Elizabeth Loftus mandou bem em detectar o fenômeno. É importante levar em conta que não é qualquer recordação que se conseguirá manipular, e nem sem o conto do vigário vai encaixar. Mas, como eu bem disse, a linguagem pode ajudar a distorcer as ligações entre os fatos e objetos, e alguém que domine bem a técnica pode perfeitamente trazer elementos distintos à mente de alguém e ligá-los de maneira a produzir a recordação que ele quer. Como o processo não é tão simples de entender, posteriormente vou retomar o assunto para tentar entender o que faz, a nível cerebral, ser possível as trocas de gavetas, mas vou parar este texto por aqui, antes que fique chato demais.

Recomendações de leitura:

Já que mencionei, segue a indicação do livro de Alphonse Daudet. Tartarin de Tarascon é um livro no estilo comédia, mas que carrega em si toda a angústia do ser humano diante da sua falta de coragem, e da dissonância entre o sonhado e o vivido.

DAUDET, Alphonse. Tartarin de Tarascon. Rio de Janeiro: Record, 1962.

Elizabeth Loftus é uma personagem polêmica, midiática e que deu de frente com uma instituição muito relevante: o Judiciário. De toda forma, é muito importante, é muito importante conhecer suas teses, porque o pensamento funciona por contraposição, e mesmo instituições sólidas podem ser perfeitamente contestadas. Como não há nada em português de sua autoria, vou indicar dois livros. O primeiro é da Dra. Lilian Stein e seus colaboradores, que abordam aspectos científicos e jurídicos da coisa:

STEIN, Lilian et al. Falsas Memórias. Fundamentos Científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010.

E o segundo é em inglês mesmo, fazer o quê?:

LOFTUS, Elizabeth; KETCHAM, Katherine. The myth of repressed memory. False memories and allegations of sexual abuse. New York: St. Martin, 1996.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

5 anos de Aporias Plurais – sobre o que motiva e o que desmotiva a atividade filosófica

Olá!

Efeméride importante. Há exatos cinco anos eu inaugurei este espaço, dadas as facilidades proporcionadas pela internet gratuita e a necessidade de desenvolver um projeto pedagógico. Gostei da brincadeira e a mantive até hoje, já com uns novos propósitos.


Nunca pretendi fazer deste blog um espaço puramente acadêmico, e sim um humilde norte para estimular a interpretação filosófica de espertos rapazes e cultas garotas, apoiado em duas constatações: ainda que surpreendente, há muita juventude interessada no pensar filosófico, mas que não sabe exatamente onde achá-lo. Por isso mesmo, vou dando minhas dicas de livros, filmes e etc. para que nossos mancebos e moçoilas possam tomar gosto pela coisa.

Um lustro! Deu tempo de produzir bastante coisa. Mas confesso que tem horas que bate um certo desânimo. Às vezes fico pesquisando um tema por meses a fio, principalmente aqueles que geram textos concatenados entre si, para ter, como resultado, quinze ou vinte visualizações. De vez em quando, alguém compartilha um desses textos nas redes sociais (devo agradecer muito ao Fernando Faria, que tem feito um grande trabalho de divulgação do meu blog) e o tal acaba ganhando um pouco de respiro, mas é raro. Fico com aquele encafifamento típico de quem acha que está falando muito, falando difícil, falando merda... Mas, raciocinando, chego à conclusão de que o formato blog está perdendo a força. A média de visitas a este espaço tem aumentado, pelo óbvio motivo de que há cada vez mais postagens, mas a consulta a textos novos declinou bastante.

Talvez eu devesse migrar de plataforma, usar o Tumblr ou o Wordpress, mas minha inabilidade atual com edição para internet chega a causar pena. Sou do tempo dos frames e do Front Page, tecnologias que se vão longínquas nesses tempos atuais (longínquo, no caso, são dez anos). Também pensei em criar um canal no YouTube, mas posso garantir a vocês, meus amigos, que escrevo muito melhor do que falo. E, além disso, precisaria fazer a edição, produzir uma vinhetinha decente, cuidar de conseguir um equipamento razoável, sem deixar de escrever o texto, transformado em roteiro, ora pois. E, por último mas não em último, minha figura não é, por si só, uma atração. Quem me conhece pessoalmente pode atestar.

Pode ser que um dia eu faça isso, mas não vai ser agora. Por enquanto, lutemos contra a pusilanimidade e prossigamos neste formato, e tentando descobrir a causa do sucesso do meu texto mais lido, escrito de maneira tão despretensiosa que quase não o publico. Quer dizer, o porquê de sua busca constante eu já descobri: se você digitar no Google os termos “eclesiastes” e “filosofia”, verá o fagueiro artigo na cabeceira da consulta:


O que eu não compreendo é o motivo da benesse concedida pela gigante das buscas. Como nunca pensei muito bem em termos publicitários, não sei como cheguei nisso, e como ninguém que torna uma escrita pública gosta de vê-la escondida (caso contrário, guardá-la-ia numa gaveta), aceito dicas de bom grado.

Minha patroa me pergunta às vezes porque não colijo meus pensamentos em livro. E há quem pergunte por que eu não parto para a produção de artigos acadêmicos de verdade, publicar em revistas e o escambau. Bom, por vários motivos.

O primeiro é que este espaço é um hobby atualmente. Por isso, não preciso esquentar a cabeça com prazos de entrega, periodicidade, disponibilidade de livros, ABNT e così via. Depois, os artigos acadêmicos podem ser mais úteis e precisos, mas são naturalmente mais chatos, e com isso não vou atingir o público que eu quero. Além disso, para pesquisar seriamente, precisaria de mais tempo, e não posso largar minha atividade principal. Fazer pesquisa significa produzir novidade, o que não preciso fazer no meu blog. Outra coisa: não sou um nome conhecido para chegar na academia e dizer “publicaê”. E, final e principalmente, pesquisa demanda dinheiro.

Ora (direis), vá aos cofres públicos! Faça um bom projeto de pesquisa e requeira verbas às instituições de fomento, quem sabe você não consegue mamar nessas gordas tetas? 1. Não gosto de leite. 2. Financiamento gera obrigação. 3. Atualmente, não tenho vínculo empregatício com nenhuma instituição de nível superior. 4. Vou contar uma historinha.

Muito bem. Como já está bem decantado pela nossa operosa imprensa, vivemos uma crise sem precedentes na nossa história (o que não é verdade inconteste; basta que se tenha mais de 40 anos para lembrar bem da década de 80, mas não quero discutir política neste momento), gerando grandes contenções de gastos em todas as áreas onde o governo precisa injetar dinheiro. Algumas destinações de primeira necessidade, como saúde e educação, recebem quantidades brutais de verbas (se são bem empregadas, é outra história), e qualquer por cento que se reduza em seus orçamentos representa uma avalanche de (ainda) dilmas. Outras áreas não são tão agraciadas, para a nossa lamentação, como é o caso das pastas de Ciências e Tecnologia, mas, até mesmo pelo fato de não fazer ninguém morrer de fome diretamente, recebem cortes orçamentários proporcionalmente mais profundos. Tudo isso está lindamente explicado neste e neste vídeo do Canal do Pirula, e não vou tentar fazer melhor do que ele. Assistam lá e voltem cá.

Vejam como a discussão entre o financiamento da Ciência de base e a Ciência aplicada é importante. Não há como fugir do questionamento do uso prático de uma pesquisa científica, mas também não há como aplicar conhecimento se não o temos. Ciência de base inclui especulação, longas observações, cálculos complicados, tempo e mais tempo. É muito mais atraente falar sobre medicamentos, mas alguém teve que pesquisar sobre composições químicas antes disso; é atraente falar sobre cirurgias a laser, mas alguém teve que descobrir propriedades óticas primeiro; é atraente falar sobre carros elétricos, mas alguém precisou compreender o que é eletricidade um dia. Não se aplica Ciência sem se saber Ciência.

Mesmo assim, a Ciência de base ainda tem algum apelo e atrativo. Só em São Paulo, entidades como a Estação Ciência (fechado temporariamente), o Museu de Zoologia da USP, o Catavento Cultural e outros exibem a seus visitantes atrações como simulador de terremotos, fósseis, imersão em cavernas, corpo humano por dentro, modelos computacionais e, com isso, demonstram que a ciência de base desperta o interesse das pessoas até mesmo como espetáculo, porque são coisas que podem ser bastante curiosas e trazem respostas a algumas de nossas perguntas fundamentais. E são incríveis mesmo – uma pessoa cabeluda com a mão em um gerador de Van der Graaf sabe do que estou falando. Não é exatamente o melhor dos universos, mas é muito útil para cutucar o espírito científico e para divulgar a atividade acadêmica.

Mas o fato é que a grana está curta, e se já é difícil obter verbas para o financiamento das Ciências, que tem algum apelo junto à população, o que diremos do financiamento à pesquisa filosófica? Mais ainda: quem acreditará que pesquisar filosofia de base pode ser importante?

Sim, porque também temos essa diferenciação em Filosofia. Há áreas voltadas para a análise de atividades práticas, como a Filosofia Política, Filosofia da Educação e Filosofia da Ciência, e existe aquela Filosofia mais profunda, que discute o âmago e as causas mais primordiais das coisas, como a Metafísica, a Epistemologia, a Lógica, a Ética. A Filosofia de base discute temas abstratos como a verdade, o tempo, o ser.

E eu pergunto: quem conseguiria financiamentos para repropor o Ser? É claro que a pesquisa filosófica é bem menos cara do que uma pesquisa científica, que requer materiais, laboratórios, observatórios, equipamentos, cobaias e muitas coisas mais. Em Filosofia, os maiores gastos são com livros, que poderiam, em todo caso, ser acessados nas bibliotecas das próprias universidades. No extremo, será necessário adquirir um bom computador, contratar um tradutor, fazer algumas viagens e utilizar os serviços de algum biblioteconomista, de um historiador, de um arqueólogo, mas dificilmente atingirá o custo de uma pesquisa científica simples. Mas são custos que existem e que dificilmente podem ser suportados pelo pesquisador com seus parcos ganhos. E, de acordo com a natureza do objeto a ser pesquisado, o total auferido será zero.

Imaginem a seguinte situação: o conhecimento consagrado diz que a Filosofia nasce a partir dos gregos. Queremos investigar e repropor essa tese, e, para tanto, precisamos viajar para a África, berço mais antigo da humanidade. Precisaremos nos encaminhar para lá, detectar as fontes históricas, conversar com os acadêmicos locais e tentar extrair alguma sistematização do conhecimento que possa estar fugindo da base mitológica, à semelhança do que aconteceu na Grécia. Sendo semelhante e anterior o leque de temas propostos por essa primeva Filosofia, teríamos que perscrutar os caminhos que conduziram essas linhagens de pensamento aos gregos, se é que tal fato aconteceu. E com isso mudaríamos a data de nascimento do pensamento racional.

Isso tudo é muito lindo, mas vamos cair na pergunta pragmática: serve para quê? E a resposta não é muito animadora, já que, a princípio, serve “apenas” como conhecimento. Não haverá uma revolução científica, não haverá uma transformação histórica, não haverá uma reforma ética, não haverá a redescoberta da roda. Teremos mais saber, e somente o futuro dirá o que faremos com ele. A Filosofia, que já convive com especulações sobre sua utilidade, não tem grandes armas para se defender. E o agente de financiamento mete o fúnebre carimbo de “rejeitado”, selando com o túmulo o projeto de pesquisa.

Mas as coisas não são assim e já é hora de que haja uma melhor divulgação filosófica, incluindo os pensamentos mais fundamentais. Mencionei acima a Filosofia da Educação, que é indistinguível das correntes pedagógicas adotadas pela escola do seu filho, meu caro amigo. Construtivismo, Comportamentalismo, Criticismo e outras vertentes não sobrevivem sem a Epistemologia, área da Filosofia que versa sobre o conhecimento. Com relação à Filosofia Política, que é a discussão racional sobre as relações de poder, e que geram todas as discussões entre direita e esquerda, podemos falar em Marxismo, Monarquismo, Liberalismo, mas não podemos falar em nada disso sem ter em mente a Ética, que é a área da Filosofia que trata das relações humanas. E sobre Filosofia da Ciência, vou me alongar um pouquinho mais.

Os antigos gregos possuíam uma metodologia de investigação que se baseava na dedução, e que não dependia muito da experimentação e da observação, o que nos afasta dos métodos científicos como os conhecemos hoje. Quem primeiramente descreveu cuidadosamente um sistema em que múltiplas variáveis deveriam ser recolhidas e comparadas foi Francis Bacon, ainda no século XVII (já falei dele neste texto). Era o indutivismo, onde cada observação de um fenômeno era candidata a derrubar todo o conhecimento formado até então. A Ciência parte definitivamente para o empirismo, e esse método perdurou até o começo do século XX, quando Karl Popper, que mencionei no mesmo texto, introduziu o conceito de falseabilidade, uma das grandes características da pesquisa hodierna.

Basicamente, a diferença entre ambos é muito sutil. O empirismo de Bacon dá força a uma indução na medida em que encontre elementos que confirmem a tese. Por exemplo: uma minhoca vive na terra, duas minhocas vivem na terra, três minhocas... Bacon procura sempre mais minhocas para reforçar sua conclusão. Já Popper vira o foco: ele vai procurar a minhoca que não vive na terra. É o que ele chama de ponto de falseabilidade – uma circunstância que invalida a conclusão. Quanto mais testes sofrer a teoria, mais forte ela se torna. E mais ainda: uma proposição somente pode ter caráter científico se ela possuir esse ponto. Tudo o que não puder ser falseado, não é científico. É Filosofia, é Religião, é Metafísica, é Arte, mas não é Ciência.

Mas mesmo o sólido modelo de pesquisa de Popper não passa incólume a críticas e revisões. Paul Feyerabend, filósofo austríaco, por exemplo, faz críticas virulentas à tentativa de encerrar a Ciência em uma metodologia fechada. Para ele, toda a história de descobertas científicas está marcada por mudanças de rota, detalhes insólitos, acaso e tortuosidades que não podem, nem em sonho, ser previstas pelas folhas limpinhas de um método. O ponto em comum de todas as descobertas é um só – sempre que se tentar encaixar uma experiência em uma norma, haverá a possibilidade de se fazer um desvio dessa norma.

Algum problema nisso? De jeito nenhum, no pensamento de Feyerabend. Essa liberdade de acontecimentos é rigorosamente necessária para o surgimento do novo. Sob pena de não se progredir, os cientistas de escritório precisam supor mais, mexer mais, até mesmo sonhar mais. A regra é: o único método válido para a Ciência é o vale-tudo, chamado pelo pomposo nome de anarquismo epistemológico. Não se pode pautar unicamente pelo racional – é também necessário buscar no absurdo.

Claro que Feyerbend construiu suas teses na medida certa para “socar” a metodologia de Popper, mas muitas de suas assertivas são coerentes, e, principalmente, feitas para provocar e tirar a comunidade científica da comodidade.

Já a crítica de Thomas Kuhn, filósofo norte-americano, está ligada à falta de uma perspectiva histórica na aplicação dos métodos científicos. Isso porque o racionalismo que caracteriza a Ciência não a tira do lapso temporal. A Ciência existe no tempo como todos nós, e se transforma através dele, também como todos nós. E são essas transformações que fazem com que o conhecimento científico mude radicalmente. Para entender melhor, Kuhn lança mão do conceito de paradigma.

Paradigma é um conjunto de representações que formam um modelo consensual a ser seguido. Como existe um acordo entre todos os atores, o paradigma é a matriz a partir da qual toda a atividade científica evolui. Da formação de um paradigma e de sua aceitação, nasce a Ciência Normal, que nada mais é que o conjunto de atividades que seguem determinado paradigma. Veja a semelhança que Kuhn dá entre um paradigma e um dogma...

Acontece que Kuhn observa que, de tempos em tempos, surgem hipóteses que fogem aos ditames do paradigma e da ciência normal. A princípio, como o paradigma é bem consolidado, estas hipóteses são consideradas meros desvios e erros na aplicação da metodologia. Na medida em que vão surgindo mais e mais evidências que corroboram a hipótese destoante, o modelo começa a entrar em crise. E, na medida em que a crise se amplia, ocorre o fenômeno: o paradigma anterior explode, e surge um novo paradigma. Essa é a revolução científica, como chamada por ele mesmo. Esse repente no surgimento do novo paradigma faz com que a tese anterior seja defendida a todo custo pela maioria da comunidade acadêmica, e o convencimento, este se dá aos poucos.

Assistimos inúmeros destes casos na história da Ciência: antes de Darwin, o fixismo era normalmente aceito por gente do calibre de Linneu. Antes de Copérnico, todos achavam que Ptolomeu já tinha matado a charada com o geocentrismo (e mesmo Copérnico foi superado por Kepler). Antes de Pasteur, a geração espontânea era uma solução francamente aceita pela comunidade científica. E todos eles precisaram segurar a barra de montanhas de contestações. Ou seja, o paradigma novo surge repentinamente, mas sua aceitação é progressiva.

A falseabilidade de Popper e as novas propostas de Kuhn e Feyerabend não são transformações científicas; são epistemológicas, são filosóficas. São aplicadas para a Ciência, mas nascem da Filosofia, e daqueles questionamentos mais profundos: o que é a verdade? É possível conhecê-la? ISSO é filosofia de base, que deriva para uma Filosofia “prática”. Seria melhor prosseguirmos na dedução aristotélica e na indução baconiana para praticarmos Ciência? É onde estaríamos se a Filosofia não apontasse novas metodologias e caminhos. E, com isso, espero humildemente colaborar para diminuir a sensação de que a Filosofia é coisa inútil. Já me sinto melhor.

Portanto e finalmente, meus bons leitores, convido vocês a refletir sobre os indicativos que fazem decidir quais pesquisas devam ou não ser realizadas. O critério de utilidade é significativo, mas não pode ser definitivo, sob pena de ficarmos dando voltas e mais voltas ao redor do conhecimento disponível, sem grandes perspectivas de sair do lugar. Uma hora as ferramentas disponíveis se esgotam, e precisaremos novamente filosofar sobre as perguntas mais arquetípicas para encontrar soluções. Ou não?

Recomendações:

O canal do Pirula é excelente para quem gosta de discussões sobre Ciências. Suas séries sobre Criacionismo e suas explicações sobre temas como cladística e migração de espécies são primorosas. Vale a pena assistir (lembrando que vídeos longos não são um problema para mim).

https://www.youtube.com/user/Pirulla25

Feyerabend é, antes de tudo, um contestador. Seu livro parece pretender menos estabelecer uma metodologia (ou falta de) do que ser um libelo contra o cerceamento do livre pensamento científico. Afinal, tolher a liberdade do cientista significa impor alguns limites que podem dificultar o alcance da pesquisa.

FEYERABEND, Paul. Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.

E, finalmente, a obra-prima de Thomas Kuhn, onde está exposta sua tese de vinculação da história ao progresso científico.


KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2006.