“Um terremoto sempre
tem fim; o que não tem fim é a existência de terremotos” - Eu
Olá!
Um pouco antes do último Natal, tentei reunir minha patota
para celebrar a vida, conforme era hábito nosso até bem pouco tempo atrás. A
ideia era comer churros espanhóis* com coberturas diversas e chás variados,
daqueles que admitem composição com frutas, especiarias e licores para
transmitir certo exotismo.
Era um domingo. À hora marcada, desabou um temporal daqueles
dignos de causar susto a Noé. Não havia chegado ninguém ainda, e nenhum dos
meus filhos estava em casa. Estava muito escuro por causa do mau tempo, e por
isso liguei as luzes do pisca-pisca da árvore de Natal. Sem ter nada para
fazer, ficamos eu e a patroa sentados, olhando-a, iluminados intermitentemente
pelas luzes coloridas. O silêncio era rompido constantemente pelos trovões, já
que barulho de chuva não é barulho – é sonífero. Mas, a parte disso, só havia
contemplação. De repente, a Mimi diz: “Daqui a pouco, nossa vida vai ser assim,
só nós dois”. Senti um frio na espinha e respondi apenas com um muxoxo. Há nada
de tempo, em um notório episódio onde arrebentou o vidro do meu aquário,
despejando em poucos segundos os 82 litros que demoraram um tempão para
preenchê-lo, estavam em casa a Jéssica, a Deborah, a Renata, a Natália, o
Bruno, o Lucas (maior vítima do rompimento), a Bia Bar, o Santiago, o João
Paulo, o Danillo, a Marley, a Bia Silva, a Luana, a Ana Bia, a Sabrina, a Bia
Araújo, acho que a Larissa e a Raisa, não me lembro se algum dos meninos da
Riachuelo... Salvar os peixes e secar a sala de 15 m² foi mais complexo com
tanta gente.
Hoje estávamos só nós dois, esperando a chegada de alguém.
Depois de mais uns minutinhos, levantei e fui dar uma olhada pela nesga da
janela, passando ao lado da estante de livros, onde se encontram os escritos
utilizados para a minha faculdade. Entre eles, uma apostila sobre Psicologia da
Educação, onde despontam com vigor as teses de Piaget, Vigotski, Dewey,
Bandura. Em algumas notas de rodapé, lembro-me das menções a Melanie Klein.
Lembro como aprendi, por conta própria, interessado pelo
pouco citado, como essa psicanalista alemã adaptou as teses freudianas às
crianças. Como se bem sabe, a linguagem não funciona nas crianças da mesma
forma que em adultos, por um motivo muito simples: ela ainda não é completa.
Como seria possível medir a psique infantil e verificar o quanto se assemelha à
adulta?
Pois muito bem. Nossa heroína fez o que deveria ser feito:
meteu a bunda no chão e passou a se sentar junto das crianças, brincando com
elas e participando de seus jogos. Analisou suas fantasias com o mesmo
propósito que os demais psicanalistas analisavam as associações livres dos
adultos. E suas descobertas foram surpreendentes.
O fato de que a linguagem verbalizada da criança não seja
completa não impede que a mesma se expresse. Até mesmo antes de produzir seus
primeiros vagidos, a criança já está em plena atividade psíquica, adquirindo
conhecimento em quantidades industriais, como jamais voltará a fazer em toda a
sua vida. Mas o quintal onde esse conhecimento todo é recolhido passa por uma
porteira praticamente instintiva, quase sem instâncias conscientes. A absorção
da experiência é essencialmente dicotômica: ou é boa, ou é ruim. Traduzindo em
sentimentos, a criança basicamente sente amor ou ódio.
Acontece que, como é bem fácil de prever, a cognição da
criança é confusa, e, na medida em que esse processo vai se refinando, toda a
sua personalidade vai sofrendo influências, para o bem e para o mal. O cerne da
psique infantil é naturalmente egoísta, de forma que tudo o que não pertence ao
ego (ao self, diriam os mais moderninhos)
é um objeto, incluindo aí outros sujeitos. E este ego é a si mesmo uma fonte de
prazer; tudo o que é de ruim vem de fora, vem dos objetos, que podem ser,
inclusive, sua própria mãe. Melanie Klein usava o exemplo do seio, principal
ligação entre mãe e filho no pós-nascimento, para ilustrar os paradoxos das
primeiras percepções infantis com relação ao mundo que a cerca.
Funciona assim: a criança recebe leite de um seio, e isso
traz a ela satisfação – sacia sua fome, dá-lhe sensação de prazer, traz-lhe
felicidade. Isso faz com que a criança ame o seio que a alimente; ela ama o
seio bom. Mas também há um seio que ela odeia – é aquele que lhe recusa o
leite, aquele que sai da sua boca quando ela deseja ser saciada, aquele que não
lhe propicia nenhum tipo de prazer e que a mantém em seu estado de desconforto,
que a deixa com fome.
O que a criança não se dá conta, mas que será significativo
na construção de sua maneira de ver o mundo, é o fato de que o seio bom e o
seio mau são a mesmíssima coisa. O seio farto, que lhe traz satisfação, também
é o seio escasso, que não supre suas carências. Quando a criança se apercebe de
que isso ocorre (sempre a nível inconsciente), é colocada diante de si a
angústia de que, sendo o seio bom e o seio mau a mesma coisa, seu impulso
agressivo pode trazer a destruição indesejada daquilo que ela ama. A criança
começa a compreender que os seus objetos não dependem somente dela, e isso lhe
traz um gigantesco sentimento de culpa. Esse é o nascedouro da angústia.
Bem... Depois de tudo isso, eu me lembro de como fiz
comparações das teses de Melanie Klein com o meu aprendizado, e percebi que ela
aborda de modo clínico o mesmo tema com o qual os existencialistas faziam com
um approach filosófico. O cerne de
ambos está na angústia. A angústia se instala em nossa psique desde que
nascemos, e nos acompanha por todo o sempre. E isso tem tudo a ver com os
momentos de crise que passamos no decorrer de nossa existência.
Trabalhamos com processos de idealização. Idealizar
significa pensar tudo perfeito. Ninguém planeja uma festa ou uma viagem para
ter problemas. Claro, sempre levamos em conta alguns riscos, e nos prevenimos,
mas temos a tendência de imaginar que tudo vai ser bom. E no final das contas
as coisas acabam sempre ficando aquém do que idealizamos. Não veio todo mundo
que a gente esperava, a cerveja não estava bem gelada, as paisagens não eram
tão maravilhosas quanto mostravam os folders das empresas de viagem. Talvez
seja por isso que as coisas que acontecem de improviso são tão legais – como
não há a expectativa da idealização, é mais fácil fruir o momento. É como
quando você vai tomar um café com os amigos e na volta decidem ir ao bar, tomar
uma meia dúzia de chopps com bolinhos de abóbora e carne seca. Ou quando vai
viajar com destino incerto, e descobre lugares incríveis, que não constam dos
roteiros de viagem. A felicidade é simples, como um café qualquer num alpendre
qualquer da casa de uma dona Maria qualquer.
Idealizamos desde crianças. E a idealização foge da
realidade. Isso não é mau por definição, e é perfeitamente normal que nos
frustremos quando o ideal não encaixe ao real. Só que, como já discuti neste
e neste texto, a idealização vai se transformando em algo menos
significativo na medida em que o tempo passa, porque o mundo que nos era
importante, que nos identificou e tornou como somos vai cada vez mais distante.
É a crise da meia-idade.
Há um paradoxo irresolvível na chegada da idade. Nós
pensamos nas crianças como seres limitados e dependentes. Não há criança no
mundo que não sonhe em chegar à maioridade, para dar rumo à sua própria vida,
para sair da tutela dos adultos. Mas é como crianças que gozamos da maior
liberdade possível, justamente porque não precisamos escolher. Sonhamos
qualquer bobagem e não temos vergonha disso. Iludimo-nos como os maiores e
melhores, e gostamos de pensar em um futuro bonito. Há poucas culpas a carregar
e pouca gente a quem dar satisfação. E acontece o fenômeno que se repete em
quase todos: gostaríamos de voltar a ser crianças. Isso corrobora, de certa
forma, o pensamento de Klein, que diz ser a angústia nossa eterna companheira.
Quanto mais velhos, mais aprisionados somos. O trabalho
começa pouco a pouco a não ser mais uma opção. De tudo o que queríamos ter
realizado, pouco aconteceu. A história de que o aposentado goza de liberdade é
uma triste ilusão. Os rendimentos caem, a saúde declina. No exato instante em
que não conseguimos mais atravessar a rua correndo (sem pelo menos ter a
sensação de que vamos cuspir o pulmão pela boca) percebemos que o tempo está
encurtando, ainda que não o admitamos. Eu queria ter gravado todas as músicas
que compus; hoje me limito a cantarolá-las ao andar em uma rua pouco
movimentada, lembrando-me cada vez menos de suas letras e melodias. Eu queria
ter escrito livros sobre o universo e os homens, e me contento agora com este
pequeno espaço, em que sintetizo ideias esparsas para quem quiser lê-las. Eu
queria ter mantido vínculos com amigos de infância, puberdade e juventude;
agradeço aos céus por ainda ter meus parentes mais diretos e alguns afilhados,
e pelo fato de poder mandar um salve via Facebook no dia do aniversário de
alguém.
É que a crise da meia idade carrega consigo a angústia dupla
– junto das irresoluções da vida, que não cessam até seu fim, há o temor de não
existir tempo de voltar atrás. Se é fato que, ao escolher um determinado
caminho, deixamos todos os outros para trás, enquanto temos vigor temos a
esperança de voltar atrás e mudar a trilha. Agora não. Temos mais consciência
da perda; as luzes que piscam diante de mim são um mero lenitivo da perda
concreta – se a minha casa estivesse cheia como outrora, provavelmente eu nem me
lembraria de ligá-las.
O que é muito importante separar aqui é que crise de
meia-idade é uma crise como outras, como as indecisões da juventude, da qual já
extraí um texto, que os convido a ler. Crises não são depressão, é bom
não confundir. Mas podem conduzir a ela. A vida nos dá muitos golpes, pequenos
e grandes. Os grandes são bem sabidos: as mortes das pessoas que amamos, e as
grandes limitações físicas e psíquicas que a idade nos impõe. Uma pessoa que se
vai nunca mais volta, e a diabetes, artrose e cardiopatia para sempre nos imporão
um regramento, seja alimentar, seja farmacêutico, seja degenerativo do organismo.
Mas os pequenos golpes são muito cruéis também. E com duas imensas
desvantagens: são difusos e alimentadores da angústia. Lembro e repito a lição
de Klein: desde que nascemos, ao identificar o seio bom com o seio ruim,
vivemos em permanente angústia. Quando minha mãe ficou doente, principalmente
na fase terminal, eu não conseguia mais dormir direito – havia sempre a
expectativa da ligação fatal. Todos os irmãos da minha mãe morreram de
madrugada, e o toque do telefone tinha o mesmo efeito da trombeta do arauto que
vem anunciar o apocalipse – a desgraça chegou. Acabou que minha mãe morreu de
dia; fiquei sabendo ao chegar do serviço.
E vejam só. Minha mãe morreu, e isso me trouxe uma imensa
tristeza, que carregarei para sempre. Mas a sua morte levou embora a angústia.
Já não tenho sustos de ouvir o telefone de madrugada. Já sei que não serão
tentados tratamentos dolorosos, que não há mais risco de se perder a consciência,
tudo isso acabou. O mesmo se aplica a tantas outras coisas, que quando chegam
podem trazer problemas, mas que trazem também a resolução da angústia. O medo
já se concretizou, não há mais o que temer.
Já nas coisas menores, é mais difícil espaventar a angústia,
olhem que coisa curiosa. É que o medo da perda por vezes é muito maior que a
própria perda. Imaginem um exemplo banal, como uma casa da qual gostávamos
muito, mas que precisávamos abandonar. Enquanto ela existir, temos uma
esperança, ainda que distante, ainda que inconsciente, de voltar a morar nela.
Na medida em que essa possibilidade se distancia, aumenta nossa nostalgia, só
que sem liquidar a esperança. A coisa pode ser resolvida de duas formas: ou
readquirimos a casa (final feliz), ou seu atual proprietário a destrói. Em
ambas temos a cessação da angústia, que pode ter se mantido por anos a fio.
Portanto, não são as perdas em si, agravadas com a chegada
da idade, que são molas propulsoras de uma possível depressão, mas o estado de
permanente angústia, mesmo que não se trate de uma condição inevitável. Como já escrevi aqui, a depressão é informe e
espraiada, na medida em que é muito difícil compreender uma causa direta e
única para a perda de identidade que a caracteriza, mas a cada vez que uma das
pequenas derrotas da crise da meia-idade se instaura na vida de alguém, mais um
pouco a pessoa perde de si mesma. E, sim, isso inclui coisas aparentemente
pequenas, como a conclusão de que pequenas luzes natalinas iluminam a sua solidão.
Isso tudo aconteceu como num flash, em uma experiência
curiosa e melancólica. Depois disso, o pessoal começou a chegar e eu fui fritar
os churros.
Recomendação de leitura:
A maneira como Melanie Klein tratou de observar as fantasias
inconscientes das crianças, respeitando o que elas mesmas tinham a dizer, e a
sua teoria do seio são algumas das coisas mais belas que observei em psicologia,
lembrando que a mesma era uma cientista leiga e autodidata. Recomendo que todos
os que se interessam por educação conheçam um pouco de suas teses.
KLEIN, Melanie. Psicanálise
de crianças. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
* Churros espanhóis, para quem não sabe, não têm recheio. A regra
geral diz para polvilhar apenas açúcar e canela, mas é perfeitamente possível
utilizar qualquer creme para incrementá-los.
Agradeço à Mimi e à Ná pela composição da foto que ilustra este post.