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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Cartas náuticas para marinheiros de terra firme - 11º relato: Holambra, sociedade e comunidade entre flores e moinhos

Olá!

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Última parada. Como tudo acaba, também nosso rolê comemorativo e estes já intermináveis textos vão se acostando ao ponto final (tá, ainda tem um texto de epílogo). Saímos da cidade de Monte Alegre do Sul cedo o suficiente para passar o dia inteiro em mais algum lugar que melhor nos aprouvesse. Por proximidade e curiosidade, fomos almoçar e passar a tarde (quentíssima) na cidade de Holambra, uma jovem que surgiu após a constituição de 1988.

O nome da cidade já denuncia uma inconsueta colonização holandesa, ao menos na região sudeste. Mas há também o fato de que esta colonização é razoavelmente recente, fazendo com que ainda estejam vivos alguns de seus fundadores. O pórtico da cidade mostra a data de sua fundação (como polo de atividades, não como municipalidade):


A cidade faz apologia a tudo o que é holandês, mas dá visível ênfase a dois ícones em especial. O primeiro é baseado na principal atividade do município – a plantação de flores – e utiliza a flor mais típica da Holanda, a tulipa. Há tulipas estilizadas por toda parte. No comércio...

... nas placas das ruas...

... e nos jardins.

Mas é o segundo que é levado ao paroxismo. São os moinhos de vento, símbolo histórico dos batavos, que lutam diuturnamente contra a invasão do mar (não à toa seu país é chamado de “Países Baixos”) e que moem seu grão com esses engenhos gigantescos. Há moinhos absolutamente por toda a parte, inclusive no artesanato, como pode ser visto na foto de abertura deste texto. Mas ele também está presente na área comercial...

... nos quintais...

... nas calçadas...

... nas praças...

... nos conjuntos de edifícios...

... no museu...

... e o majestoso moinho principal, daqueles de causar alucinações à Dom Quixote, lamentações a Sancho Pança e pesadelos ao pobre cavalo Rocinante.

Tem muito o que comer em Holambra, algo meio exótico e nada muito dietético. É bem verdade que há algumas coisas mais naturais e românticas, como as geleias de rosas, mas com uma quantidade de açúcar que faz o dono da União rir à toa. Optamos por tomar uns sorvetes, a beira do lago Vitória Régia, em uma confeitaria chamada Zoet en Zout. Muitas receitas típicas e sabor agradável, com a vista que temos abaixo:


Como não poderia deixar de ser, toda a arquitetura da cidade se baseia na Holanda tradicional, com elementos bastante característicos. Achei até um pouco carregado nas cores, mas é tudo bem bonito:

O mesmo pode ser encontrado no comércio local. Percebam que havia uma série de melhoramentos sendo implantados nessa região:

E também aqui encontramos outro símbolo nacional da Holanda: os tamancões. Tem de todos os tipos, principalmente decorativos. Mas há alguns para usar mesmo, o que é uma forma de suplício. Dói só de colocar.

Os holambrenses são muito ciosos e orgulhosos da própria história. Um monumento chamado “Memorial do Imigrante” já dá uma mostra do quanto os habitantes reverenciam seu passado e suas origens.

Mas é no museu da imigração que Holambra ganha o jogo. É um dos mais completos do interior paulista, contendo inúmeros elementos de interesse, que permite a nós, turistas curiosos, compreender toda a trajetória desta insólita e linda cidade.

Há todo um acervo de máquinas e equipamentos que serviram para dar início às lavouras de flores e frutas...

... há uma casa de caboclo que reflete toda a dificuldade dos primeiros colonos...

... com um galpão onde se pode ver os utensílios do dia-a-dia, utilizados especialmente em suas tarefas diárias...

... e há uma casa de pioneiros, pouca coisa mais luxuosa que as dos caboclos.

Eu tinha uma imagem mental muito diferente da real com relação a Holambra. Imaginava, romanticamente, vastos campos de flores, coloridos, perfumados, crivados de abelhas rodeando o objeto produtivo, o que daria ainda outra atividade à cidade, a produção de mel. Burro, eu. Uma das cidades com melhores índices sociais e econômicos do Brasil não teria um processo de trabalho arcaico em suas lavouras. Na verdade, tudo é plantado em estufas devidamente climatizadas, as quais só poderíamos acessar com autorização e em determinados momentos. Nada daquele jeitão típico de sitio, com um carreador ladeado por couves de um lado, milho do outro, pés de fruta na entrada e um chiqueirinho lá embaixo, o mais afastado possível do casebre de madeira, forno de lenha e poço no alpendre. O mundo dos business e commodities não tem espaço para reminiscências afetivas.
O surgimento de Holambra é sui generis. Seria mais uma cidade do próspero interior paulista não fossem alguns pequenos detalhes que fizeram toda a diferença em sua formação. De começo, tudo era uma enorme fazenda que abarcava trechos de quatro municípios: Santo Antonio de Posse, Cosmópolis, Jaguariúna e Artur Nogueira. Com as novas regras de autonomia da constituição de 88, tornou-se município emancipado em 92, na mesma leva em que Bertioga desmembrou-se de Santos e a gloriosa Canitar se desenlaçou da Chavantes do sogrão. Constituída por imigrantes holandeses que fugiam da miséria do imediato pós-guerra, a ideia inicial era constituir uma cooperativa de inspiração socialista para criar vacas e produzir leite, tão famosos em sua terra de origem. Ambas as coisas deram errado, e, no final das contas, estabeleceu-se uma cooperativa por quotas e a plantação de flores, que inicialmente poderia parecer uma ideia tola. Só que não.

Como a colonização de Holambra é relativamente recente, há ainda muitos imigrantes holandeses vivos, que contam histórias no vídeo que indico abaixo. E, de fato, a população local tem algo diferente do que costumamos ver. Não vou cair no jargão fácil de chamar Holambra de “pedacinho da Europa no Brasil”, mas falarei da constatação de que a maioria dos habitantes é branca retinta, e com um sentido comunitário muito aguçado. Como pudemos ver nas fotos, há um substrato identitário raro por estas plagas. Não no sentido de dizer que há um espírito de “nós e eles”, mas algo semelhante ao que acontece na Mooca com relação à cidade de São Paulo. Ou seja, parece existir um orgulho próprio no holambrense, seja pela beleza da cidade, seja pelos seus índices sociais, seja pela sua origem razoavelmente incomum. É uma sociedade que não deixou de ser comunidade. E aí chegamos em Tönnies.
Quando falamos em Sociologia, invariavelmente pensamos no trio de ferro Durkheim-Marx-Weber, e, com boa vontade, lembramos das primeiras traves mestras do pensamento social, como Saint-Simon e Comte, mas Ferdinand Tönnies, alemão e subestimado, é um dos intelectuais mais seminais na elaboração de teorias de estrutura social. Ele, por exemplo, estuda os relacionamentos humanos para compreender a vontade social, a maneira como o pensamento da coletividade conduz o modo de vida do agrupamento do comunitário para o societário. Vamos trocar em miúdos, voltando muito no tempo.

Os grupos de primatas sempre foram gregários, pelo óbvio motivo de ser esta característica uma vantagem. Facilidade na caça, na defesa, na vigilância, etc. Para que essa vida coletiva pudesse ser bem sucedida, era primordial que fossem estabelecidas interações entre seus membros, que se davam de forma permanente e que eram guiadas pelas necessidades mais urgentes, como a vontade de comer, de dormir ao abrigo, de se reproduzir. Evidentemente, estas vontades são dos indivíduos, mas, vivendo em grupo, a interação entre as vontades individuais acaba por formar uma vontade coletiva. Essa vontade é mais ou menos elástica, mas continua sendo limitada pelos aspectos fisiológicos dos membros que a compõe. Se o indivíduo tem fome, o grupo também tem, por exemplo – não que o grupo tenha fome no mesmo momento do indivíduo, mas o grupo como um todo tem a mesma necessidade, que Tönnies chama de vontade natural.
Saindo agora do seu aspecto mais orgânico, e portanto destacando-se dos demais primatas, os seres humanos têm capacidade de abstração e de sair do ciclo de atendimento de necessidades mais imediatas. É capaz de projetar o futuro e de planejar melhoramentos para o grupo. É dessa forma que o homem deixou de ser um coletor para ser um agricultor, que abandonou a caça para desenvolver a pecuária. Como o grupo não deixa de existir porque deixa de caçar, é preciso que se organize de modo a deliberar entre seus membros, de buscar alternativas racionais para as suas aflições, de tomar decisões que, de alguma forma, subvertam o caráter imediato da vontade natural. Exemplo tosco: o grupo tem necessidade de se “aliviar”, e, para fazê-lo, basta agachar em qualquer canto. Isso é o bastante para suprir a vontade natural. Só que, sabendo que este ato provoca mau cheiro, atrai moscas, suja poços e traz doenças, o grupo estabelece um local certo para os membros fazerem suas obras – um local distante das águas, da habitação, com alguma ferramenta para enterrar o resultado e não chamar insetos. Percebam que há uma racionalidade na adoção das medidas (evitar contato com algo que prejudica o grupo), um caráter propositivo (na medida em que estabelecer um local certo para fazer algo nasce da ideia de alguém, que a expõe ao grupo) e uma deliberação (para escolha do local, punição aos faltosos, etc). O grupo, portanto, não se pauta unicamente no atendimento de vontades naturais, mas também de vontades arbitrárias.

Evidentemente, o exemplo do cocô é extremo propositalmente. As interações humanas são tremendamente mais complexas e variadas. Amor, sexo, constituição de prole são aspectos relacionados, todos oriundos de vontades naturais. Já o casamento, o conceito de família consanguínea e a intimidade do casal são aspectos arbitrários. E o nível de arbitrariedade se eleva na medida em que mais e mais decisões precisam ser tomadas: herança, pensões, certidões, seguro social, direito de propriedade. Como esses, muitos outros aspectos transitam do natural para o arbitrário, sempre carregando consigo a marca da racionalidade, formando o organismo social que conhecemos hoje.
(Abrindo rápidos parênteses para conceituar “arbitrariedade”. Essa palavra carrega consigo uma certa carga negativa, porque dá a impressão de se tratar de coisa imposta, e ninguém gosta de ser obrigado a nada. Mas há dois pontos a serem levados em conta: mesmo que não queiramos, há um limite nos nossos direitos se quisermos viver em sociedade, que é o direito de terceiros. Nesse caso, a lei e os acordos determinam as condutas e dão as decisões. E já aí podemos perceber que o arbitrário nem sempre tem o significado de “mandão”, mas de assecuratório de direitos, no sentido de predeterminar e dar a conhecer as regras do jogo).

Bom... Já deu para perceber que, quanto mais sofisticado se torna um grupo, maior a quantidade de dispositivos que compõe o conjunto da vontade arbitrária, e muito mais complexas se tornam as relações. A letra fria da lei, da norma e do contrato tornam-na mais formal e cheia de nuances a serem observadas, o que forçosamente faz com que as mesmas se tornem mais e mais impessoais. Vamos dichavar.
Em um grupo pequeno, as relações são construídas levando em conta as pessoas e suas idiossincrasias. Todos se conhecem pelo nome e sabem o que cada um é capaz de fazer. Dessa forma, sabemos que o Fulano cozinha bem, o Sicrano é organizado e higiênico e o Beltrano toca violão. Isso dá muito significado ao papel social de cada um. Em mais um pequeno exemplo, se fizermos uma festa, o Fulano cozinhará, o Sicrano arrumará e o Beltrano tocará, porque conhecemos a capacidade e o comprometimento de cada um. A quantidade de regras escritas é mínima, justamente por já haver um consenso sobre papéis e funções. Se soubermos que Beltrano está rouco no dia da festa, o que acontecerá? Ou adiamos a festa, ou ficaremos sem música. Esse tipo de organismo social, cheio de relações pessoais, onde o laço sanguíneo, a vizinhança e a amizade são determinantes para fazer girar as engrenagens é o que Tönnies chama de comunidade (Gemeinschaft em alemão).

Nos grupos mais extensos, a coisa muda bastante de figura. Para realizar a mesma festa, já não contaremos com pessoas específicas. Vamos fechar negócio com uma empresa, a quem submeteremos um contrato que garantirá a prestação do serviço. Já não temos O Fulano para cozinhar, O Sicrano para arrumar e O Beltrano para tocar. Teremos, isso sim, UM fulano para cozinhar, UM sicrano para arrumar e UM beltrano para tocar, não importando quem seja. Notem que ninguém depende da boa saúde gutural do músico para haver a festa; se ele estiver doente, a empresa providenciará outro, ou, na pior das hipóteses, devolverá o dinheiro e pagará a multa acordada. E notem também mais duas coisas: como as engrenagens não dependem de pessoas para girar e como os nomes já não importam, mas os números. Essa é a sociedade (Gesellschaft).
Qual é a “cola” que gruda os indivíduos em cada uma dessas modalidades? Nos agrupamentos onde prepondera a relação pessoal, onde os interesses estão voltados para a satisfação dos anseios e necessidades do grupo, onde a vida é interior e íntima, ou seja, na comunidade, é a vontade natural que agrega os membros. Já no âmbito maior, onde as relações são mais impessoais, onde há predominância da lei escrita, onde o objetivo é uma satisfação pessoal e onde as pessoas são distintas não por si mesmas, mas por sua atuação social, a sociedade enfim, o aglutinante é a vontade arbitrária, ou a vontade racional, como queiram.

Olhem como são laços significativamente diferentes. O primeiro é bem mais turbulento, dado que é no convívio direto onde virtudes e vícios explodem com maior força; no entanto, é neste mesmo espaço que o laço é mais apertado. Já na sociedade o laço é mais seguro, amparado pelo consenso representado no contrato social, mas é muito mais frio e distante – na comunidade podemos tolerar uma situação desvantajosa se o grupo for beneficiado, seja nossa família, nossa vizinhança ou nossos amigos. Isso é praticamente impossível em sociedade, onde só a força coercitiva da lei fará com que a perda ocorra. O objeto que une os homens é o mesmo que os afasta. De fato, a frase síntese de toda a teoria de Tönnies diz que “se em comunidade os homens se mantêm unidos apesar de todas as separações, na sociedade permanecem separados apesar de todas as uniões”.
Para finalizar, Tönnies afirmava que essa definição de comunidade e sociedade não era estanque, formando dois grupos distintos dentro de um mesmo espaço ou dois tipos diferentes de organização social. Todo grupamento humano tende a se tornar uma sociedade passando pelo estágio de comunidade, sendo que uma sempre guarda um pouco da outra. Uma comunidade, por mais natural que se mantenha, sempre possui códigos últimos que são os mais respeitados. Os tabus, com o incesto como exemplo, são aplicados à comunidade toda, sem se importar com nomes, e essa é uma característica societária. Por outro lado, mesmo nas sociedades mais desenvolvidas, as pessoas ainda se visitam, jogam cartas, bebem e se amam, importando entre si como seres humanos, e isso é tipicamente comunitário. É essa mescla o que mais encontrei de belo em Holambra: uma sociedade bem organizada que mantém sua cara de comunidade calorosa.

Recomendações:
Livro difícil de achar. Tenho duas sugestões possíveis. Ler o ótimo livro de seleções de Orlando Pinto de Miranda...

TÖNNIES, Ferdinand. Comunidade e sociedade: textos selecionados. In: MIRANDA, Orlando P. de. (Org.). Para ler Ferdinand Tönnies. São Paulo: EDUSP, 1995.
... ou caçar a versão em italiano:

TÖNNIES, Ferdinand. Comunità e società. Roma: Laterza, 2011.
Também tem um documentário, que foi produzido por lá mesmo, e que adquiri no museu histórico. Acho que é meio difícil de encontrar fora de lá. De todo modo, colocarei a referência dele assim que encontrar o DVD. Acho que emprestei para alguém, mas não vou parar a publicação deste texto por causa disso.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

O gelo no olhar para a predição do futuro (ou: Sobre a leitura fria e os motivos pelos quais é fácil de ser enganado)

Olá!

Sabem o que eu encontrei na praça da Sé na semana passada? Ciganas! Quer dizer... Ciganas naquelas, né? Vestidas com aquelas fantasias da Ladeira Porto Geral, formando uma espécie de corredor polonês móvel bem ao lado das escadarias da catedral, e querendo agarrar sua mão à força, berrando impropérios e imprecações caso você faça alguma observação malcriada a elas, xingando mais que torcedor da Portuguesa. Passo batido com elasticidade surpreendente para alguém da minha faixa etária e conformação física. É bom ter cuidado – dizem que praga de cigana pega.

Mas eu poderia ficar tranquilo. Ciganos de verdade não se vestem mais assim, não percorrem a urbe em carroças e não compram roupas na ladeira. Descem um pouco mais, até a 25 de Março, e compram lá, como você e eu. Ou, os mais remediados, vão ao Shopping. Se ricos, vão a Miami e outras terras encantadas. Nada de diferente. Ciganos se vestem de ciganos apenas em algumas festas e olhe lá! Como, de resto, fazem italianos, húngaros, portugueses, africanos, japoneses e outras etnias componentes de nossa cultura. Não há motivos significativos para se manter uma indumentária tradicional no dia-a-dia. Deem um pulo no Brás, por exemplo. Vocês verão algumas mulheres que utilizam shador, calças e sapatos. Ok, temos o distintivo muçulmano, mas não temos a impressão de estar andando pelos desertos arábicos. Idem com qualquer grupo étnico. Dificilmente será possível encontrar ciganos autênticos que se comuniquem em romani, sua língua de origem; vão falar em português, mesmo.

Não tenho absolutamente nada contra os ciganos. É uma etnia entre outras, afinal de contas. Tenho até mesmo dois quadros de bordado em ponto cruz que herdei da minha madrinha (na verdade, tunguei dos despojos de mudança da minha comadre, sua filha) que representam uma cigana oriental e uma dançarina espanhola. O dançar girante, a roupa colorida e o gestual profuso não são meras coincidências: uma dá origem à outra, ou, no mínimo, exerce influência direta. De repente, sou descendente de ciganos e nem sei disso.


Mas não posso crer na autenticidade das ciganas centrais. Parecem a mim pessoas que querem meramente arrumar uma forma de obter alguns trocados. Nomadismo na cidade grande não cabe. Não encaixa em um modo de vida em que os seres se apertam em apartamentos de 20 m², onde não há praticamente espaços abertos para instalar caravanas. Se ainda há ciganos nômades no Brasil, certamente não é em São Paulo; menos ainda na Praça da Sé, já devidamente ocupada por outra “etnia” mais identificada ao modelo urbanoide: os mendigos.

Ao que parece, os ciganos eram povos do aqui-e-agora, pouco se importando em manter tradições rígidas e moldando-se às culturas locais, fazendo o perfeito oposto do que pensávamos, não é mesmo? Algumas coisas, como a estrutura patriarcal, o nomadismo e as reservas matrimonias se mantém, mas isso não nos permite pensar que eles não largam o hábito de andar a cavalo, colocar argolas nas orelhas, ou andar de vestidos multicores em qualquer lugar no qual estejam, ‘inda mais na Sé.

E o que esperam as gitanas contrafeitas? Bem, há atrativos próprios que explicam o fato. A atmosfera mística dos ciganos se dá por causa do mistério das origens deste povo, que, a exemplo dos índios brasileiros e dos esquimós, são ágrafos, ou seja, não desenvolveram um método de escrita e registro, restando a tradição oral para manter algum tipo de informação. Para traçar minimamente um histórico dos ciganos, é preciso coligir o que deles disseram outros povos, entornando vigorosamente o caldo da tarefa. Isso porque cada um destes povos viam aqueles estranhos peregrinos de maneira peculiar, enviesados pela própria cultura. Turcos veem ciganos de uma forma, russos de outra, espanhóis também – sobre alemães, melhor nem pensar, para não ter que explicar agora que os ciganos sofreram tanto quanto os judeus no período nazista. Com isso, sabemos muito pouco de sua visão própria, e nosso conhecimento sobre os ciganos se torna eivado de lacunas. Isso favorece o pensamento de que os ciganos possuam formulações desconhecidas para nós, herméticas, cuidadosamente retidas entre seus próprios membros, tais como a previsão do futuro.

Utilizando destes pequenos enganos do senso comum, nossas “ciganas” do centro ludibriam os incautos que ainda colocam fé na suposta capacidade de predição. No caso específico dos ciganos, essas técnicas são várias, como é o caso da interpretação das cartas do seu baralho típico, o tarô. É a cartomancia. Mas a mais típica de suas artes divinatórias é conhecida como quiromancia, a leitura de mãos. Por que será que as pessoas ainda creem nesse tipo de coisa? Vamos tentar entender.

Teoricamente, um quiromante consegue ler o futuro observando os traços do “M” das mãos. Não conheço a regra, mas sei que tem a linha da cabeça, a linha do coração e a linha da vida, e, através delas, a vidente chega a conclusões como duração etária, pontos de inflexão financeira, destinos emocionais e outros secos e molhados.

O convencimento do consulente se dá por uma técnica relativamente ardilosa. As mãos de uma pessoa não dizem nada sobre o que a pessoa será, mas dizem MUITO sobre o que a pessoa É. Não falam sobre o futuro, mas sobre o presente e o passado. E, para tanto, basta que o vidente saiba interpretar os sinais contidos nas mãos. Por exemplo: mãos grossas, com marcas estriadas, fazem supor trabalho duro, contato com madeira, enxadas, pás e picaretas. Sujeiras irremovíveis na base das unhas podem representar trabalho na terra, em minas, em oficinas, conforme o depósito existente; pontas dos dedos médios salpicadas de perfurações denunciam trabalhos de costura; calos nas pontas dos dedos em uma mão com sua ausência na outra já ensinam que a pessoa toca algum instrumento de corda – pessoa romântica e galante; unhas amareladas pelo uso constante de esmalte outrora indicavam vida pérfida. Calos na parte externa do dedo médio significam uso intenso da escrita. Cicatrizes, manchas, coloração, grossura das juntas, estado das unhas... Como esses, muitos outros exemplos existem, e permitem ao quiromante obter importantes informações sobre o modus vivendi de quem o consulta, sem a necessidade de fazer perguntas.

E esse é o pulo do gato: não há adivinhações, mas deduções. Ao conseguir acertar uma característica vivencial do consulente, a vidente já ganha sua confiança. Encaixando a segunda, a empatia aumenta. Fechando a terceira, o fenômeno acontece: não é mais a vidente, mas o próprio consulente que vai começar a contar, ele mesmo, os fatos e histórias sobre sua vida, enchendo o adivinho de informações preciosas. Já se está convencido da precisão que virá, inexoravelmente. O adivinho simplesmente remodela o que o próprio consulente lhe diz e devolve ao mesmo na forma de profecia. E, sim, acreditamos nisso.


Pois muito bem. Isso é o que conhecemos como leitura fria (ou leitura a frio, dependendo da fonte). Este é um termo importado da língua inglesa que representa uma série de macetes para captar informações acerca de uma determinada pessoa sem que ela se aperceba disto. Esse nome nasce em oposição a “hot reading”, outra técnica de engodo e persuasão menos sofisticada. Neste caso, o pilantra profeta obtém informações ANTES de a vítima pessoa ter seu futuro desvendado. De posse dessas informações “quentes”, é estabelecido o processo de confiança.

A leitura fria, como se pode perceber, é mais ousada, já que trabalha sem a preexistência de dados. A técnica do tato dos quiromantes é apenas uma entre muitas. Algumas outras artes divinatórias, como a leitura da borra de café, por vezes utilizam o seguinte chamariz: no fundo de um recipiente, a borra toma algum formato, e o leitor questiona ao consulente o que aquela forma lhe lembra. Se a lembrança for uma casa, ou um objeto de estimação, ou algum animal da infância, por aí já se puxa o papo. Adquire-se a confiança na interpretação do passado e fornece-se confiança para a predição no futuro. Se o ofício não inclui um objeto ritual, como são os oráculos, então a leitura fria é feita puramente através da linguagem. Há técnicas que permitem seduzir plateias inteiras (ou assembleias, ou cultos), e não há muito mistério. Em um auditório mediano, com umas 100 pessoas, sempre haverá alguém com problemas financeiros, sempre haverá alguém com doentes na família, sempre haverá alguém à beira do divórcio, sempre haverá alguém que não progride no trabalho, sempre haverá alguém que se julga vítima de perseguição, tudo junto ou separado. Eu já vi de tudo – os resultados são impressionantes, mas, uma vez desvendado o modus operandi, chega a perder a graça, e dá até vontade de brincar, fazendo o mesmo. E acredite: às vezes, fazê-mo-lo sem perceber (você chega em casa e as crianças estão com a cara assustada. Você diz: “qual dos dois aprontou arte?”. Um olha para o outro, que se encolhe, apesar do silêncio mantido. Pronto – o culpado você já achou. Aí você fala: “Não disse para não mexer em nada?”. Resposta: “foi sem querer”. Mais uma informação valiosa – algo foi quebrado, e é coisa importante. Mais uma pergunta: “Por que você ainda não arrumou a bagunça que fez?”. Se a resposta é sim, era coisa de pouca monta, como um vaso; se não, é algo maior, como um pé de cama quebrado. Se você continuar nesse jogo, vai obter uma confissão completa sem a necessidade de observar diretamente o estrago. As crianças passam a ter a sensação de que você é mágico, tem olhos de raio X, ou coisa que o valha).

Perceba que, para conseguir pinçar informações valiosas, a leitura fria sempre caminha do geral para o específico. Quando um suposto adivinho manda uma afirmação genérica, do tipo “vejo que há alguém com muita inveja de você”, espera receber uma informação mais precisa. Tem gente que se entrega de bate-pronto, dizendo que é a sirigaita da vizinha, mas há quem resista e ofereça apenas leves indicativos. Vem a segunda assertiva: “é alguém do seu convívio diário”. Chamamos isso de fishing – isso mesmo, pescaria. Se à afirmação anterior você devolve algo como “é do trabalho, da escola, da academia ou da igreja?”, você mordeu a isca com gosto, contando TUDO o que o nosso salafrário de plantão precisa: elementos da rotina diária, hábitos, disponibilidade de tempo, ocupações de lazer, presença de espiritualidade... E ainda vai se admirar com a capacidade preditiva do sacripanta.

Claro que não é tão simples, e, falando desse jeito, dá a impressão que é fácil demais ser tolo, e que jamais conseguiríamos ser ludibriados por técnicas tão rudimentares. Mas não é tão fácil assim se manter a salvo. Isso tudo porque:

  1. Nem todos são iguais;
  2. Nem sempre a leitura fria é maliciosa (ou mesmo consciente);
  3. Podemos nos achar espertões, mas não somos;
  4. A aura mística também apresenta suas armas.
Vamos pensar no exemplo mais bem acabado do que o senso comum considera como pilantra: o político. Vamos considerar que, ao visitar a câmara de vereadores da sua cidade, você encontre um vereador qualquer e lhe faça algumas cobranças. Uma das perguntas mais naturais que o edil poderá lhe fazer é saber o nome do bairro onde você mora. Você consegue atinar a quantidade de informações que você dá com uma única palavra? É de se supor que um vereador conheça bem a cidade e saiba de seus problemas (se ele atua bem ou não são another five hundred). Digo que sou da Sé e ele já sabe dos meus problemas – lixo, furtos, lixo, engarrafamentos, lixo, semáforos quebrados, lixo, calçadas esburacadas, lixo, lixo e lixo. Não dá para reclamar de transporte público: tem ônibus, metrô, trem e o insólito fura-fila, com corredores e terminais. Houve alguma malícia do vereador até aqui? Não. É o mínimo do mínimo que ele precisa saber. Mas, sabendo disso, a esperteza pode entrar em cena. Antes de ouvir minha reclamação, ele já tasca: “Que bom! Pois eu tenho um projeto na sua região! Implantaremos um sistema de limpeza pública que blá-blá-blá” – leitura fria, ora pois. Se eu não confio no sujeito, direi: “Que belo mentiroso”. Se confio: “É um visionário”.

Com relação ao misticismo, devemos lembrar que nem sempre as coisas caminham como queremos em nossas vidas. Tentamos encontrar uma lógica nas causas de nossos percalços e nem sempre conseguimos. É a hora que bate o desespero, e, nesses casos, procuramos avidamente respostas em outras fontes, cujo mecanismo de funcionamento prescinde de relações mais rígidas. Desta forma, se um médico nos diz que devemos utilizar um remédio pelo resto da vida, tendemos a não nos conformar, a procurar conspirações ao nosso redor, e a válvula de escape pode ser uma fuga pelo sobrenatural. Às vezes estamos tão imbuídos em achar uma solução mágica que esquecemos nossa razão, e ficamos abertos a qualquer tipo de engodo que nos prometa conforto ou alívio.

Deu para entender? Temos diferentes percepções dos argumentos que nos são apresentados, e fazer suposições não é um erro em si. Fazemos isso diariamente, corriqueiramente. O problema é achar que tais suposições são a expressão da verdade, dando guia e guarida à nossa vida.

E por que nossa mente não consegue se defender das peças que nos são pregadas? Logo de cara, já informo que não é possível ser racional 100% do tempo. Mas, como a Filosofia não capta uma causa única, mas várias, vou iniciar uma pequena série de textos que tratam de como pequenos defeitos de nosso raciocínio (se é que podem ser chamados assim) causam influência em nosso sistema de crenças: como a interatividade entre as pessoas faz com que elas estabeleçam laços, como as âncoras de nossas convicções podem ser frágeis, como qualquer coisa que se aproxima de nossas crenças são mais consideradas do que aquelas que se opõe e como nosso cérebro é uma usina de enganações a nós mesmos (que, de resto, já tratei um pouco aqui, aqui, aqui e aqui).

Recomendações de leitura:

Acho que a peça literária mais conhecida que aborda ciganos é aquela que retrata as agruras da cigana Esmeralda e do corcunda Quasímodo, história que sabemos quase de cor:

HUGO, Victor. O Corcunda de Notre-Dame. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

Mas também gostaria de indicar esta obra transposta para os quadrinhos, em uma coleção que vem sendo editada agora, que retrata nesta mídia uma série de obras clássicas. É uma abordagem interessante e que facilita um pouco sua interpretação pelos mais jovens.

CARRÉ, Claude. O Corcunda de Notre-Dame. Adaptação da obra de Victor Hugo. Desenhos de Jean-Marie Michaud. Tradução de Caroline Chang. Osasco: Del Prado, 2015. Col. Grande Clássicos da Literatura em Quadrinhos. Vol. 6.

Finalmente, uma boa fonte para entender o surgimento e a disseminação dos povos ciganos pelo mundo é aquele que indico abaixo, fruto de uma ampla pesquisa por parte do autor:


MOONEN, Frans. Anticiganismo. Os ciganos na Europa e no Brasil. 3ª edição digital. Recife: 2011. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/ciganos/a_pdf/1_fmanticiganismo2011.pdf>

Agradeço à Deb por emprestar seu olho azul (ainda mais azul) na foto que ilustra este texto.