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quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Sobre a Filosofia Árabe e os motivos de sua descontinuidade

Olá!

Quando escrevi o metapost (texto comemorativo à 100ª manifestação neste espaço), resolvi franquear a palavra aos meus principais leitores e colaboradores, dentre os quais Vitor Bertalan, que também é autor de um post que fala sobre a concepção de boa arte. Abusado, ele não pediu que se desenvolvesse apenas um, mas dois textos. Cumprirei minha tarefa a partir de agora, falando sobre a Filosofia Árabe, a famosa (?) Falsafa.



Vou estabelecer que não farei grandes diferenças entre os povos árabes propriamente ditos e seus vizinhos persas, otomanos e afegãos, para que o texto não se torne muito enjoativo. Portanto, não me taxem de incoerente porque estou plenamente consciente do fato.

Começando do começo: os árabes fazem parte dos povos que constituíam a região do Crescente Fértil, um trecho do Oriente Médio razoavelmente bem servido de água potável em forma de arco, o que faz lembrar, no mapa, uma meia-lua. É nesse lugar do mundo que surgem dois marcos históricos da humanidade: o desenvolvimento da agropecuária e a invenção da escrita, o que, convenhamos, não é pouca coisa. A agricultura permitiu ao homem um controle sobre a natureza nunca obtido anteriormente, o que fez com que seus rumos itinerantes não fossem mais necessários; o homem já não precisava mais ser nômade. E a escrita... bem, a escrita permite que você leia meus textos, que comente o que você acha, que registremos nossas constatações, histórias, experimentos e experiências.

Podemos atribuir aos fenícios, povo que habitava a região onde hoje fica situado o Líbano, a dupla tarefa de ser porta de entrada e de saída de mercadorias e da cultura regional, formando uma espécie de cosmópole para onde convergia conhecimento do mundo inteiro (mundo então conhecido, entenda-se bem) e de onde se irradiava o conhecimento médio-oriental para esse mesmo mundo. Digamos, portanto, que a Fenícia era um roteador full-duplex, que mandava e recebia conhecimento de toda parte. E por que isso acontecia?

Porque a Fenícia não estava no pedaço mais favorável do Crescente Fértil, mas era muito próxima a ele. Os fenícios habitavam uma região litorânea, onde não era possível desenvolver atividades de cunho agrícola ou pastoril. Para sobreviver, eles se lançaram ao mar, seu grande campo de seara, e se tornaram uma civilização náutica, que baseava sua atividade econômica no comércio. Como dominaram técnicas de metalurgia e vidraçaria, eram grandes exportadores de armas e objetos de vidro, e compravam de tudo: vinhos, marfim, papiro, tecidos, especiarias, e assim vai. Eram o que, no meu tempo de criança, chamávamos de mascates, só que em dimensões multinacionais. 

Com o tempo, os fenícios criaram uma imensa rede comercial que interligava Ásia, Europa e África. Azeite grego era vendido no Egito, joias turcas eram vendidas entre os etruscos, perfumes ibéricos eram vendidos na Macedônia, interligando as diversas regiões atingíveis do globo. Para dar suporte à logística necessária ao empreendimento, os fenícios fundaram uma série de colônias no Mar Mediterrâneo: Chipre, Sicília, Sardenha, Córsega, Espanha, Cartago. Com a lábia típica de quem se especializou no comércio, conseguiram se estabelecer em todos esses lugares sem guerra. Sua ideia não era conquistar territórios, mas estabelecer entrepostos que facilitassem o trâmite de suas mercadorias. Mas, além de produtos, os fenícios exportavam e importavam conhecimento, amparados pela sua invenção mais célebre, o alfabeto. Da mesma forma que traziam e levavam mercadorias de todo o mundo conhecido, também traziam e levavam ideias. A Fenícia não era apenas um entreposto comercial, era um depósito de linhas de pensamento.

Bem, isso explica satisfatoriamente a formação da Fenícia. Mas a região que estamos estudando era muito maior do que hoje representa o litoral do Líbano. Como esse conhecimento se espalhou para o restante do Oriente Médio?

A visão que temos hoje do Oriente Médio é de toneladas de areia sobrepondo um subsolo coalhado de hidrocarbonetos de origem fóssil, mais conhecidos como petróleo. Mas esse produto, valiosíssimo nos dias atuais, não tinha qualquer significado comercial a três mil anos atrás, até mesmo porque mal se sabia de sua existência, sendo conhecido basicamente na forma de betume. A região desértica e predominantemente árida era um fator invencível de limitação à fixação de habitantes em vilas e comunidades. Isso porque a agricultura era virtualmente impossível e a extração tremendamente restrita. Desta forma, o jeito era apelar para os constantes deslocamentos entre lugares onde era possível se abastecer, criando assim uma cultura nômade. Esses indivíduos eram chamados de beduínos (do árabe badawï, que significa “deserto”), e, com sua formação tribal e seus camelos e caravanas, espalhavam pela região produtos e conhecimentos, de maneira similar com o que faziam os fenícios em ponto maior.

Isso tudo permitiu à cultura árabe tornar-se prodigiosa, porque não ficava aprisionada a um único sistema de pensamentos. De posse de informações as mais diversas, podiam confrontá-las e combiná-las de modo a sintetizar o suprassumo do conhecimento de então, incluindo Filosofia, Ciências e Técnica. E o mais importante – moldou o ethos do povo daquela região. Percebam como até hoje árabe é sinônimo de comerciante (tudo bem, é um estereótipo, mas não injustificado). Já com relação a um interesse filosófico que esmaeceu... Chegaremos lá.

Então concluímos que esse é o substrato que está no alicerce de uma cultura que, de sábio em sábio, de poeta em poeta, desemboca na Falsafa, o resplendor da Filosofia Árabe.

A Falsafa é uma palavra que significa Filosofia em árabe. Pela proximidade das duas palavras, é possível perceber que uma derivou da outra e que significam a mesmíssima coisa: amor ao saber. É considerada como o período clássico do conhecimento árabe, não só pela quantidade e qualidade de sua produção, mas também pela forte influência que os filósofos gregos clássicos nela exerceram, em especial os escritos de Aristóteles.

Coincide com a Idade Média ocidental, tanto no período quanto na temática. A Falsafa é teocêntrica, e faz suas investigações com o viés do Islamismo então surgente. Mas não se limitou aos estudos da relação do homem com suas divindades, em processo semelhante ao que ocorreu com a filosofia medieval europeia (para entender porque não é verdade a monotemática atribuída à Era Medieval, leiam aqui).

Os sábios árabes em geral eram considerados polímatas, ou seja, homens versados em mais de uma área de conhecimento, podendo militar não somente na Filosofia, mas nas Ciências em geral, na Religião, nas Artes e etc. Com o propósito de acolher e centralizar a difusão do conhecimento, o califa Al-Mamun fundou uma biblioteca chamada de Casa da Sabedoria, onde eram traduzidas obras oriundas de todas as partes do mundo conhecido. Foi lá que se deram as famosas traduções para o árabe das obras de Aristóteles, grande base do desenvolvimento da Falsafa. Foi do trabalho realizado na Casa da Sabedoria, inclusive, que a obra aristotélica chegou aos teólogos cristãos, como São Tomás de Aquino e Duns Scotto, e não diretamente do grego.

Da Casa da Sabedoria, o primeiro grande filósofo foi Al-Kindi, o Pai da Filosofia Árabe. Era estudioso em matemática, medicina, farmacêutica e geometria, entre outros. Sua mais significativa contribuição filosófica foi o estudo de compatibilidades entre a razão e a teologia islâmica, especialmente na conciliação entre uma teologia natural, onde os sinais divinos são observados pelos desdobramentos dos fenômenos naturais, e uma teologia revelada, como é o caso das religiões abrâmicas (Judaísmo-Cristianismo-Islamismo), que são sistematizadas através de emanações transcendentais, de manifestações das divindades, que podem ser reduzidas a códigos escritos. Muito embora Al-Kindi desse preferência à primeira linha de interpretações, especialmente pelo fato de que uma teologia natural é plenamente acessível à razão, entendia que as revelações eram necessárias para compreender aquilo que se transpunha ao alcance da compreensão humana. Importava de Aristóteles uma tese semelhante à do Primeiro Motor Imóvel, que especula a existência de uma causa primeira, não causada...

(Funciona assim, crianças: tudo o que se move, move-se porque algo o pôs em movimento. Uma pedra se move porque alguém a atirou; alguém a atirou porque moveu o braço; moveu o braço porque seu organismo tinha forças para fazê-lo; tinha forças para fazê-lo porque se alimentou, blá, blá, blá. Aristóteles entendia que era possível realizar esse retrocesso infinitamente, até chegar em um ponto em que a anterioridade se esgota – algo moveu sem ser movido. Esse é o Primeiro Motor Imóvel).

... mas, estendendo o conceito aristotélico, Al-Kindi via a causa primeira, Deus, como um princípio de unidade para tudo o que existe. A partir desta constatação, discute longamente qual seria a natureza desse Deus.

Em seguida, podemos falar de Al-Farabi, tão letrado quanto Al-Kindi, tanto que de seu nome derivou o termo alfarrábio, que significa livro cujo principal valor é ser antigo. Além de Ciências Naturais e Música, Al-Farabi também teve grande interesse no estudo de Ética, Política e Economia. A sua filosofia desloca-se do caráter mais especulativo para um sentido mais empírico, e discorreu maciçamente sobre os limites do conhecimento humano, principalmente em descobrir suas causas originais. Na Política, Al-Farabi tenta redesenhar a cidade ideal de Platão. Esta cidade seria a territorialização de uma sociedade que teria uma extensão do mundo inteiro.

Depois, falemos de Al-Kwarizmi. Menos filósofo e mais matemático, de seu nome derivam dois termos muito conhecidos em nosso dia-a-dia: algarismo e algoritmo. O primeiro porque nosso herói utilizou os símbolos numéricos indianos e acrescentou a eles um fator imprescindível para a matemática: o conceito de zero. Sim, pessoas. Fazemos contas por causa deste cidadão. O segundo se deu pelo desenvolvimento de equações cuja resolução era descrita passo a passo, em um processo que derivou ao que hoje utilizamos em linguagem de programação. Criador da álgebra, sua principal contribuição filosófica está no campo da lógica, na medida em que as resoluções de suas equações pelo método algorítmico fornecem uma metodologia para a matematização do pensamento.

Seguimos com Al-Ghazali, precursor de René Descartes e da dúvida metódica, e de Malebranche com seu Ocasionalismo. Sua principal contribuição é a quebra com uma certa dependência ao pensamento grego, dando ênfase ao Sufismo, uma corrente mais mística e contemplativa do Islamismo, baseada no autoconhecimento, e que guarda alguma relação com religiões do Oriente mais distante, como o Hinduísmo e o Mazdeísmo. Segundo seu pensamento, toda a sorte de efeitos em que a alma tem influência sobre o corpo, ou todo movimento que do corpo se dirige à alma são ocasiões para que Deus se manifeste. Desta forma, Deus é a mola propulsora de toda a cadeia de causa e consequência que se observam no universo.

Daí, vamos para Ibn-Khaldun, historiador que introduz vários conceitos sociológicos (apesar de não serem chamados assim). Também introduz uma Filosofia da História baseada em ciclos, que interpreta a História como a repetição constante do mesmo modelo de acontecimentos. Mesmo que estes não sejam iguais, as estruturas que os conduzem são sempre as mesmas. Desta forma, é possível prever os desdobramentos de fatos históricos através da análise de situações semelhantes que ocorreram anteriormente. Observou ainda o modo como a Economia era uma irradiadora de consequências nos estratos sociais e versou sobre o papel do Estado na sua regulação.

Vamos agora para os três mais conhecidos filósofos árabes medievais. O primeiro é Avicena, muito conhecido na medicina, mas que também foi um filósofo de ponta. Ainda que ligado à teologia, é pelo caminho da razão e da evidência que prefere trilhar. Por isso mesmo, suas teses por vezes conflitavam com o pensamento islâmico ortodoxo, em especial na questão do universo eterno. Talvez sua principal tese seja a distinção entre mente e corpo. Para tentar prová-la, Avicena lança mão do exercício do Homem Voador, no qual há o descarte dos sentidos para reconhecer a atividade mental. A suposição é a de que, de posse de todas as faculdades cognitivas, um homem inicia repentinamente sua existência, suspenso no ar e de olhos vendados, sem que possa tocar em nada, privando-se assim de qualquer sensação. Em uma assertiva semelhante ao cogito cartesiano, esse homem voador tem certeza da existência do eu, mas a indisponibilidade dos sentidos impede que se busquem referenciais externos, que só poderiam ser obtidos pelo corpo. Somente há a mente ao seu dispor, destacada do corpo ou de outro meio físico. Portanto, há uma clara distinção entre ambos.

Averróis é quem segue. Tem como novidade seu trabalho na área judiciária, e elaborou uma teoria hierárquica da sociedade, com uma visão platônica, já que entendia ser necessária uma distinção entre uma elite letrada para o exercício filosófico, enquanto à prole seria destinado o seguimento literal do Corão. Mas o filósofo em tela não cria que o livro sagrado dos muçulmanos fornecesse uma visão precisa da verdade. Entendia que muitas vezes lançava mão de lirismo, para postular verdades que precisariam ser interpretadas. Da mesma forma que Avicena e Aristóteles, colocava-se em oposição às teses corânicas para afirmar a infinitude do universo. Acreditava em uma visão inédita da imortalidade do homem, baseada no compartilhamento intelectual. O homem como indivíduo morre, dizia ele, mas, quando doa ao intelecto uma verdade permanente, ele deixa uma porção de si para a eternidade. E também elaborou a teoria da dupla verdade – são reais tanto as verdades de fé quanto as verdades da razão, a cada uma dado conhecer conforme seu alcance.

E fecharemos esse rol de filósofos com Muhammad Rumi, sufista como Al-Ghazali. Tinha uma filosofia mística, mas que não era desprovida de razão. Ele imaginava que o homem era uma ponte entre o passado e o futuro que se sucediam de forma espiral, descrevendo uma progressão, e não um círculo. A extensão dessa espiral era a eternidade, onde também era eterna a sucessão de vida, decaimento e morte, e a transformação de formas de vida é garantia da continuidade universal. Rumi afirmava que a intelecção desta forma de conhecimento não vem da razão; é preciso intuí-la através da prática da emoção, chefiada pela prática do amor.

Pois bem. Por que, aparentemente, a Filosofia Árabe para por aí? As hipóteses que consegui levantar são as seguintes:

1) Traçando um paralelo com a Europa, verificamos que a linha geral do pensamento desloca-se de Deus para o homem na medida em que floresce o Iluminismo e diminui a influência das igrejas cristãs. A Filosofia Árabe ainda permanece por mais tempo atrelada ao teocentrismo, e sua ligação cada vez mais forte com a religião, que se tornava sempre mais sedimentada em sua sociedade – em oposição ao que acontecia com o Cristianismo na Europa – tornou menos mutáveis as linhas de pensamento. Os progressos civilizatórios contrastavam com o código corânico, dado pela divindade, imutável, e que codificava não somente os ritos e práticas cerimoniais, mas também todo o conjunto da vida social e política. Ao contrário do que ocorreu no passado, quando o mundo árabe se formou com base na importação de mercadorias e conhecimento, agora temos um império que se esfacelava, aculturados pela colonização.

2) Não conhecemos nada do mundo árabe, e esse é um ótimo fator para falar bobagens, incluindo acreditar que não se pratica mais filosofia no Oriente Médio. Desde as Cruzadas, o mundo ocidental criou uma visão do Oriente Médio baseada no exótico, e essa visão estereotipada se arrasta até os dias de hoje. Quem nos tece um soberbo painel desse hábito de nossa cultura é o escritor palestino (portanto médio-oriental) Edward Saïd, um daqueles filósofos a quem precisamos ler para compreender um pouco melhor o que é nosso mundo. Em sua obra Orientalismo, Saïd faz uma ampla análise de como o Ocidente tem uma visão distorcida do mundo árabe, demonstrando como os povos ocidentais construíram ao longo da história uma imagem do Oriente Médio que não tem muito a ver com a realidade.

Um dos principais problemas que a concepção de Orientalismo traz é a tendência a enxergar o Oriente Médio como um bloco monolítico, como eu mesmo fiz no início deste texto. Não é. Estamos falando de inúmeras etnias, espalhadas por um território extenso, cada uma com seus hábitos e costumes próprios. O Islamismo parece um traço comum, mas não é. A poligamia parece um traço comum, mas não é. O autoritarismo e a violência parecem traços comuns, mas não são.

Essa invenção tem um propósito: legitimar o colonialismo. Apresentada de modo romanceado, mas com um viés alienante, a cultura médio-oriental é idealizada de forma a poder ser considerada inferior à ocidental. O primeiro passo deste processo é a construção da imagem. Através de relatos e obras literárias, o mundo árabe é-nos colocado como um espaço das ardilosidades dos vizires, da lubricidade das odaliscas, da ostentação dos sultões, um mundo antiquado e embrutecido. É uma imagem que busca opor, na aparência, uma cadeia de valores. Sempre teremos a tendência de achar nossos valores mais preciosos que os do outro.

O segundo passo é o silenciamento. Após construir a imagem do Oriente pelo Ocidente, não se permite a réplica em sentido contrário. E isso é feito através da invisibilidade da cultura real. Continuamos a apresentar o Oriente Médio como cultura inferior, atualmente estruturada não mais em guardas de harém, mas em homens-bomba; não mais em dançarinas do ventre, mas em mulheres recobertas pelas burcas; não mais em califas, mas em ditadores sanguinários. Muito disso é verdadeiro, mas é uma visão parcial. Raros casos de produção cultural médio-oriental chegam até nós. É pouco frequente ver filmes, livros e relatos, em especial quando não são ficcionais, e com isso passamos a acreditar piamente que a Filosofia Árabe se esvaiu, sufocada em seus fundamentos. Será mesmo? O próprio Saïd é prova do contrário.

Em que medida isso não acontece até hoje? Temos praticamente como definição que os árabes são um povo violento, pronto a se arremessar carregado de bombas em qualquer instituição que lhes divirja. Apresentamos o Islamismo como o pano de fundo que valida a violência, contrapondo-o ao nosso sacrossanto Cristianismo e buscando demonstrar como o mesmo é perfeito. Só que isso pode ser válido para nós, membros de uma sociedade de matriz judaico-cristã, mas não para o mundo inteiro. Criamos um monstro para bater e justificar nossa própria violência, que não se limita a atirar bombas na cabeça dos outros, mas que se estende ao direito de reconhecer cidadania a quem carrega consigo qualquer traço de identidade exógena. Exemplo: Aconteceu nos EUA recentemente um caso ridículo. Um menino de 14 anos chamado Ahmed (o que já explica tudo), especialmente dado aos engenhos eletrônicos, construiu um relógio digital e apresentou-o em sua escola. A história terminou com o infeliz preso. É que a professora suspeitou se tratar de uma bomba, comunicou o fato à direção e esta chamou a polícia, que o algemou e conduziu à delegacia. Até o presidente Obama entrou na parada para amenizar o problema. Se isso não é um clássico de efeitos da construção de uma imagem, então não sei mais o que é.

O que Saïd nos mostra é como as nossas deficiências em enxergar sob a perspectiva do outro pode perpassar tão fortemente a nossa própria cultura que se torna possível distorcer a visão que temos de um povo inteiro. As descrições que damos das demais etnias dizem muito mais de nós mesmos do que daqueles a quem tentamos retratar.

Recomendação de leitura:

Sabe aqueles casos clássicos de obras do gênero “não morra antes de ler”? É exatamente o caso deste livro.

SAÏD, Edward. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.

Post-scriptum final: eu tenho dantescas dificuldades até mesmo de passar uma linha na agulha, filho de costureira que sou. E admiro profundamente quem tem habilidade e criatividade para manipular máquinas e equipamentos. O que fizeram com esse rapaz é de uma violência assustadora. Acho que não precisamos ter tanto medo de morrer, a ponto de enxergar ameaça em um menino de 14 anos que apresenta um trabalho que deveria ser louvado.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Tim-tim! Sobre o efeito coquetel e a sofisticação dos mecanismos de atenção humanos

Olá!

Morar em prédio tem suas benesses, mas também tem suas complicações. Volta e meia vem uma galera que é ruidosa na minha casa, jovens que são. Eu, descendente de italianos e espanhóis, também não sou o que propriamente se pode chamar de silencioso. E o resultado é a reclamação dos vizinhos mais rabugentos. Bom, como minhas contas estão (ainda) em dia e não é de madrugada, deixo que digam, que pensem, que falem.



Eles não viram nada, os meus vizinhos. Hoje em dia minha família é pequenininha, e o máximo de gente que reúno, entre amigos e afilhados, são umas quinze pessoas. Mas nos tempos em que eu era rapaz, o número era bem maior e mais frequente. Na casa da minha madrinha, todo fim de semana se juntava uma pequena multidão, indefectivelmente. A tia Nena tinha uma mesa gigante, em que, se bem espremidos, cabiam quatorze viventes. Havia ainda uma mesinha de boteco que poderia servir de extensão, elevando o número para 18 contribuintes. E tinha também o pessoal que ficava fora da mesa, ajudando na manutenção da louça ou tentando inutilmente escapar um pouco dos resíduos do prato principal: o tabaco. Sim, era difícil reconhecer as pessoas circunstantes, tal a espessura da cortina de fumaça, devidamente aromatizada com café, feito aos decalitros. Estou mencionando apenas a plebe rude que se aglomerava na cozinha, deixando de lado os que procuravam a sala para ver futebol, o quintal para brincar ou os quartos para pestanejar.
 
Para chegar ao tema que quero discutir hoje, preciso pedir um pouquinho de paciência para explicar a dinâmica da ocupação dos lugares disponíveis na cozinha da extinta madrinha. O pessoal não chegava todo mundo de uma só vez. Quem chegava primeiro, ocupava as cadeiras mais ao fundo, deixando os lugares próximos à porta disponíveis. Vou fazer um rápido croqui:



Desta forma, temos a distribuição de 23 pessoas. Naturalmente, em tal amostra não é possível obter uniformidade de interesses, e estes variavam dentro das próprias famílias – os homens mais velhos gostavam de futebol, as mulheres de assuntos familiares, os jovens de tecnologia, as crianças de criancices. Vou melhorar o diagrama, distribuindo as pessoas de acordo com suas preferências temáticas:


Como não éramos dados a monólogos, e como eram extremamente raras as reuniões para tratar de assuntos específicos (acho que lembro apenas das combinações de Natal – você faz isso, eu aquilo, fulano traz bebida – que, aliás, nunca davam certo), geralmente a conversa começava em torno de um determinado assunto, mas tergiversava rapidamente para outros caminhos. Por exemplo, quando a coisa enveredava pelo pantanoso terreno da política, os ânimos se exaltavam e o volume subia. Só que nem todos queriam discutir se o Jânio foi forçado a renunciar ou se estava bêbado, e começava um certo paralelismo nas conversas. O fenômeno se intensificava com o correr do tempo, aumentando a quantidade de assuntos concorrentes. E a diversificação fazia com que o volume global dos debates subisse sem que ninguém se desse conta. Como o espaço acabava se tornando pouco, pela quantidade de gente, ninguém podia se mover muito de um lugar para o outro agrupando temas, o que seria mais racional. A rede de comunicações em sua intrincada diversidade e ficava mais ou menos assim:

O tom de voz, evidentemente, tinha que ser muito elevado, lembrando bastante a xepa da feira do Glicério. Se algum primo menos frequente aparecesse nesse momento (o que não era raro), teria como percepção uma maçaroca sonora indefinível, muito embora ele mesmo se integrasse em uma das redes em poucos minutos.

Impressionante! Apesar da emboleira acústica, todos conseguiam se compreender, cada um em sua rede particular. Por mais de uma vez, cheguei a pensar no fenômeno, mas nunca me aprofundei na coisa, até começar a estudar a teoria da Gestalt. Já comecei a lidar com o assunto no meu recente texto sobre a pareidolia, mas antes de tratar diretamente sobre ele, quero desenvolver o tema da atenção acústica, conhecido pelo simpático apelido de “efeito coquetel” (cocktail party effect).


Bem, é preciso, para compreender a seletividade auditiva, estabelecer alguns critérios. Em primeiro lugar, é preciso que os idiomas falados na tertúlia sejam compreensíveis por quem os ouve. Depois, é preciso que tenham um certo nivelamento no volume, porque é evidente que não se consegue conversar existindo uma britadeira na sala. Postas estas condições, prossigamos.


O efeito coquetel é uma bela amostra de como funcionam os processos atencionais do ser humano, e de como esses processos são importantes nos mecanismos de cognição. O nome do efeito é “coquetel” para fazer referência à possibilidade de conversar em um lugar com muitos sons paralelos, inclusive música e ruídos não vocálicos, como os copos que brindam, talheres que agridem os acepipes, cadeiras que se arrastam; e também o exemplo dos meus encontros familiares é bastante didático, mas temos esse efeito sendo usado em lugar muito mais importante: a sala de aula. O que explica a diferença de aprendizado entre os alunos? Por que determinado aluno consegue, no miolo de uma sala hiperativa, produzir resultados positivos?

Porque ele consegue fazer bom uso de seus mecanismos atencionais, e abstrair o ruído ao redor é uma dessas armas. Não há aqui heroísmo ou condenação – tem gente que consegue desligar o botãozinho e se concentrar em uma leitura em qualquer metrô Sé às seis da tarde (eu), e tem gente que precisa de um quarto fechado, um ambiente tranquilo, um chá de camomila adoçado com stévia. Mais sofisticado ainda é o modelo que se supõe que o cérebro use para resolver o problema do som entre sons.


A maneira como o cérebro providencia a diferenciação dos sons é surpreendente. Sabemos que toda a decodificação dos sinais sonoros é feita por ele, mas, ao contrário do que se pensava, o cérebro não recebe uma massa sonora informe e sintoniza apenas o que lhe interessa. Cientistas suíços tem pesquisado uma outra maneira de como se realiza esse processo, com conclusões parciais muito interessantes. Segundo essas pesquisas, a cóclea, que é a estrutura mais importante do ouvido, realiza a maior parte do serviço. É uma estrutura muito sensível, em forma espiral, que tem a característica arquitetural de captar e processar sons, amplificando os mais fracos e distinguindo uns dos outros. Quando estamos conversando em um ambiente tumultuado, o cérebro vasculha seus registros e envia para a cóclea os padrões sonoros familiares e esta devolve ao cérebro os impulsos sonoros já filtrados. Se a padronagem sonora não existe nos arquivos cerebrais, não há problema: o cérebro é extremamente rápido em gravar um novo padrão sonoro provisório. Bastam algumas palavras proferidas por um professor, por exemplo, para que o ouvido consiga dados suficientes para manter a audição, e a cada minuto que se passa ouvindo, melhor absorvido esse padrão fica. A descoberta foi obtida a partir do desenvolvimento de uma equação e de um algoritmo instalados em uma cóclea artificial, um aparelho eletrônico que busca simular, com máxima exatidão, o comportamento da cóclea humana, ou seja, através das reverberações do som no interior da concha e da captação dos mesmos pelas enervações auditivas.


Por que a coisa funciona assim? Fica até chato, mas tenho que citar mais uma vez a seleção natural para justificar o surgimento de uma determinada característica humana. Imagine dois homens sentados à sombra de uma árvore, no meio de uma selva, refletindo sobre o filé de gnu extremamente mal passado que acabaram de comer. Um deles tem percepção auditiva que lhe permite a distinção sonora, o outro não. Em um estado de letargia pós-prandial, alguns de seus sentidos afrouxam a corda, enquanto outros permanecem com a sentinela armada. Dentre os sons padronizados típicos de uma tarde modorrenta na floresta, como o som do vento, o pio das aves, o ruído das cigarras, surge um barulho leve, mas claramente perceptível: passos. O ouvido do primeiro homem distingue o som específico emaranhado no meio do ruído geral e dispara o sinal de alerta para o cérebro e os demais sentidos, pontificando que há algo de podre no meio da Dinamarca. Tanta coisa pode ser – alguém que se aproxima para condividir árvore e leseira, um simples passante, um bicho curioso dando bobeira ou uma fera babando para lhes fazer de fast-food. Qual dos homens teria melhor condição de se defender? A vantagem biológica de distinguir um som entre outros é mais do que óbvia.


Mas o processo de atenção é ainda mais sofisticado. No exemplo anterior, a distinção sonora se dá instintivamente – é a reação imediata do organismo a uma ameaça potencial e iminente – mas nem sempre o fenômeno ocorre involuntariamente. Eu consigo dirigir minha atenção intencionalmente, e, com isso, restringir a minha percepção a detalhes. Vamos primeiro para um exemplo visual. Imagine-se diante do seguinte quadro, de autoria do meu amigo e vizinho Zé Carlos Camargo:



É uma obra razoavelmente grande e detalhada. Observando o todo, temos uma feira popular em alguma aldeia perdida no passado. Mas podemos aproximar o foco e extrair algumas particularidades:


Em um plano médio, descartamos as informações paisagísticas e captamos o centro nervoso da feira: a movimentação das pessoas. Deslocando a atenção apenas para o primeiro plano...


... e veremos o carroceiro, que arranja suas frutas de forma harmônica. Se apurarmos ainda mais o detalhe, começaremos a observar alguns aspectos técnicos, como a trama do tecido onde a pintura foi realizada e o manejo em estilo impressionista, com contornos pouco marcados:


Há uma sutileza: é muito mais fácil se apegar a um detalhe do que ao todo. Note como seus olhos não param de se deslocar sobre a tela para lhe captar o sentido, e como é mais fácil se deter em uma área pequena do quadro.

Com o processo auditivo, dá-se a mesma coisa. Pegue uma música qualquer, que você goste, com várias vozes e instrumentos. Para elaborar este exemplo, estou ouvindo Look at Yourself, do Uriah Heep. Ouça uma primeira vez, procure distinguir os sons mais aparentes, normalmente os agudos, como riffs e solos de guitarra; ouça novamente e perceba como os teclados tecem a cobertura da música, fazendo com que não haja vazios. Ouça mais uma vez e volte seu foco para a cozinha. Perceba como o baixo conjuga ritmo e melodia – é como se ele emprestasse sons determinados para a bateria. E, por falar nela, perceba a matemática por trás do seu compasso. Ouça como são alternadas ciclicamente as pancadas em bumbo, caixa e chimbal, e como o baterista quebra esse ciclo em suas viradas. Agora vamos escutar a parte vocal; perceba o estilo de voz do vocalista – se é contínua, se há trema, se é extensa, se é intimista, se é gutural. Perceba também os refrãos: eles não são cantados em uníssono – há cinco linhas diferentes. Vamos ouvir a música uma última vez, objetivando o todo harmônico. Não vamos mais afinar o ouvido para escutar algo específico, mas apenas a massa sonora.


Se você for atento, verá que conseguirá cumprir com eficiência todas as etapas, menos a última. Em um momento ou outro, indefectivelmente haverá fechamento de foco em algum dos sons que compõem a música. Você vai prestar atenção nas estrepolias dos solos, no ribombar das baquetadas, na linha de sustentação ou coisa semelhante. A realidade é grande demais para os nossos sentidos.


Até mesmo por isso, existe uma técnica de representação cênica que é bastante curiosa. Em cenas onde uma fala deve se destacar das demais, ou seja, quando há um murmúrio de fundo, os murmurantes não falam nada específico. Utilizam vogais fechadas e evitam consoantes fricativas e explosivas, pronunciando continuamente e assincronamente uma palavra inexistente, como “rumerrum”. Por que não utilizar palavras reais? Justamente por conta do efeito coquetel! Pode ser que alguém consiga focar as palavras dos circunstantes, deixando de lado o tema central. Falando algo “nada com nada”, este risco é mitigado.


A realidade é grande demais para os nossos sentidos, acabei de falar. Por isso, somos incapazes de dar resposta a vários estímulos concomitantes. E daí nasce a necessidade de sermos seletivos. Donald Broadbent, psicólogo britânico, fez um extenso trabalho experimental que o fez chegar à Teoria do Filtro. Em suas ideias, Broadbent destacava que as impressões eram tomadas pela consciência de acordo com sua relevância. O indivíduo tem uma primeira impressão do todo, como preconiza a teoria da Gestalt, e logo em seguida começa a se ater aos detalhes, em uma hierarquia de importância para a compreensão da totalidade, o que faz com que muitos aspectos sejam considerados irrelevantes. Também é estabelecida uma sequência da atenção, já que é muito difícil ao ser humano processar dois estímulos simultaneamente. Quando isso ocorre, a psique seleciona o foco mais significativo e coloca o segundo em estado de espera. Às vezes, essa espera se prolonga a ponto de não ser consumado o processo de cognição.


Veja como tudo isso conflui para o processo de cognição, e como tem influência, por exemplo, nos aspectos educacionais. É preciso levar em consideração curiosidades que parecem tão singelas, mas que podem significar um autêntico pulo do gato no momento de educar, como um simples tilintar de duas taças se chocando em brinde.

Santé!


Recomendações:


Aqui, o principal livro de Broadbent, para os fortes que manjam de inglês:


BROADBENT, Donald. Perception and Communication. Londres: Pergamon, 1958.


Já que mencionei o disco do Uriah Heep, vou referenciá-lo, porque vale muito a pena.


URIAH HEEP. Look at Yourself. Londres: Bronze Records, 1971. 41:14 min. 33 1/3 rotações.


E aconselho também uma visita à praça da República. Pegue um domingão de sol, vá passear pela feira de arte e procure pelo Zé Carlos Camargo. Aprecie sua arte e de seus colegas. Vale a pena.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Cartas náuticas para marinheiros de terra firme - 8º relato: Monte Alegre do Sul - Aprecie com moderação

Olá!

Sabe aquelas vezes em que você acha que vai dar de frente com uma pedra e de repente encontra uma joia? Essa foi a sensação que eu tive ao visitar a pequena cidade de Monte Alegre do Sul, irmã menos famosa do Circuito das Águas.


É uma das cidades que fica mais ao sul do conjunto “aquático”, já pegada com a região de Bragança Paulista. Não há uma grande rodovia para acessá-la, o que se faz com estradas vicinais. Sua entrada é guarnecida por um pórtico clássico (não no estilo, mas na onipresença).



Mas, da mesma forma que em outras cidades, há um forte distintivo de identidade na sua entrada. Assim como em Socorro temos uma grande moringa, e em Águas de Lindoia há o estilo alemão, em Monte Alegre do Sul surge uma bonita fonte em forma de cachoeira.


Sem dúvida alguma, Monte Alegre do Sul é a menor cidade de todas da região, o que se provou até mesmo uma vantagem, dada a imensa tranquilidade do lugar. A igreja tradicional estava lá. É um Santuário, designação de igreja que recebe peregrinações. No caso, o do Bom Jesus.



No adro da igreja, uma praça com coreto, entrecortada pelas duas ruas principais da cidade. Aqui, aquela famosa brincadeirinha da rua da igreja e da prefeitura é real.


Nos fundos da igreja, há um conjunto interessante. Nele, há algumas grutas com santos e presépios, escadinhas e ladeiras, formando uma espécie de espaço contemplativo, sombreado pelas árvores e pelo morro. Tudo muito calmo e bonito.


Na minha pesquisa inicial, resolvi subir ao alto do monte onde pontifica o Cristo Redentor...

  ... e, de lá, pude ter uma dimensão mais exata da mancha urbana do município. Pequena, de fato. Mas de lá era possível entrever uma cidade muito bem cuidada, que desde já parabenizo.


Eu não tinha a menor intenção de passar por lá, admito. Digo mais: nem conhecia sua existência. Mas meti na minha cabeça uma equação que tinha como raízes a conjunção de preço baixo e disponibilidade de vagas. Acertei em cheio, mas sem antes passar pelo dissabor de passar em um monte de outros lugares muito caros, localizados em outros municípios. E, mesmo lá, tomei um pequeno susto ao verificar que a área urbana não possui hotéis. Fui encontrar abrigo em uma pequena pousada retirada do centro urbano, chamada Pousada da Luz, da dona Rosa. Um outeiro com cinco chalés, piscina, refeitório, playground e um riacho ao redor. No final da tarde, revezei com a patroa na rede (os pés são dela)...

... para contemplar esse pôr do sol:


Devidamente estabelecidos, partimos para explorar um pouco mais profundamente a região. A cidade, como bem se sabe, é rica em águas, e disponibiliza ao visitante um balneário fechado, com sauna, banho de imersão, ducha escocesa e outras opções fluidas.


Há, como se pode supor, muitas fontes espalhadas pela cidade. Estivemos em duas das mais urbanas, mas sabemos que há várias outras espalhadas pela zona rural. Há uma nas vizinhanças do balneário municipal...



... e outra próxima à estação de trem, que fica na região central da cidade.

Aliás, já que falei da gare, ela tem a função de espaço cultural, sem contar o exemplar de locomotiva lá localizado, bastante íntegro.

Quase na entrada de Monte Alegre do Sul, há uma curiosa cidadezinha construída para crianças, que tem banquinho, vendinha, quadrinha, igrejinha... Não me furtei a entrar em algumas delas, mas chapei o coco no teto de uma delas. Bem feito!



Na estradinha que liga o centro da cidade ao distrito de Mostardas, encontramos bons pontos de balneabilidade em rios, como o Camanducaia e seus afluentes...




... incluindo algumas cachoeiras, como a Andorinha (vacilo, não tirei nenhuma foto) e a do Sol, que fica no interior de uma propriedade particular.

Mas estava de graça no dia, por escassez de água. Deu para molhar os pés, e nada mais.

Já no distrito de Mostardas, encontramos o José Márcio, fabricante de artigos de madeira, um talentoso artesão que vive nesta bela casinha, onde faz seus esqueletos de dinossauros...


... e muitas coisas mais, como retratos, jogos de montar, barquinhos e outros, como essa bancadinha de marceneiro:



Mas é na produção de cachaça que Monte Alegre do Sul ganha o jogo. De acordo com a prefeitura, a cidade possui 37 alambiques, sendo que nenhum deles produz suas pinguinhas de maneira totalmente industrial. Passamos, entre todas as nossas idas e vindas, pelas seguintes:


Casa da Cachaça:




É a mais sofisticada de todas. Tem mais um jeitão de loja, mas produz muita coisa do tipo exportação. Possui em exposição um aparelho de destilação todo feito em cobre.




Adega Peterlini:



Forno de barro no estilo da vovó, com café quente disponível a toda hora, pães caseiros e movelaria rústica, é o lugar onde mais molhamos o bico frequentamos, atendidos com cortesia pelas irmãs Edivana e Elaine.


É a típica casinha de interior, destacando-se uma curiosa árvore de Natal construída com garrafas diversas.


Abaixo da casa, a adega. Ambiente necessariamente protegido da luz, com suas barricas. Ali, também se trabalha com bons vinhos, feitos a partir de uvas Isabel e Bordô.



Ateliê da Fonte:




É uma combinação entre adega, barzinho e, como diz o nome, ateliê. Nele, há muitas peças de artesanato fino, elaborados pela ceramista Dadá Macedo. O ambiente é um autêntico espetáculo, com a fonte que nomina o estabelecimento.


Chora Menina:


Voltamos à zona rural, onde fomos recebidos pelo seo Nelson e pela Havanir. É uma das cachaças mais premiadas de uma cidade que já recebe muitos prêmios.


Uma pequena variedade de excelentes bebidas, usadas inclusive em um curioso ritual festivo de fecha-corpo, realizado em todas as sextas-feiras santas. A conferir.


Cantinho da Ni:



Um dos lugares mais famosos e agradáveis de todos, pilotado pela Denise, descendente do pioneiro Dirceu Daolio, que, além dos produtos etílicos, possui vasto arsenal de geleias e de pimentas.


Neno Campanari:


Para quem quiser conhecer todo o processo produtivo da cachaça, esse é o lugar. O próprio Neno faz questão de apresentar em pessoa a engenhoca, o alambique, os tanques de fermentação e explicar tim-tim por tim-tim como se faz para extrair da cana a sua alma. Também é possível comer um bom queijo vindo diretamente da mineira Cambuí, que entende dessas coisas.



Sítio do Vidião:


De todas aquelas que visitamos, é a menor. Aliás, é bem escondidinha. Olhando da estradinha, tudo o que se vê é essa bonita casa e um cachorro que só tem tamanho. Possui um acervo pequeno, mas bastante saboroso, porque os tonéis utilizam as madeiras corretas.


Uma curiosidade. O Vidião, já falecido, dizia que sua cachaça era tão boa que mesmo seu cavalo gostava de dar um tapa no beiço. Ele fez questão de eternizar o fato no rótulo de suas bebidas.


Nono Rouxinolli:

Aqui, estamos no alto de um morro. De cara, um veículo utilizado para fazer pequenos passeios para as crianças. Lembrou-me a camicleta dos personagens Shazam e Xerife, defendidos por Paulo José e Flavio Migliaccio, no meio da década de 70. Este é um lugar que também tem o café como lado forte.



Além disso, é bastante notável a quantidade de licores de tudo quanto é tipo, todos com mostruários a disposição.


Depois de um périplo destes, é quase impossível não estar caindo, principalmente porque não há nenhuma semelhança entre estes produtos artesanais e aqueles obtidos por meio industrial, mais aparentados com o álcool de farmácia.
Prometo não demorar, já prendi muito a atenção de todos. Quem me vê cantar tantas loas às cachaças de Monte Alegre do Sul pensa, de cara, duas coisas: que eu sou um bêbado e que não existe nenhum problema no consumo destas bebidas. Nada disso.
Em primeiro lugar, bebo muito pouco e nunca o faço sozinho. E, logo em seguida, é preciso muito cuidado com o consumo de álcool. Vejo quase todo dia um mendigo que mora aqui perto de casa, cujo apelido é Bonitão. Claro que não constitui uma bela figura, mas se trata de um cidadão de paz, que chama quase todo mundo de bonitão, bonitona e outros elogios que acabaram por lhe conferir o apelido. É um mendigo clássico, daqueles que passa o dia de obter meia dúzia de trocados, geralmente utilizados para consumir suas pinguinhas.
Eu já não consigo distinguir quando o nosso amigo está sóbrio ou embriagado. Há alguns momentos em que ele está mais casmurro, e penso que são seus poucos instantes de sobriedade. De vez em quando, pago um café com leite e pão com manteiga para o gajo, não porque queira dar um gostinho de classe média para o infeliz, mas para que se alimente um pouco.
Bonitão tem andado doente. Parece que está atacado de gota, ou outra doença que mexa com as articulações. Ele tem o andar claudicante dos ébrios 100% do tempo, como se os pés estivessem redondos. Isso não é um bom sinal. Outro dia, quando eu voltava tarde da noite para casa, vi que ele estava convulsionando. Chamei a ambulância, porque meus conhecimentos médicos são parcos. Depois disso, ele sumiu bem por uns quinze dias, acho que foi internado. Quando ressurgiu, já estava bêbado de novo, completamente dominado pelo seu vício.
Repito: é preciso muito cuidado com o álcool. Ele possui um defeito que o torna muito grave: reluta-se muito em admiti-lo como droga. E como possui boa aceitação social, entendo ser o pior vício que encontramos por nossas ruas nos dias de hoje, pior até mesmo que o crack. Fala-se muito na liberação da comercialização da maconha, mas, mesmo que isso aconteça, demorará um bom tempo até que seja uma droga aceita socialmente. Não vai ser do dia para a noite que dar um tapinha na pantera em um fim de semana vai ser visto como algo normal. Mas a cerveja, o vinho e a caipirinha o são, principalmente quando acompanhando um churrasco ou petiscos mil. Não é verdade? Pense em azeitona e na cervejinha que a acompanha. No queijo e no vinho. Na feijoada e na caipirinha.
O álcool é uma das drogas que mais alteram a atividade mental. Tem o duplo efeito de excitar e deprimir, em ato contínuo. E, por vezes, revelam idiossincrasias das pessoas que não são vistas em momento de sobriedade. O álcool, nesses casos, parece embebedar o superego em primeiro lugar. Dá laço frouxo àquela instância psíquica onde são amarradas as mãos ávidas e os pés ligeiros dos instintos, e com isso fazemos coisas que até Deus duvida, como fazer strip-tease na mesa do bar, ou cantar músicas inimagináveis no karaokê, ou tomar valentia para contar verdades recônditas e até mesmo brigar, pateticamente, com outro bêbado. E há quem se desiniba e filosofe.
Sobre esse último item, há um interessante livro de Daniel Lins em que se trata a questão de literatos que usavam e abusavam do álcool como liberadores de criatividade em suas obras. Através do estudo dos livros de diversos autores “etílicos”, Daniel Lins traça uma teoria alcoólica, em que se demonstra como a marvada pinga (marvado uísque, marvado vinho) traz influências delineadoras nas tramas e ousadia das histórias, em como são liberadas filosofias que ficariam escondidinhas na abstinência. Seu julgamento não é moral – não defende o alcoolismo. É estético. Prende-se ao que se obtém em uma obra de arte a partir do consumo de álcool, não de seus efeitos orgânicos e sociais. Neste sentido, é uma visão inédita e interessante, que vale a pena ser conhecida.
Aprecie com moderação.

Recomendação de leitura:

O tal livro.

LINS, Daniel. O Último Copo. São Paulo: Civilização Brasileira, 2013.