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quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Cartas náuticas para marinheiros de terra firme - 7º relato: Monte Sião, porcelana e a dialética histórica

Olá!


Chuva... Boa nos tempos duros de estiagem, mas não tenho como negar que fiquei meio puto em pegar um dia inteiro de chuva no meu raro período de férias. O jeito é partir para a área cultural, que não enlameia os pés e nem causa gripe. Conforme recebemos recomendações, partimos novamente para o estado de Minas Gerais e fomos conhecer Monte Sião.


Como se pode ver na foto abaixo, o dia se afigurava entre o depressivo e o tenebroso. Com o céu do jeito que estava, não havia grande esperança de se desvencilhar do guarda-chuva. Até o pórtico da cidade, ainda tínhamos alguma esperança de tempo estável, mas foi só ultrapassá-lo para que a tímida garoa ganhasse proporção.


Monte Sião se notabilizou por um tripé composto por pano, reza e caco. Explico melhor: a cidade é muito conhecida por ser um grande polo têxtil, mais especificamente na produção de peças de tricô. Apesar da imensa tentação da patroa, passamos praticamente incólumes, após eu proferir um discurso, entre comovido e patético, acerca das vantagens da economia de recursos e do afastamento das tentações.


Falando em tentação, há em Monte Sião um importante santuário, muito procurado por um bocado de gente. Trata-se da igreja de Nossa Senhora da Medalha Milagrosa...


... que, por acaso, vem a ser essa daí (um modelo, evidentemente):


São atribuídos muitos milagres a essa medalha e à intervenção de sua maior entusiasta, Santa Catarina Labouré, uma freira francesa. O santuário é uma espécie de basílica de Aparecida em ponto pequeno. Tal como na sede da padroeira de nosso judiado país, há uma concentração significativa de artigos de fé, reunidos em um cômodo denominado “Sala das Graças”.


Neste lugar, estão expostos itens que representam os apelos das pessoas em desespero, que não veem outra alternativa a não ser recorrer à divindade. Há muitas fotos espalhadas pelas paredes...


... e muitas peças de cera representando partes do corpo, como cabeças, mãos, pés, pernas, órgãos. Esse é o tipo clássico de promessa para quem tem problemas físicos, geralmente ameaçados de morte ou de mutilação.


Também há peças de roupas, muitas peças de roupas. Há peças de dois tipos: os tricôs típicos da cidade, preparados especialmente para remir promessas, e roupas usadas pelas pessoas que pedem socorro. É muito comum ser inserida uma grande oração de agradecimento, acompanhada pela descrição da graça recebida. No caso abaixo, temos uma roupa de criança enquadrada pelos pais (há vários outros semelhantes).


E por último, mas não em último, temos a porcelana. Porcelana azul. Linda de verdade. Próximo à praça central da cidade, há uma grande loja que fornece seus produtos a pessoas que vêm de toda parte, anexa à fábrica que as produz.


A variedade é absurdamente grande. A grande especialidade é a utilização de coloração branca e azul, que representa pelo menos 95% de sua produção. É possível montar conjuntos de presente (bons para casamentos) ou cair de cabeça na banca de liquidações, composta por peças com pequeninos defeitos vendidas por menos da metade do preço de prateleira. Caçando com especial paciência, é possível montar uma bela bateria, sem causar grandes percalços ao tesouro.


Curiosíssima característica: é permitido aos clientes visitar a fábrica, que ocupa o mesmo terreno da loja. Para crianças (como eu), um atrativo e tanto, mesmo com a expressa proibição de tocar nas peças. É um ambiente tipicamente fabril, e, mesmo com muito de artesanato, é possível perceber com clareza o sistema de linha de produção, com suas especialidades.


Algumas das tarefas desempenhadas têm a necessidade de lançar mão de cuidados especiais. Há que se fazer algumas “usinagens”, que produzem boa quantidade de poeira, obrigando o uso de máscaras. Esses desbastes e raspagens são feitos com material cortante, o que aumenta o risco.


Uma das principais atrações é observar o funcionamento das marombas. São grandes tanques circulares que possuem, em seu interior, pás que batem a massa, até torná-la homogênea e apropriada à manipulação.


Depois de pegar o ponto, a massa é inserida em moldes de madeira esculpidos internamente no formato desejado, e, uma vez acomodados, são selados com anéis de borracha até que sequem bonitinhos, o que pode demorar um bocado.


Mas o que há de mais impressionante é o forno, tocado a carvão. As peças são colocadas lá dentro e dá-lhe fogueira, com as paredes devidamente entijoladas. Cara, é quente!!! Tive vontade de pedir adicional-insalubridade só de chegar perto.


A parte realmente artesanal vem depois, com a traçagem e a pintura dos detalhes das porcelanas. É um trabalho de atenção e delicadeza. A menina abaixo está fazendo o trabalho de desenhar os arabescos de uma terrina:


São utilizados uns pratos circulares, uma espécie de bailarina que auxilia no trabalho com os pincéis, como é o caso do preenchimento dos desenhos...


... ou da aplicação dos vernizes.


É uma estrutura fabril interessante, mas que não despreza o aspecto artesanal. Há, como eu disse, uma mistura de linha de produção com trabalho artístico, já que toda a parte de pintura é feita a mão, e mesmo outras tarefas, como o ponto da massa e o controle da temperatura, são feitas de modo bastante empírico. É serviço de atenção e esforço, um ofício daqueles que, aparentemente, passa de pais para filhos.

As condições de trabalho me pareceram bastante boas, com todos os equipamentos necessários e nenhum grande sofrimento por parte dos operários, pelo menos nada além do essencial. Gostei bastante da visita e recomendo, mas um ambiente fabril não permite evitar uma lembrança para quem estuda e gosta de Filosofia e Sociologia.

Bora... Chegou a hora de falar de Karl Marx!!!

Em primeiro lugar, é preciso dizer que há necessidade de se ter cuidado ao tratar deste filósofo, que se assemelha ao Corinthians no quesito amor e ódio. Ele não é um salvador da pátria, assim como não é um demônio. Ele errou em cheio ao apostar no comunismo como forma de “salvar a humanidade”, e isso foi comprovado pelas experiências desastrosas do Leste Europeu e ponto. Também não mandou bem ao considerar a propriedade como algo a ser eliminado, praguejando imprecações contra a burguesia sem tentar humanizá-la. Mas também é inegável que a maioria dos direitos sociais dos quais usufruímos tem o dedo de seu pensamento. E, no quesito análise social, só os protestatários de Facebook não sabem reconhecer seu vigor, provavelmente pelo mais absoluto desconhecimento e adesão imponderada aos memes produzidos por seus papas. Vamos tentar falar sério e aprender um pouco sobre o surgimento das teses marxistas.

Marx constrói sua filosofia com duas fortes influências de base: a dialética hegeliana e a teoria da alienação de Feuerbach. Já falei sobre ambos, aqui e aqui. A leitura destes textos pode facilitar as coisas por aqui.

Com Hegel, Marx concordava que a história era construída por movimentos que se dão entre polos opostos, ou seja, uma determinada situação já contém em si mesma a sua contradição. Essa tensão entre posições antitéticas conflui para terceiras soluções, que, uma vez estabelecidas, novamente carregam uma oposição, que em confronto conduzem a outra síntese, ad aeternum. O grande diferencial entre ambos os filósofos residia no que eles pensavam ser a mola propulsora do processo dialético. Hegel atribuía o navegar dialético ao Espírito Absoluto, uma espécie metafísica de totalidade da realidade. Tudo nasce de uma ideia, onde são trabalhados os conceitos abstratos; em seguida, essa ideia é exteriorizada, sendo colocada em prática na natureza, e, por fim, uma vez sintetizada, retorna ao Espírito, já unificada entre teoria e prática, de onde novamente poderá partir como ideia em um novo processo.

Marx também encarava a realidade como um processo dialético, mas abandona qualquer tentativa de atribuí-lo a uma instância exterior à própria realidade palpável. Enquanto Hegel leva o Idealismo ao ápice, Marx registra todo o seu pensamento na Terra. O mundo é só natureza. É o materialismo histórico dialético.

Vou elaborar aqui um pequeno exemplo de como funciona esse processo. Para tanto, usarei o curso histórico das correntes literárias, partindo do Barroco. Como sabemos, esse estilo era caracterizado por um derramamento exacerbado, repleto de firulas e volutas. Era representativo do ápice da aristocracia, cheio de referências à religiosidade.

Dos excessos do barroco, partiu-se para a sua simplificação, o Arcadismo, que pregava uma vida pastoril e recatada, com uma retomada das estruturas clássicas. A literatura sai dos meandros palacianos e se volta para a natureza, buscando uma valorização do quotidiano e das coisas comuns a todos os homens, estabelecendo uma crítica à aristocracia despicienda.

Desse despojamento estrutural, brota um novo movimento, que busca dar nova ênfase ao indivíduo, em detrimento da comunidade. Surge o Romantismo. É o tempo do individualismo e do idealismo, dos objetivos inalcançáveis, do desejo por aquilo que está além do alcance, do novo homem ideal. Eram tempos da queda de déspotas, um novo horizonte estava sendo traçado, com homens que buscavam o exótico e o com a exacerbação dos sentimentos. Sua radicalização gerou o Ultra-romantismo, onde se entrevia um fracasso do ideal, e surge o mal do século, representado pelo desejo de fuga temporal e espacial.

Como o Romantismo estava caminhando por sendas cada vez mais divorciadas do mundo que o rodeava, um novo movimento conduz o cenário artístico de volta à terra firme. Já estamos nos tempos de intenso progresso científico e da Revolução Industrial, com a ascensão da pequena burguesia, conduzindo os espíritos para um pensamento mais pragmático e utilitarista, com foco na realidade perceptível. Temos então o Realismo, escola que buscava retratar as condições sociais como elas eram, sem ideais. Mas também dele resultou uma radicalização, o Naturalismo, que passou a ver o homem como objeto de estudo, condicionado por leis naturais dos quais não podia escapar (falei um pouco sobre essa corrente aqui). A análise das classes sociais mais baixas pode ser vista tanto como um protesto por suas difíceis condições de vida quanto por um prisma de conformismo, já que os fatores de determinação de suas condições escapam ao controle dos homens.

Como não poderia deixar de ser, há também uma oposição a esse pensamento que, no limite, desumaniza o proletário, o negro, o homossexual e o homem como um todo. Vem o Simbolismo, uma autêntica expressão de desenlace do homem com a realidade através do uso profuso do símbolo, da linguagem figurada, do misticismo e do subjetivismo. Não chega a ser um retorno ao Romantismo, porque não busca ideais, mas instâncias oníricas e um forte teor lírico, aproximando a literatura da música, com uso intenso de figuras de linguagem, tornando a própria leitura um ato de mistério. É uma reação ao racionalismo realista.

Por fim, as dificuldades de compreensão da estética simbolista levam a um novo movimento, em que as línguas locais e vernáculas passam a ser valorizadas. É criada uma estética do povo, desprendida dos tradicionalismos subjacentes às demais escolas, considerados ultrapassados. O interesse se volta para o aqui e o agora, com as palavras que utilizamos no dia-a-dia, olhando para o interior das próprias comunidades; não para vê-las como objeto de estudo, mas para promovê-las a produtoras de meios de expressão legítimos e insubordinados. É o Modernismo, o mais eclético de todos os citados.

Conseguem enxergar a dialética operando? Percebem como cada movimento traz em si mesmo a sua oposição, e como o curso das tendências conflui para o outro lado da dicotomia? Percebem também como esse movimento modifica a história da própria arte? Do exagero barroco, brota a simplicidade arcádica; da simplicidade arcádica, brota o idealismo romântico; do idealismo romântico, brota a crueza realista; da crueza realista, brota a abstração simbolista; da abstração simbolista, brota a usualidade modernista.

Hegel e Marx concordam até esse ponto, mas é aqui que nasce a bifurcação entre o pensamento de ambos. Para Hegel, o que movimenta estas mudanças é o Geist (Espírito), uma espécie de instância superior ao ser humano que conduz a sua história. Podemos ter mais ou menos uma ideia do pensamento de Hegel quando falamos algo como “o espírito brasileiro”, o que significaria uma espécie de destino e substrato intelectual comum a todos os que habitam nesta terra, ou seja, uma instância que nos conduz sem que percebamos. Sua via de concretização é a ação dos homens, e somente conseguimos percebê-lo em perspectiva, quando os acontecimentos já se deram e podem ser descritos. Foi assim que Sérgio Buarque de Hollanda enxergou no brasileiro um povo cordial, e que Gilberto Freyre nos viu como democratas raciais – analisando o nosso “espírito”.

Já Marx tem os pés no chão. Não é um espírito abstrato que conduz a marcha da história, mas sim os aspectos materiais, expressos principalmente na luta entre classes. Foi a oposição do corpo artístico aos enlevos aristocráticos que fez a literatura migrar do barroco para o arcadismo. Foi a necessidade de afirmação individual derivada do liberalismo que conduziu ao Romantismo. Foi a necessidade de analisar a sociedade como objeto científico que levou ao Realismo, e assim sucessivamente. A história é eterno movimento e este se dá a cada vez em que uma classe social dominada entra em confronto com outra, dominadora.

A outra coluna do pensamento marxista original vem de Ludwig Feuerbach. Para este alemão, de obra muito mais modesta em relação a Hegel, o homem constrói suas divindades a partir de uma análise antropológica inconsciente. As melhores virtudes humanas são atribuídas a um ser, a divindade, e a humanidade já não reconhece esses predicados em si mesmos; são deslocados ao deus, ao outro, ao alienus. Essa é a tese da alienação, com a qual Marx concorda, mas critica, porque, para ele, era algo como gastar vela boa em defunto ruim. De fato, Marx reconhece a existência da alienação religiosa, mas entende que Feuerbach perde um enorme tempo e uma preciosa oportunidade de aplicá-la a outras esferas, deixando de sair para o mundo material. A análise de Feuerbach é incompleta, porque não reconhece a religiosidade como um fenômeno social gerado pela opressão e desencanto do sistema. A religião é um lenitivo, o “ópio do povo”, que se aliena em um universo perfeito porque não consegue encontrá-lo em seu mundo físico. Neste diapasão, ele desloca o foco da teoria da alienação do campo religioso para o mundo das relações de trabalho. Vamos ver como Marx constrói sua análise sociológica.

Marx não reputa o trabalho como uma atividade estranha ao homem, mas como uma característica constitutiva, como ocorre também na natureza, exemplificada pelos animais sociais. O diferencial inerente ao homem é sua capacidade de abstrair o fruto do seu trabalho. Em uma de suas mais belas assertivas, Marx diz que

“... a aranha realiza operações que se assemelham às do tecelão e a abelha envergonha muitos arquitetos com a construção de suas casinhas de cera. Mas o que desde o princípio distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que ele construiu a casinha em sua cabeça antes de construí-la em cera. No fim do processo de trabalho, emerge resultado que no início já estava presente na ideia do trabalhador e que, portanto, já estava presente idealmente”.

Desta forma, o homem é um ser que tem a característica de modificar a natureza de forma a transformá-la na extensão de seu próprio corpo. O trabalho faz parte da construção da humanidade. No entanto, por ocasião da Revolução Industrial, a maneira como o trabalho se imiscuía na vida dos homens teve uma modificação radical. Já não se transformava a natureza para servir aos interesses de uma determinada comunidade, para a concretização de ideias e anseios, mas como um mero meio de sobreviver. Nada é de posse do trabalhador – nem a matéria-prima, nem o ambiente de ofício, nem o projeto do produto, nem o produto final. Tudo pertence a um proprietário, de modo que ele mesmo, trabalhador, nada mais é do que uma das mercadorias necessárias à fabricação.

O trabalho que não diz mais nada a respeito do operário não é seu; o produto que vai ao comércio não tem nada a ver com quem o manufaturou. O trabalhador sente sua produção externa a si mesmo, algo que não lhe pertence, já que não emprega sua criatividade a serviço do suprimento das necessidades que vão além de sua própria subsistência. Em resumo: sendo o trabalho uma característica humana, o homem inserido no meio de produção perde parte de sua completude. O operário alienado de seu produto se aliena de seu conceito de trabalho. E o que é mais grave: aliena-se de sua identidade como homem.

Pensem bem. Um dos maiores desafios aos jovens de hoje é se formar e trabalhar em uma atividade que lhes dê prazer (leiam o que escrevi neste texto). Por que? Porque esse sentimento de ausência de pertença permanece. Não parece certo? Não vivemos reclamando que o fim de semana não chega logo? Não temos até mesmo uma recentíssima depressão pós-férias? Ainda hoje temos certo desgosto com as obrigações contratuais, buscando compensá-lo com viagens incríveis, com happy hours dionisíacos, com as promessas de financiamento, com o sonho empreendedor de se ter o próprio negócio.

Eu não quero aqui estabelecer uma comparação entre as fábricas visitadas por Marx e as condições de trabalho de hoje. Há MUITA, mas MUITA diferença. Há limites de jornadas, equipamentos de segurança, direitos sociais como férias, proteção às gestantes e etc. No auge da Revolução Industrial, havia crianças trabalhando por dezesseis horas diárias. Não dá para fazer um confronto entre os dois períodos. E também não é possível afirmar peremptoriamente que esse modelo de relação de trabalho seja prenhe de desgraças, que não haja nada de bom nele. Há, por exemplo, a vantagem de não se ter de ocupar com o todo da produção – como comprar, como vender, como contratar. Mas é fato que, geralmente, não há um sentimento de prazer no interior do ambiente de trabalho. E que os conflitos de classe são grandes usinas de modificação histórica. Alguém discorda?

Vou parar por aqui, porque este texto já está ficando muito longo. Fica estabelecido que, para Marx, há uma necessidade de revolucionar as relações humanas construídas em torno da noção de propriedade, de modo a estabilizar as lutas de classe, mesmo que a sua solução não tenha sido a melhor possível. Voltarei a ele, assim como voltei a Comte.

Recomendação de leitura:

A obra de maior vulto de Karl Marx, em parceria com Friedrich Engels, foi O Capital. Mas é uma análise muito extensa e complexa. Melhor começar com seu Manifesto Comunista, bem mais resumido, mas que pode dar uma bela ideia de como funcionam suas ideias.

ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. O manifesto comunista. São Paulo: Saraiva, 2011.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 17º tomo: a negação do antecedente

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas

É vantagem ou desvantagem estar rodeado de sinos por todos os lados? Eu, particularmente, gosto; e, seja por bom senso dos padres, seja por determinação da prefeitura, seja pelo anacronismo deste modelo de “despertador”, o fato é que não se tocam mais sinos antes das nove da manhã. Há tempos que eu não acordo depois disso. Portanto, não me perturba.

No caso, é independente o fato de se ser cristão ou não. Os sinos são quase que fósseis que ainda nos fazem recordar de uma cidade de São Paulo com algum ar de aldeia do interior. E esse fenômeno da reminiscência é especialmente relevante na região central do município, onde estão combinados o excesso de igrejas históricas e a escassez de moradores, em especial nas proximidades da Sé, onde habito.

Da janela do meu apartamento, ouço com destaque os poderosos sinos da Catedral da Sé, de onde também ecoa a música dos carrilhões, absolutamente fascinante – pena que viva em manutenção. Também é possível ouvir sem qualquer esforço os sinos da velha igreja do Carmo, encravada entre o Poupatempo e a Secretaria da Fazenda, no marco inicial da longa Avenida Rangel Pestana/Celso Garcia, em frente de onde moram duas das minhas mais chegadas afilhadas, a Natália e a Renata. Quem tem a audição um pouco mais fina, também consegue distinguir os sinos do Mosteiro de São Bento, que bate de hora em hora. Tem também o sino das cinco da tarde da igreja de Santa Luzia, pequenos e mais agudos que o habitual. Há ainda outros templos que acionam seus sinos ocasionalmente, principalmente em dias de festa, mas gostaria aqui de mencionar a igreja da Boa Morte, por uma característica peculiar. Enquanto todas estas igrejas têm mecanismos automáticos para rebater seus sinos, nesta em particular ainda permanece o método medieval – as cordas.

Sim, ainda existem sinos acionados por cordas.

Tocar os sinos “na mão” requer certa técnica. É preciso subir pelas escadas estreitinhas do campanário, mas não se pode batê-los em distância confortável, sob pena de suspender a audição de samba por alguns dias. Isso se o dano não for maior. É preciso tomar a corda e passá-la pelos vãos da escada como se fossem corrediças, e descer uns dois lances do caracol quadrado das escadas. Claro, é possível poupar muitos desses transtornos utilizando um protetor auricular, mas nem sempre o temos ao alcance.

Para tanger os sinos, é preciso ritmo; e, para ter ritmo, é preciso conhecer o curso das cordas. Meio metro para cima, meio metro para baixo, em um ciclo de dois segundos. No campanário há três sinos; é possível badalá-los todos de uma vez, ampliando o som. Mas aí é necessário fazê-lo em sincronia, seja continuamente, seja alternadamente. Neste caso, o nível de maestria deve aumentar em muito.

A igreja de Nossa Senhora da Dormição, que o universo inteiro chama de Boa Morte, é uma capela que fica no alto do morro onde hoje pontua a rua Tabatinguera, mas em que antigamente serpenteava o ribeirão do Carmo, riacho de corredeira que desaguava no rio Tamanduateí, o que ajudava a formar belas inundações onde hoje jaz o abandonado quartel do Parque Dom Pedro. Para quem tem ouvido de tuberculoso, é possível escutar o marulhar de suas águas nos tampos da galeria que fica na calçada do boteco da esquina em frente à precitada igreja. Mas isso só é possível no domingo, já me disse alguém que tem ouvido de tuberculoso.

Olhando a foto aérea da região, é possível perceber as intervenções na topologia local com a chegada da modernidade. O curso do riacho foi aprumado antes de ser enfiado em uma galeria. Uma boa parte do pavilhão paroquial foi para o vinagre, deixando-o com exótico formato trapezoidal (by Google Maps):


Fico aqui pensando... O que aconteceria se algum prefeito doido resolvesse proibir os sinos das igrejas de tocar? Como poderíamos deduzir se já são nove horas da manhã de domingo? São os sinos que fazem os ponteiros do relógio se mover?

Claro que esta é só uma elucubração didática, mas poderíamos sistematizar essa dúvida em um silogismo:

Os sinos das igrejas tocam às 09:00 do domingo.
Os sinos das igrejas não tocaram até agora.
Portanto, ainda não são 09:00 do domingo.

Há um erro formal neste raciocínio. O fato de que os sinos não tenham tocado não significa que não sejam 09:00. Podemos ter uma proibição, como especulei acima. Podemos ter um acordo entre as igrejas para não tocar os sinos por conta da morte de um figurão eclesiástico. Podemos ter a improvável (mas não impossível) coincidência de que os mecanismos tenham quebrado ao mesmo tempo. Ou seja, há aqui uma confusão entre condição necessária e condição suficiente, em mecanismo equivalente ao que eu discuti quando expus a falácia da afirmação do consequente. A única diferença, neste caso, é que mudamos o ponto onde há a deficiência lógica, e temos uma negação do antecedente, uma falácia do tipo non sequitur (“não segue que” em latim).

Para que eu não termine a exposição aqui, vou aprofundar um pouco o tema e falar sobre as fórmulas de inferência e, para tanto, vou penetrar no terreno semiárido da lógica proposicional.

Quando falamos em Lógica como disciplina, devemos ter em mente que é necessário tornar o pensamento mais matemático para resolver as implicações das proposições, que nada mais são do que afirmações ou negações extraídas do mundo real. Neste caso, podemos substituir um longo conjunto de arrazoados por nomenclaturas padronizadas. Vamos brincar um pouco disso.

Tomemos uma pequena bobagem qualquer e coloquemos em forma de silogismo:

Se hoje é dia 1º de abril, então hoje é o dia da mentira;
Hoje é dia 1º de abril;
Portanto, hoje é o dia da mentira.

Simples, não? Só que é possível substituir os termos das premissas por símbolos, tornando-os mais simples e reutilizáveis por outras. Vou chamá-las assim:

Se hoje é dia 1º de abril = p
Hoje é o dia da mentira = q

Ok. Agora vou reescrever este silogismo utilizando os símbolos:

Se ocorrer p, então teremos q
Temos p
Portanto, temos q

Está fácil? Agora vamos recorrer a outros símbolos para compactar ainda mais nossa proposição. Os símbolos proposicionais que utilizaremos são o de implicação (ou condição), que é uma seta (→), e o de conclusão, que são três pontinhos em forma de triângulo (). Vejam como a fórmula vai ficar agora:

p→q
p
q

(Lendo: Se p então q; p; portanto q).

Isso é o que chamamos de fórmulas moleculares, porque limpamos todo o ouropel que existia ao redor delas e damos foco exclusivamente ao que interessa, àquilo que faz o mecanismo proposicional girar. Para qualquer conjunto de proposições válidas, esse paradigma de fórmula funcionará.

Este modelo de fórmula é o que chamamos de Modus Ponens (modo que põe), que é uma regrinha utilizada pelos lógicos para reduzir uma proposição. No nosso exemplo, p é o antecedente e q é o consequente. O Modus Ponens permite deduzir que se o antecedente é verdadeiro, o consequente também será. É uma afirmação do antecedente.

Mas há também o Modus Tollens (modo que tira), cuja diferença consiste em negar o consequente e, por tabela, negar a conclusão. Fica assim:

Se hoje é dia 1º de abril, então hoje é o dia da mentira;
Hoje NÃO é o dia da mentira;
Portanto, hoje NÃO é dia 1º de abril.

Reduzindo à fórmula (introduzindo o símbolo de negação ¬)...

pq
¬q
¬p

(Se p então q; não q; portanto não p)

Desta forma, temos a negação do consequente. Neste caso, a condição estabelecida não se cumpre, e a conclusão só pode ser negativa. Há plena lógica, mesmo com a negação.

Qual o problema com o nosso argumento dos sinos? Simples. É uma condição para ser resolvida pelo Modus Tollens. Só que o que está sendo negado não é o consequente. Vamos desdobrar o raciocínio para compreender melhor:

Se os sinos das igrejas tocam, são 09:00 do domingo;
Os sinos das igrejas não tocaram;
Portanto, não são 09:00 do domingo.

Vejam que não estamos negando o consequente q, mas o antecedente p. Portanto, há um defeito na construção do argumento, um non sequitur. E isso ocorre por conta do mesmo problema mencionado na falácia da afirmação do consequente: há problemas com as condições necessárias e suficientes para o cumprimento da condição. Portanto, tanto a afirmação do consequente quanto a negação do antecedente são falácias formais, ou seja, o erro está no modo com o qual o argumento é construído.

Há outros conceitos de lógica proposicional que poderiam ser explorados, mas demos tempo ao tempo e falemos deles e da tabela-verdade em momento mais propício. Por ora, é o bastante.

Recomendação de visita:

Desta vez, vou fazer uma sugestão um bocado diferente. Sem dúvida alguma, as peças do conjunto arquitetônico da cidade de São Paulo que estão mais bem preservadas são as igrejas da região central. É uma visita válida mesmo para que não seja religioso, porque dão uma mostra do estilo da época que vai da fundação à industrialização da metrópole. Várias delas têm elementos históricos e artísticos que valem a pena conhecer. Em um período de umas quatro horas, é possível trafegar por sete ou oito delas. O ideal é fazê-lo no domingo de manhã, quando todas estão abertas, o trânsito é amigável e há onde estacionar. Vejam as sugestões:

Na Catedral da Sé, há um órgão de tubos monstruoso, com poucos iguais no mundo. Além da nave imensa, há uma cripta onde há uma série de figurões enterrados, como o Índio Tibiriçá, o regente Feijó e o padre Bartolomeu de Gusmão. É muito divertido, principalmente para as crianças, ficar caçando os bichos da fauna brasileira espalhados pelas colunas de sustentação (Praça da Sé, s/nº - Sé);

O Mosteiro de São Bento tem uma série de mosaicos muito belos, além de ser o local onde se pratica o melhor canto gregoriano da cidade. Também é interessante arriscar um bolo dos beneditinos, caros e saborosos, com vantagem para a segunda qualidade (Largo de São Bento, s/nº - Sé);

A igreja do Pátio do Colégio é uma réplica, mas há ainda uma parede do conjunto original, que pode ser vista no bar que antecede a entrada da cripta de Anchieta. Também há um museu que contém, mais que elementos religiosos, muitas peças históricas. Bem colado, ainda temos a Casa Um e o Solar da Marquesa, que também podem ser visitados (Largo Patheo do Colégio, nº 02 - Sé);

A pequena igreja de Santo Antônio, na praça do Patriarca, tem como atrativo o fato de que é a mais antiga construção eclesiástica original de São Paulo. No dia do santo, há um intenso afluxo de fiéis que procuram o pãozinho bento, que nossas avós gostavam de guardar nas latas de arroz, para que nunca faltasse comida (Praça do Patriarca, nº 49 - Sé);

A Paróquia de São Francisco de Assis, no largo de mesmo nome, possui um conjunto arquitetônico vasto, onde concorrem a igreja propriamente dita; outra igreja, da ordem terceira; a Faculdade de Direito e todo o aparato externo, com estátuas e um curioso parlatório. É preciso abstrair um pouco o cheiro de fezes do local (Largo de São Francisco, nº 133 - Sé);

A igreja de Nossa Senhora do Carmo, na praça Clóvis, tem, além de suas próprias características, um importante acervo pictórico do frei Jesuíno do Monte Carmelo em seu corredor lateral. É uma pequena pinacoteca em estilo barroco. Andou sendo reformada nos últimos tempos. Os lustres são também uma atração à parte (Avenida Rangel Pestana, nº 230 - Sé);

Um pouco mais distante, mas não a ponto de causar câimbras, há o Mosteiro da Luz, onde se encontra o Museu de Arte de Sacra, que dispensa apresentações. Há também um maravilhoso presépio napolitano, que eu coloco como o mais lindo que eu já vi... Enorme, com todos os detalhes imagináveis. Há também a igreja onde o famoso frei Galvão passou muitos dos seus dias e onde está enterrado. É um tipo raro de construção em São Paulo, com planta octogonal (Avenida Tiradentes, nº 676 - Luz);

Há muitas outras dignas de visita, como a capela de Santa Luzia (Rua Tabatinguera, nº 104 –  Sé), a igreja de São Gonçalo (Praça Dr. João Mendes, nº 108 – Liberdade), de Santa Ifigênia que não se chama Santa Ifigênia, mas Nossa Senhora da Conceição (Rua Santa Ifigênia, nº 43 – Santa Ifigência), as fúnebres igrejas dos Enforcados (Avenida da Liberdade, nº 238 - Liberdade) e dos Aflitos (Beco dos Aflitos, nº 70 – Liberdade). Para quem estiver disposto, temos a igreja de Santo Agostinho (Praça Santo Agostinho, nº 79 - Liberdade), a Achiropita da famosa festa (Rua Treze de Maio, nº 478 - Bela Vista), a Capelania Militar de Santo Expedito (Rua Dr. Jorge Miranda, nº 264 - Luz), a São Cristóvão, com destaque para as bênção de veículos e carteiras de motoristas (Av. Tiradentes, nº 84 - Luz) e tantas outras; e há, é claro, a igreja da Boa Morte, que mencionei neste texto e que ilustra sua foto. É uma igrejinha barroca, toda original, reformada mais ou menos recentemente, e que tem uma relevância histórica baseada no fato de que era a primeira igreja que se via pelo caminho do Ipiranga, para quem vinha do sul. Isso não significa pouco, porque era o principal caminho dos tropeiros que se encaminhavam da região do ABC, muitas vezes oriundos da Baixada Santista. Essa posição estratégica fez com que a Boa Morte fosse a primeira igreja a bater seus sinos com a chegada das tropas de Dom Pedro após a proclamação da independência. Fica na Rua do Carmo, nº 202 – Sé.

Reitero. Não é preciso ser cristão, nem mesmo crer em Deus. Basta gostar de arte e história. Boa turnê a todos.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 16º tomo: O apelo à riqueza (argumentum ad crumenam)

Olá!

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Todos nós passamos por aperreios algumas vezes na vida, não? Nesta semana, por conta de um fato prosaico, fiz intenso review de meus tempos de colapso financeiro, a década de 90. Mas há uma historinha toda para justificar o arremesso do balde da recordação ao profundo poço da memória. Vamos lá.

Já vai longe o tempo em que São Paulo era uma cidade fria. Quando eu era criança, ainda era possível entender o epônimo “Terra da Garoa”. Bastava a chegada do inverno para termos uma chuva fina, persistente, enregelante, que penetrava pela pele e ia se estabelecer fixamente junto aos ossos e articulações. O fenômeno climático fazia com que imperasse o desânimo de sair de casa. Só que não tem jeito... Têm momentos em que não dá para ficar só no chocolate e pipoca, e é preciso ir à rua, nem que seja para comprá-los. Neste caso, era preciso se encapotar e recorrer ao mais infiel de todos os animais domésticos, o guarda-chuva (segundo Mario Quintana).

Esse tempo já vai longe, é certo, mas também é certo que, mesmo esparsamente e com menos intensidade, há alguns poucos dias verdadeiramente frios no inverno de São Paulo, à moda antiga. Justamente em um deles, acabou minha pipoca e meu chocolate (diet). Para criar coragem de ir até a mercearia, subi em minha cama e fui remexer no alto do guarda-roupa, onde estão perdidas na memória as blusas mais “agasalhadas”.

Ocorre que há uma densidade nestas peças dignas de causar inveja a qualquer WinRAR ou WinZip. Mas, como esta é a regra do jogo, não me furto à necessidade de vasculhá-las. Olho a primeira: muito fina; a segunda, fina também. A próxima é exagerada, e assim sucessivamente, até chegar na ponta de tecido de uma jaqueta que não reconheço. Ao tentar puxá-la, ocorre o desastre evidente: uma avalanche de lã, malha, nylon e tecidos menos votados. Tento defender a queda e tudo o que consigo é ser tragado pela bola de neve felpuda, caindo bisonhamente sobre o colchão – ainda bem!

Observando o resultado e já prevendo a aflição ruidosa da patroa, apresso-me em recolher e realocar as agora descompactadas vestimentas, missão esta onerosa. E lanço meu olhar sobre a malvada ocasionadora desta amostra grátis de tragédia grega: uma blusa de malha grossa, com capuz e zíper, que eu nem me lembrava mais ter. No lado esquerdo, duas pequenas personagens faziam um círculo com seus corpos, vestidas em trajes de banho antigo, e, no meio, o dizer “Aqua Loko”.

Aqua Loko, Aqua Loko... Lembrei! Foi uma das inúmeras empresas em que fiz bico nos anos 90. Aqua Loko não era o nome da fábrica, era uma das suas marcas. Também usavam a marca B12 e mais alguma, que não lembro agora. Vou reservar sua razão social, ainda que eu não vá falar mal dela. Era pertencente a um judeu que não sabia diferenciar uma sinagoga de uma mesquita, algo como o crente que não sabia rezar da música do Legião Urbana. Esta observação era desnecessária, mas há outra realmente relevante.

Eram anos difíceis. Havia uma tonelada de empresas falindo, vítimas de algumas políticas equivocadas e da crise econômica do país. As indústrias têxteis, fazendo um pequeno recorte, não estavam preparadas para concorrer com os baratíssimos produtos chineses, naqueles tempos que eram o princípio da invasão não armada que vemos até os dias de hoje. A sucumbência começou em cadeia, afetando fortemente empresas tradicionais, inclusive várias das quais eu prestava serviços. De muitas delas, saí com as mãos abanando.

Meu trabalho basicamente era preparar a contabilidade de empresas para pedidos de concordata: organizar os credores, arrolar os bens disponíveis, verificar os índices de solvência e outras informações necessárias à tentativa de salvação em juízo. Obviamente não eram fregueses que estavam porejando dinheiro por todos os orifícios, mas era o que tinha para a janta.

(Antes que alguém me pergunte por que eu me sujeitava a trabalhar em três empresas ao mesmo tempo para tentar receber migalhas de alguma, tenha filhos primeiro; depois a gente discute).

No caso desta têxtil, para não ficar sentado na beira do cais esperando o regresso de Dom Sebastião, resolvi receber parte de meus proventos em mercadorias, e a tal blusa protagonista da história veio no lote.

A tal empresa – uma das muitas do Bom Retiro – não vivia unicamente de produzir marcas próprias. Também terceirizava parte da produção de outras indústrias maiores, possuidoras de marcas de maior expressão e penetração no mercado, as famosas grifes. Uma delas era a Zoomp, dona de uma reputação de produtos de boa qualidade, que tinha de fato. Era o que hoje poderíamos chamar de roupas fashion. Era legal ter uma camiseta da Zoomp, como era legal ter tênis da Nike, perfumes Swiss Army, ternos Armani, carteiras OP (para quem lembrar dessa, recomendo visitas aos geriatras de plantão).

Só que precisamos acrescentar um fator: enquanto eu testemunhava os estertores finais das tesouras e agulhas da mal fadada fábrica, pude presenciar também que as roupas da Zoomp eram fabricadas com os MESMÍSSIMOS insumos da Aqua Loko. O mesmo tecido, o mesmo silk-screen, os mesmos equipamentos, as mesmas costuras, os mesmos overloques, as mesmas galoneiras, os mesmos funcionários... Eram até mesmo transportadas pelo inconsueto Sr. Gordura, homem macérrimo, configuração física típica dos somalis, que não só dirigia, mas também carregava e descarregava taurinamente seu caminhãozinho.

Agora vamos para a loja. Qual o preço de uma e o preço de outra? Disparidades da ordem de 50% ou mais. A Zoomp carregava consigo uma marca que construiu um conceito de qualidade que lhe permitia cobrar mais caro. Isso não vem gratuitamente. A Zoomp gastava, com certeza, muito mais com estilistas e publicidade do que a pobre fabricante da Aqua Loko. Mas o ponto central é: o fato de ser mais cara torna a Zoomp melhor? Não, não torna.

O argumento em que se busca dar justificativa a algo baseado em valores monetários é uma falácia da dispersão conhecida como apelo à riqueza, ou, em bom latim, argumentum ad crumenam. Este nome feio significa carteira, bolsa ou coisa semelhante. Portanto, deduz-se que esta espécie de falácia dá mais crédito a quem tem a bolsa mais cheia. Quem é mais rico tem razão.


Vejam só. É do senso comum entender que uma pessoa que tenha tido bom suporte financeiro durante toda a vida, teve a possibilidade de estudar nas melhores escolas, lido os melhores livros, visitado os melhores museus, visto muitos filmes e etc – coisas que para uma pessoa mais pobre é bem mais difícil, porque gastos mais básicos consomem-lhe a renda – ou seja, que teve melhores oportunidades na vida, tenham uma bagagem cultural suficiente para sedimentar uma maior inteligência e construir melhores argumentos em seus debates.

Mais ainda: riqueza é sinônimo de sucesso, e, portanto, exemplos a serem seguidos. Alguém que obteve maior patrimônio parece ter a chave que abre as difíceis portas de uma vida bem sucedida. Desta forma, um arrazoado calcado em uma posse maior de bens ou de dinheiro torna o argumento do nababo mais respeitável.

Só que não. Nem sempre as “dicas” de alguém bem sucedido superam a lógica de um argumentador pobre. Inúmeros fatores podem ter influenciado sua riqueza, como um berço de ouro, um casamento do baú ou práticas reprováveis, como a corrupção, desvios e outras falcatruas várias. Não havendo uma riqueza levantada sobre os próprios méritos, há mais dificuldade em se atribuir correção aos pretensos conselhos do oportunista.

E não é só. Não é o dinheiro que faz o argumento, mas a lógica da proposição. O próprio fato de ser rica pode levar a parte mais abastada a defender pontos de vista que não são propriamente razoáveis, e que podem mais fazer a defesa de sua condição do que admitir, por exemplo, uma distribuição de renda injusta. Medir até onde vai o interesse de uma pessoa em uma proposição é o ponto de inflexão entre uma falácia ou um argumento válido.

Sim, é verdade. Nem sempre usar a riqueza como argumento é falacioso. Defender a própria pujança não é, por si só, um argumento inválido. Um empresário pode ter plena razão em afirmar que determinado repasse para seus funcionários pode ser lesivo à sua empresa (e a seu bolso). O erro está em se afirmar que ele estará certo sob qualquer condição, pelo simples fato de que ele é o dono da grana (bufunfa, gaita, erva, níquel, tutu, prata, vintém, pataca).

Mas há o lado mesquinho do polo passivo da coisa. Quem aceita um apelo à riqueza pode, de modo subjacente, fazê-lo com interesse. Concordar com o mais rico pode ter como objetivo algum tipo de retribuição que somente é possível de oferecer por quem tem recursos. Imagine a seguinte situação: uma estradinha ligará o nada ao porra nenhuma – sendo esta última a porta da fazenda de um fazendeiro cheio de cabeças de gado. Um pequeno sitiante que cria codornas terá sua terrinha cortada ao meio pela estrada em questão, prejudicando seus já pequenos ganhos, o que lhe faz proferir protestos e blasfêmias – é uma criação delicada, que precisa de silêncio e ar puro. Uma organização ambiental ouve seus apelos e corre em seu socorro, mas, ao saber que um de seus principais contribuidores é justamente o fazendeiro rico, recolhe suas armas e bandeiras, informando sobre as benesses do progresso e tal e coisa. Nosso pequeno infeliz fica com as calças na mão, enquanto a estrada é construída e a ONG se aquieta. Acho que nunca ninguém ouviu falar de algo semelhante, não é verdade?

Há uma falácia que é o exato oposto desta, o argumentum ad lazarum, que será abordado futuramente.

Recomendação de filme:

Recomendo este filme, ganhador do Oscar (grande coisa), que tem uma abordagem meio lateral com o tema tratado neste post, mas que tem alguma correlação quando o protagonista cai em descrédito por conta de... chega de spoiler! É bem interessante.

BOYLE, Danny. Quem quer ser um milionário? Filme. Reino Unido: Celador, 2008. Colorido. 120 min.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 15º tomo - O raciocínio circular (circulus in demonstrando)

Olá!


(Este texto foi revisto porque eu fiz uma confusão dos diabos entre circulus in demonstrando e petitio principii, que busco remir agora. Peço desculpas a todos pelo inconveniente e prometo melhorar).

Tostines vende mais porque está sempre fresquinho ou está sempre fresquinho porque vende mais? Quem tem mais de 40 lembra-se dessa, com certeza.

Esse é um exemplo clássico de raciocínio circular, conhecida em latim por Circulus in demonstrando, uma falácia informal em que a conclusão é obtida a partir de premissas que já a reputam como verdadeira, ou seja, a conclusão prova as premissas e as premissas provam a conclusão. Parece como a mística figura do Ouroboros, a serpente que engole o próprio rabo.


Ouroboros, a serpente se morde o próprio rabo

É óbvio que o texto do primeiro parágrafo não passa de uma bem pensada brincadeira com as palavras, uma peça publicitária que visa induzir a elucubração do pretendido consumidor das bolachas (no Rio: bishcoito), mas é uma falácia que engana (como de resto costuma acontecer com sofismas) por parecer fácil de detectar. Vejam um exemplo:

“Não acredito em falas de políticos porque eles são mentirosos.
E por que eles são mentirosos?
Porque são políticos”.

Mas alguns deles são muito mais sutis. Se dissermos que uma ação é ilegal porque a lei a proíbe, além de estarmos dissertando sobre o óbvio, estaremos induzindo um raciocínio circular, porque podemos desmembrar esse raciocínio da seguinte forma:


“Ações ilegais são proibidas por lei.
O que torna uma ação ilegal?
A lei.
O que a lei proíbe?
Ações ilegais”.

Mas isso ainda é brincadeira de criança. Talvez um dos melhores exemplos de circularidade no mundo das Ciências seja a intrigante questão da escuridão do céu noturno. Como bem sabemos, durante o dia, quando um dos hemisférios da Terra está voltado para o Sol, há intensa luminosidade, mesmo que haja bastante nuvens a cobri-lo. De noite, pelo contrário, vemos uma imensa miríade de estrelas – principalmente se estivermos longe da poluição luminosa das grandes cidades. Mas, fora destes pontos, reina a escuridão.

A princípio, tudo isso parece tremendamente lógico, porque parte de informações que colhemos todos os nossos dias, desde o momento em que nossa pernóstica espécie ficou ereta e começou a juntar lé com cré. Só que a partir do momento em que a humanidade começou a tornar seu conhecimento cosmológico mais e mais complexo, algumas perguntas que contradiziam a mera observação começaram a surgir. Acompanhemos o argumento de Jean de Cheseaux, matemático suíço: “Se o número de estrelas é infinito, o céu deveria estar coberto por um disco estelar que o preencheria completamente”. 

Esse raciocínio, como pode se observar, parte da premissa de que o universo é infinito tanto no tempo quanto no espaço, sendo que todo o horizonte cósmico seria fundeado por estrelas, membros de constelações de número igualmente infinito.

Tempos depois, o problema foi reproposto pelo astrônomo alemão Heinrich Olbers, no que ficou conhecido como “paradoxo de Olbers”. O que diz nosso amigo?

“Se o universo fosse estático e preenchido com uma distribuição uniforme de estrelas, cada ponto de visada no horizonte terminaria em uma estrela, e o céu seria uniformemente brilhante”. Algo assim.

O paradoxo já contém em si, implicitamente, uma proposta de solução. Talvez o universo não seja estático, e, mais ainda, não seja infinito. Esta ambiguidade viria a ser resolvida pela Teoria do Big Bang, conforme veremos.

Vocês já perceberam o que acontece quando uma ambulância está passando perto da gente? Na medida em que o veículo se aproxima, o som da sua sirene vai ficando cada vez mais agudo, até o momento em que passa por nós. Logo após, na medida em que se afasta, seu som vai ficando cada vez mais grave, até desaparecer. Não vou entrar em grandes detalhes, mas isso acontece porque, na proporção em que uma fonte sonora se movimenta, a frequência das ondas que emite varia. Com isso, a percepção que temos, estando parados em relação à ambulância, é de variação sonora. É o chamado Efeito Doppler.

Acontece que essa não é uma propriedade exclusiva do som, mas da propagação das ondas. Também a luz é constituída por elas, e o efeito Doppler também se aplica a ela. Como a velocidade da luz é muito maior que a do som, nossa percepção não é tão aguçada para perceber as alterações de frequência, mas, quando aplicada a distâncias astronômicas, já se torna possível fazer observações das variações.

Pois bem. Enquanto a variação da frequência sonora é percebida pelo deslocamento de sons agudos e graves, para a frequência luminosa temos uma variação através do espectro de cores. Um exemplo bastante comum é o arco-íris. Outro exemplo são os desmembramentos da luz branca ao passar por um prisma. Colhi um diagrama do site http://www.climar.pt, para ficar mais claro, representando o mesmo deslocamento produzido pelo arco-íris e pelo prisma.


Além das cores do espectro visível, há frequências que nossos olhos não conseguem enxergar. Antes do violeta, há o ultravioleta (com seus incômodos efeitos ao organismo), os raios X e os raios gama. Após o vermelho, temos o infravermelho e as ondas de rádio. Quando consideramos essas frequências não visíveis, chamamos este espectro de eletromagnético.

Com relação aos sons, notamos que conforme aumenta a distância, a frequência diminui, e os sons tornam-se mais graves, até fugir do alcance dos ouvidos. Passando para a radiação luminosa, a distância aumentada e a consequente diminuição da frequência deslocam o espectro para o lado vermelho. Conclusão: quanto mais longínquo um objeto, maior o deslocamento da frequência eletromagnética para o vermelho. É um fenômeno conhecido entre os físicos como redshift – deslocamento para o vermelho.

E o que tudo isso significa? Quando é analisada a luz proveniente das diferentes galáxias, é detectado um deslocamento para o vermelho em todas elas. Caminhando para o vermelho, é possível concluir que elas estão se afastando de nós, bem como se afastam entre si. E a conclusão maior: o universo está em contínua expansão.

Isso tudo levou os cientistas a teorizar sobre o universo original. Se as galáxias estão se afastando, isso significa que elas estiveram todas juntas, em um passado bastante remoto. Essa linha de pensamento levou o padre e físico Georges LaMaître a supor uma espécie de “átomo primordial”, onde toda a matéria do universo estava concentrada em um único ponto, em uma densidade inacreditável, até que houve início, por algum evento indeterminado, a expansão que hoje conhecemos. Em seguida, o físico ucraniano Georgiy Gamow aperfeiçoou a ideia, modificando o átomo primordial para uma “sopa” extremamente densa e quente, constituída por partículas em um incomensurável esmagamento. Houve um ponto em que a capacidade de aumentar a densidade deste suposto líquido entrou em colapso, gerando algo semelhante a uma explosão, que faria com que todo o composto se espalhasse pelo espaço. Era o Big Bang.

Voltando agora ao céu noturno, e já pensando em um universo em movimento, podemos concluir que, por mais rápida que seja a propagação da luz pelo espaço, há objetos siderais tão distantes de nós que a luminosidade emitida por eles ainda não teve tempo de chegar até nós. Mais ainda: como as galáxias estão se afastando, conforme pode ser deduzido pelo estudo do redshift, cada vez mais sua frequência diminui, a ponto de se evadir do espectro luminoso e cair em uma radiação infravermelha, já imperceptível pela visão. Desta forma, podemos notar que ambas as explicações resolvem o paradoxo de Olbers!!!

Poderia falar ainda mais, como a radiação cósmica de fundo, mas eu me prolongaria demais, e já estou me afastando qual uma estrela perdida pelo cosmos. A falácia do raciocínio circular já está em pleno desvio para o vermelho. Ela ocorre quando tentamos atribuir ao céu escuro noturno uma confirmação da ocorrência do Big Bang. Não podemos proferir uma frase como “O Big Bang é verdadeiro porque é comprovado pelo céu escuro, já que o céu escuro é justificado pela existência do Big Bang”, sob pena de incorrer na falácia combatida neste texto.

Esclareço. A teoria do Big Bang fornece uma explicação da existência do céu escuro, mas a existência do céu escuro não confirma a teoria do Big Bang. Muitas outras explicações seriam plausíveis, como algum tipo de desvio luminoso, ou perda de intensidade da radiação, ou a existência de alguma matéria que absorvesse a luz estelar, tudo isso sem que o Big Bang pudesse ser descartado. Portanto, uma afirmação de que o Big Bang explica a escuridão noturna e que isso confirma a existência do Big Bang é a típica configuração do circulus in demonstrando, a nossa referência circular.

Para fazer um adendo, é preciso lembrar que a Ciência não se move com paradigmas imutáveis. Em outras palavras, ela não é dogmática. A Teoria do Big Bang é hoje a maneira mais bem aceita pela comunidade científica para solucionar o problema da origem do universo, mas não é definitiva. Muitas coisas ainda precisam ser mais bem elucidadas, como a descrição dos quasars e dos buracos negros, mas na medida em que a Astronomia fizer novas descobertas, elas serão confrontadas com o Big Bang, seja para corroborá-lo, seja para refutá-lo. É assim que funciona a Ciência e é isso que a torna fascinante: nenhuma resposta é fácil, nem cômoda, nem definitiva.

E eu dei essa volta toda só para explicar o funcionamento de uma falácia! Filosofia também é muito legal.

Só para terminar: existe raciocínio circular não falacioso? Mais ou menos. Poderíamos dizer que sim, mas neste caso chamamo-los de tautologias, que, em geral, são tolas, apesar de verdadeiras. Dizer que uma característica cultural não é natural e que, portanto, as plantas não possuem cultura porque são naturais é autoevidente, mas não é uma mentira. Assim, é preciso tomar certo cuidado em diferenciar a tautologia da falácia do raciocínio circular.

Recomendação de filme:

Não se trata exatamente de um filme que traduz uma falácia, mas de uma obra que retrata uma situação de circularidade surpreendente, como, aliás, é a atuação do careteiro Jim Carrey, excelente neste caso. Devo dizer mais: de uns quinze anos para cá, este ator deu um rumo muito melhor para a carreira, lançando os bons Todo Poderoso e Show de Truman. Mas o filme abaixo é verdadeiramente bom. Recomendo bastante.

GONDRY, Michel. Brilho eterno de uma mente sem lembranças. Filme. EUA: Universal Pictures, 2004. Colorido. 108 min.

Agradeço à Deb por emprestar suas mãozinhas e seu talento para ilustrar a foto deste texto.