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quinta-feira, 30 de julho de 2015

O Vale da Estranheza, seus gráficos e preconceitos

Olá!

Nossa dependência de dispositivos informatizados tem se tornado tão grande que um mero relâmpago mal caído já nos impede de trabalhar. É o que acontece vez por outra no meu trabalho. Tudo o que fazíamos em fichas, livros, formulários e mantínhamos em armários não existe mais, tudo está depositado em mídia magnética, gravadas em algum servidor remoto, às vezes em lugar incerto e não sabido. Só que já é necessário que consigamos nos comunicar com tais mídias. Quando isso não acontece, só resta lamentar. Em um desses episódios, aproveitei para fazer uma arrumação pouco costumeira em minha mesa, para delírio do pessoal da limpeza e incredulidade dos meus colegas de sala. Só que não é trabalho que exija concentração, e o papo acaba rolando solto.

Os assuntos são vários, mas em uma dessas ocasiões o povo se pegou a falar de videogames antigos, como o Pac-man, Super Mario e outros bricabraques desse estilo. Falou-se muita coisa, inclusive do costume de pessoas mais jovens baixarem emuladores de dinossauros como o Atari, e uma observação me chamou a atenção: alguém disse que não gostava de jogos muito próximos à realidade, como estes tem se tornado cada vez mais. Disse que dava uma certa “má impressão”.

Essa assertiva me pôs a filosofar e remexeu na minha memória, encontrando uma interessante tese da robótica da década de 70 – o Vale da Estranheza.



É uma constatação que foi inicialmente percebida por um cientista japonês chamado Masahiro Mori. Em sua área de especialidade, a construção de robôs, há uma busca em produzir autômatos que substituam os humanos no desempenho de certas tarefas. Alguns deles não se parecem em nada com homens, como é o caso dos equipamentos para desarmamento de bombas, que muito mais se parecem com carrinhos cheios de pinças. Mas alguns deles precisam, em alguma medida, assemelhar-se à anatomia humana, como no caso dos braços mecânicos.

Mori percebeu que, quando alguma coisa se aproximava dos parâmetros humanos, disparava-se um processo de aversão contra essa coisa. Esse processo se repetiu tantas vezes que o cientista resolveu desenvolver um gráfico para estudar o fenômeno. E ele notou que, conforme o robô aumentava a semelhança com um humano, maior o nível de empatia. Só que, quando o robô tornava-se muito parecido, mas ainda não igual a um homem, esse nível de empatia despencava para próximo de zero. Ao se aproximar ainda mais, tornando o protótipo cada vez mais indistinguível de um ser humano em carne e osso, a linha de empatia ascendente era retomada.


Achamos os robôs máquinas interessantes. De fato, é fascinante observar como eles realizam, com precisão nanométrica, tarefas repetitivas e precisas, substituindo com vantagem o ser humano. Mas, à medida que os robôs perdem o formato de máquinas e passam a adquirir uma feição mais e mais humanizada, começamos a nos assustar.

Parece pouco, e há quem vá pensar que se trata de sonora bobagem. Mas vamos interiorizar um pouco e pensar em um exemplo. Pensem em um bichinho, um filhote. Daqueles fofos. Vamos pensar em um porquinho, por exemplo. O aspecto de desproteção e dependência, aliado a uma coloração delicada, faz com que a grande maioria das pessoas sinta um intenso sentimento de ternura em relação a ele. Mas o que acontecerá se começarmos a imputar caracteres humanos a esse mesmo porquinho? Vamos fazê-lo lentamente. Imagine que este porquinho imaginário não tenha as habituais orelhas pontudas, mas arredondadas, com lóbulos. Bem, a princípio, talvez a condolência só aumente (“Oh! Tadinho... o porquinho tem um defeitinho!”). Vamos continuar: nosso suininho não é rosado, mas tem cor de pele como a nossa. Já olhamos para ele de um jeito esquisito. E agora vamos atacar o famoso focinho em forma de tomada, colocando um nariz daqueles de nenê (nada de narizes aquilinos, aduncos ou de palhaços). Certamente, a essa altura, já largamos o bicho e estamos longe dessa criatura do capeta. Ora, nada mais fizemos do que trazer algumas características humanas ao bicho. E percebemos que o vale não vale (argh!) só para autômatos, mas para qualquer coisa que se aproxime demais de um ser humano sem efetivamente ser. Por que a repulsa?

Penso que o Vale da Estranheza ocorre por conta dos inúmeros mecanismos de defesa que a seleção natural coligiu àquilo que é o ser humano hoje. De uma forma ou de outra, o humano fixa alguns padrões esperados para conseguir se por a salvo de uma série de perigos. Dessa forma, tudo o que pode causar algum tipo de conflito entre o que é humano e o que não é, cria uma espécie de prevenção. Tudo o que foge de um determinado padrão esperado causa um estranhamento, e tanto pior quando algo vai se tornando mais e mais capaz de enganar.

Veja que se trata de uma reação instintiva, mas que mantém uma certa pressão sobre a psique. O objeto que cai nesse vale permanece incômodo, até que haja um hábito e um convencimento de que ele não pode causar mal. Talvez tenhamos levado centenas de anos para nos acostumar com outras presenças incômodas, e, como bem sabemos, os mecanismos naturais de adaptação ao meio levam muito tempo para modificar nossos corpos e  comportamentos. E, mesmo assim, mantém-se deixando resquícios.

Porém, do meu ponto de vista, o Vale da Estranheza ajuda, e muito, a explicar a formação de muitos preconceitos. Porque, no meu entender, não se despenca no vale apenas quando existe uma aproximação daquilo que temos como padrão, mas também no movimento inverso. O Vale da Estranheza também se reproduz no afastamento.

O exemplo mais óbvio está na questão da homofobia. Para quem não gosta de homoafetivos, o transexual é uma espécie de pastiche feminino. Já se afastou de sua condição de homem, porque tem trejeitos próprios, melodia feminina na voz, algumas vezes tem implantações de silicone e outras intervenções cirúrgicas para fazer-se o mais semelhante possível a uma mulher. Mas também não é uma mulher: a voz é afinada forçadamente, o corpo tem as proporções próprias de um ser masculino, o rosto tem as marcas típicas de quem faz barba, entre outras coisas. O transexual está no vale da estranheza porque se afasta de um homem e se aproxima de uma mulher; de um deixa de ser, do outro, não chega a ser – e esta pode ser uma hipótese razoável para adicionar componentes para explicar a fobia. A não ser que a transformação torne a transexual tão semelhante a uma mulher que ambas se tornem indistinguíveis. Neste caso, o vale é escalado e a sortuda acaba se tornando objeto de curiosidade e/ou desejo pela grande massa, como foi o caso da Roberta Close na década de 80.

Mas há uma condição curiosa. Em uma situação do dia-a-dia, se alguém homofóbico for defrontado a dois homossexuais, sendo um travestido e outro não, certamente achará menos repugnante o que se veste como um homem, talvez pelo fato de que este não expõe a sua “vergonha” e mantém sua peculiaridade ao campo particular (pincelei algo sobre isso neste texto). Porém, se ambos forem expostos na situação que os define, ou seja, em plena execução do ato sexual, na maioria das vezes a repugnância se inverte. O homossexual que mantem sua forma visual masculina ainda não se afastou o suficiente para o lado da feminilidade, mas já não pode ser considerado um macho. O transformado, neste sentido, já está em um ponto mais longínquo, já ultrapassou os limites do vale, já se desassemelhou de tal forma do padrão que acaba causando menos fobia (eu disse MENOS fobia, e não fobia alguma). A mesma mecânica se aplica à homossexualidade feminina, mas em uma proporção bem menor, porque os homens são sacanas – alguns gostam, e muito, de meninas lésbicas (menos concorrência? Talvez) e as mulheres parecem não se incomodar tanto com a questão – selinhos são bastante comuns hoje em dia. Nesse sentido, o vale da estranheza não ajuda tanto a explicar a questão da aversão, porque parece ser superado por uma estrutura sexista da sociedade.

Vou dar outros exemplos, mais caseiros e inocentes, de lugares onde há estranhamentos. Sempre achei que a maior dificuldade dos pintores e escultores não está na reprodução dos rostos e dos corpos, mas das mãos e dos pés. Vou dar um confronto para ficar mais claro. Na obra “O nascimento da Vênus”, de Sandro Botticelli, tudo está no seu mais perfeito lugar, tornando a obra memorável.


No entanto, se olharmos os pés da Vênus isoladamente, teremos a sensação de se tratar de uma pata de bicho, ou, no mínimo, um membro distorcido, causando certo embrulho no estômago.


Já a obra abaixo é “Marabá”, de Rodolfo Amoedo Não tem um centésimo da fama da tela anterior, até porque retrata uma índia que em nada parece uma índia.


Quando olhamos para os seus pés, percebemos que eles são muito bem desenhados, o que retira a sensação de mal estar obtida anteriormente.

 
Qual causa mais repulsa? Certamente o primeiro, muito embora a criatividade de Botticelli faça com que sua obra supere a do brasileiro, que, apesar de muito bem feita, carece de elementos que vão além da precisão técnica.

Percebo o mesmo problema em desenhos animados ou em jogos de computador, onde às vezes o rosto é mais bem conseguido do que as extremidades. Talvez este seja mais um fator que influencie no formato mais corriqueiro de personagens: animais antropomorfizados (o que aumenta a simpatia por eles) ou homens já devidamente desenhados em um processo inverso, de afastar-lhes o suficiente da realidade, dado que é muito difícil obter verossimilhança suficiente para lhes tirar do vale da estranheza. Mãos e pés são problemáticos porque são riquíssimos em movimentos e posições, e os models sheets dos desenhistas precisariam ser praticamente infinitos para abarcar todas as possibilidades, e aí teríamos o ponto que conduz à estranheza.

Há ainda mais algumas aplicações à teoria do vale da estranheza, como a questão de chamar alguém de macaco, nosso irmão de gênero, tão semelhante a nós. Poucas comparações com animais ofendem tanto. Chamar alguém de gato pode ter sentido pejorativo, como a associação típica feita deste simpático bichinho com ladrões, mas também pode significar uma pessoa bela; de cachorro, pode ser alguém ordinário, mas também fiel; de girafa, alguém abelhudo, mas também alto. Mas é difícil encontrar algum qualitativo positivo para macaco (talvez ágil). Creio que somente para o burro haja injustiça semelhante, porque o macaco é um dos animais mais inteligentes que existem e o burro não tem nada de burro. O problema com o macaco, pela tese da estranheza, é que ele se parece demais com o humano: gregário, cabeça redonda, olhos frontais, membros longos, habilidade manual, donos de um quase raciocínio que lhes permite ter sentimentos quase que exclusivos do homem.

Outra questão se dá quando uma pessoa sofre uma doença que lhe deforma o rosto, como é o caso dos homens-elefante, ou sofre um acidente que lhe descaracteriza, ou quando faz uma cirurgia plástica que não dá muito certo, como é o caso daquelas reformas completas que deixam a pessoa com cara de borracha. Também aí lamentamos e sentimos certo enjoo. Vejam o exemplo da recente “guerra dos Kens” – dois rapazes que disputavam a primazia de serem conhecidos como o boneco Ken brasileiro (um deles faleceu recentemente). Desculpem-me ambos, mas são, para mim, a principal comprovação da tese de Mori, estendida para além dos limites robóticos. O boneco Ken é muito bem feito, e é quase que o ponto máximo da semelhança possível entre um ser humano e o produto de um molde. Mas, uma vez feita a transposição, percebe-se que ainda falta bastante. Não há expressão facial: rictos, risadas, muxoxos, tudo parece imóvel. Sem contar que a pessoa que faz transformações tão radicais provavelmente estão assaz insatisfeitas com alguma coisa em sua vida – ou não gosta da sua aparência em si ou transfere alguma frustração para a mesma, e ao fazer a plástica tenta corrigir ou compensar este algo errado no seu interior. Chegar nessa pessoa e dizer que não ficou bom... Olha, não é legal. Pode fazê-la muito mal. São as utilidades da mentira.

Bem, o Vale da Estranheza ainda não tem escopo científico completamente definido, e, portanto, ainda passa pelos crivos e pesquisas da Filosofia da Mente. E também não há um padrão na reação das pessoas - umas reagem muito fortemente, outras mal ligam. Mas ele é real, apesar de não haver ainda um padrão completamente estabelecido. De qualquer jeito, não há como fazer passar batida a maneira com que a evolução trabalhou a cabeça humana para que a espécie sobrevivesse. Muita gente acha que o vale existe porque faz lembrar cadáveres, e o medo maior do homem é a morte. Mas não tenho certeza disso. Parece mais crível entender que o ser humano sempre precisou reconhecer na espécie diferente uma ameaça, e a mais perigosa de todas é aquela que parece igual sem ser. É óbvio que estes conceitos são atávicos, e a racionalidade que surgiu concomitantemente a eles precisa prevalecer sobre aquilo que trazem de prejudicial, como a estranheza que vira preconceito.

Recomendação de leitura:

Não se trata do filme (que ainda não vi), mas do livro. A obra de Isaac Asimov trata de maneira quase inédita da questão dos robôs. O livro abaixo é uma coletânea de contos entrelaçados que, mais do que narrar aventuras, faz interessantíssimas colocações filosóficas, especialmente no campo da ética, do que deveria se tornar o campo de relacionamento entre humanos e inteligências artificiais. É neste livro que nascem as três Leis da Robótica, um código de princípios que parametrizariam a conduta dos autômatos, cada vez mais evoluídos, frente aos humanos. Reproduzo-os abaixo, a título de curiosidade:

1ª Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal. 

2ª Lei: Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei. 

3ª Lei: Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis.

Mas leiam o livro. É muitíssimo bom.

ASIMOV, Isaac. Eu, robô. São Paulo: Aleph, 2014.

Também recomendo um canal do YouTube chamado Peixe Babel. É um espaço onde são dadas explicações bem básicas sobre robótica, o que é bastante útil para alguém como eu, que manja muito pouco da área. Achei bem interessante.


 Agradeço à Rê pelo uso da foto e da estátua.

terça-feira, 21 de julho de 2015

Sobre nossos elementos primordiais e a evolução do pensamento filosófico rumo à Ciência

Olá!

É inevitável. A curiosidade infantil sempre leva à pergunta clássica sobre o nascimento dos bebês. Como a cegonha requereu aposentadoria e os repolhos estão estéreis após os pesticidas, a explicação dada aos pimpolhos tem que ser cada vez mais calcadas na realidade. Mas, como bem sabemos, explicar todo o ciclo que leva à gravidez e ao nascimento dá um trabalho imenso para quem ainda não tem um aporte muito significativo de conhecimentos. E então entram em cena aquelas pantomimas que falam sobre como o-papai-começou-a-namorar-a-mamãe-e-então-eles-se-casaram-depois-o-papai-plantou-uma-sementinha-dentro-da-mamãe-que-cresceu-cresceu-cresceu-até-ficar-tão-grande-que-não-cabia-mais-na-barriga-da-mamãe-e-por-isso-precisou-sair-o-papai-levou-a-mamãe-para-o-hospital-e-então-o-médico-puxou-você-para-fora-e-você-nasceu, ou seja, uma bela série de malabarismos didáticos.

Mas não é só isso que desperta a insaciável curiosidade dos nossos queridos fedelhos. A própria humanidade, em sua infância, carregava consigo o ônus de não saber de onde veio, do que eram feitas todas as coisas, porque existiam igualdades e diferenças, entre outras aporias.

Como eu já disse em outros momentos, o homem tinha dois focos nos quais poderiam lançar suas especulações: no universo que o rodeava ou em forças superiores, que eram desconhecidas dele. Esta era a saída mitológica, e a primeira era o que, mais tarde, chamaríamos de Física.

Claro que a mitologia tem mais facilidades. Sua principal arma é a tradição oral, aquelas histórias que se contam de pais para filhos, de patriarcas para aldeães, de sacerdotes para crentes, e assim por diante. Não há o rigor da observação empírica, mas um acúmulo de histórias que buscam, em última instância, uma resposta para a agonia da dúvida. Este tipo de narrativa sobre a origem do universo é o que conhecemos em Filosofia como cosmogonia.

Mas o método mitológico tem seus problemas e dificuldades inerentes. Para que uma explicação minimamente razoável oriunda da mitologia pudesse ser produzida, era preciso não explicar somente a origem do cosmos, já que esta era a parte fácil de explicar – os deuses deram origem a tudo o que existe. Para tanto, era necessário retroceder ainda mais. Era preciso, de alguma forma, narrar a origem dos deuses, que chamamos de Teogonias (theos=deus + gonos=origem). Elas eram muitas, a maioria transmitida oralmente, mas algumas delas se tornaram especialmente célebres, como aquelas escritas por Homero e Hesíodo, que chegaram aos nossos dias. Transcrevo abaixo um pequeno trecho da Teogonia de Hesíodo, descrevendo como todos os deuses brotam do caos, também este devidamente deificado.

Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,
e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre Deuses imortais,
solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.

Do Caos Érebos e Noite negra nasceram.
Da Noite aliás Éter e Dia nasceram,
gerou-os fecundada unida a Érebos em amor.
Terra primeiro pariu igual a si mesma
Céu constelado, para cercá-la toda ao redor
e ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre.

Pariu altas Montanhas, belos abrigos das Deusas
ninfas que moram nas montanhas frondosas.
E pariu a infecunda planície impetuosa de ondas
o Mar, sem o desejoso amor. Depois pariu
do coito com Céu: Oceano de fundos remoinhos
e Coios e Crios e Hipérion e Jápeto
e Teia e Réia e Têmis e Memória
e Febe de áurea coroa e Tétis amorosa.

E após com ótimas armas Crono de curvo pensar,
filho o mais terrível: detestou o florescente pai.
Pariu ainda os Ciclopes de soberbo coração:
Trovão, Relâmpago e Arges de violento ânimo
que a Zeus deram o trovão e forjaram o raio.

Eles no mais eram comparáveis aos Deuses,
único olho bem no meio repousava na fronte.
Ciclopes denominava-os o nome, porque neles
circular olho sozinho repousava na fronte.

Vigor, violência e engenho possuíam na ação.
Outros ainda da Terra e do Céu nasceram,
três filhos enormes, violentos, não nomeáveis.
Cotos, Briareu e Giges, assombrosos filhos.

Deles, eram cem braços que saltavam dos ombros,
improximáveis; cabeças de cada um cinqüenta
brotavam dos ombros, sobre os grossos membros.
Vigor sem limite, poderoso na enorme forma...

Podemos perceber, portanto, que a criação do mundo é dependente da criação dos deuses. Evidentemente, as descrições dos mitos de criação sempre contém mais poesia do que propriamente história. O mito teogônico de Hesíodo é apenas um exemplo, assemelhado com tantos outros, oriundos de tantas outras culturas.

Ocorre que, mesmo com tanta riqueza criativa na construção deste mito, chegou um momento em que o grego antigo olhou para o universo que o rodeava e percebeu que o observável não era a ação destes deuses, mas os próprios fenômenos em si. Não havia um contato direto com as suas divindades, apesar da atribuição de todos os acontecimentos à vontade de um dos deuses. Mesmo não se desvinculando por completo das explicações transcendentes, o grego começou a procurar no próprio universo a sua origem e os seus princípios comuns. Deste modo, a Cosmogonia migrava para a Cosmologia. Não se queria mais entender apenas a origem das coisas, mas entender as coisas em si mesmas, e a partir de si mesmas. Em suma, querem se ver de frente ao real palpável, e não apenas ao suposto.

Mas haveria a possibilidade de se alcançar o real palpável? Talvez não, haja vista às limitações tecnológicas da época, mas desde então se notou que os poucos elementos disponíveis possuíam uma harmonia e uma regularidade que podiam ser vistos como indicativos de uma regra geral. E a partir daí inicia-se a busca por um elemento primordial, presente em tudo o que existe, que justificasse a origem e a composição de cada coisa que há no universo: a arché. E isso tudo se utilizando da melhor ferramenta disponível ao homem: o seu próprio raciocínio, tendo a lógica por estrutura.



Como volta e meia eu volto à questão da arché, achei por bem elaborar um texto onde eu pudesse explanar todas as teorias encontradas no período anterior a Sócrates. Em primeiro lugar, porque é muito interessante verificar como a humanidade sempre procurou saídas inteligentes para suas dúvidas. E depois para que todos nós possamos perceber como o pensamento humano evolui, partindo de teses mais simples, agregando conhecimento e tornando-as mais e mais complexas e plausíveis. Vamos nessa (com paciência, porque o texto ficou longo).

Tales e a água

Tudo começa com Tales, mas já falei dele em duas oportunidades, aqui e aqui, e não o farei de novo, porque senão vão achar que sou tiete. Ou chato de galochas. Portanto, leiam os dois links em questão. Para fins didáticos, vou apenas esclarecer que a arché, para Tales de Mileto, era a água.

De qualquer forma, pincelada rápida: Tales, pela primeira vez registrada, olha para a natureza  para investigar sua própria gênese e dá primazia aos gregos naquilo que concebemos como Filosofia no ocidente. A originalidade dos gregos está na eleição de um objeto a ser estudado, na formação de um conceito e na utilização de um método, ainda que possamos chamá-los de primitivos.

Anaximandro e o apeiron

A segunda proposta introduz pela primeira vez um elemento que não poderia ser percebido a olhos nus. Entra em cena Anaximandro, na mesma cidade grega (hoje turca) de Mileto onde surgiu Tales. Sua proposta supõe que a água, elemento imaginado por Tales, já é uma derivação de algo ainda mais primitivo. A água, por mais elástica que possa ser, e por mais que possa navegar por diversos estados, ainda assim assume uma forma. Ou melhor, é compelida a ter uma forma, ainda que seja a de uma etérea névoa, um transparente e quase invisível vapor.

O princípio fundamental deveria ser outro. Algo que pudesse permear o universo inteiro e adotar qualquer forma, com base nas condições existentes nos diferentes ambientes por onde ele passasse. Algo que pudesse ser encontrado além das fronteiras do nosso conhecimento, já que os elementos existentes no planeta Terra não poderiam representar a totalidade daqueles que estão espalhados por todo o cosmos. Algo que pudesse conter em si todas as oposições dos estados observáveis na natureza, como o quente-frio, mole-duro, seco-úmido, compacto-poroso.

Esse elemento não seria propriamente uma substância, mas teria a capacidade de se transformar em qualquer uma, justamente por sua indefinição de matéria e forma. Era a massa generativa de tudo o que existe. Tudo surge a partir deste mesmo elemento, que – novamente – por sua indefinição, e também por sua infinitude, pode moldar absolutamente qualquer coisa.

Anaximandro chama esse elemento primordial de apeiron, originado da fusão das palavras gregas a (sem) e péiron (limite). Mais tarde, alguns autores identificaram o apeiron com o éter, uma espécie de quinto elemento imperceptível diretamente pelos sentidos, mas esta é uma outra história.

Anaxímenes e o ar

Anaxímenes é outro filósofo da cidade de Mileto que se debruça sobre a questão da arché. Ao que parece, ele acha a proposta de apeiron de Anaximandro radical demais, e até mesmo fantasiosa. Essa crítica de Anaxímenes é compreensível, principalmente quando lembramos que o princípio primeiro da Filosofia era se afastar do substrato mitológico, que a tese de Anaximandro volta a se aproximar, ao atribuir à arché um aspecto infinito e indeterminado. Para ele, já há um elemento que consegue se espraiar para todo o universo, até mesmo onde se crê que ele não exista: é o ar.

De fato, o ar pode se tornar tão rarefeito que acaba por se tornar indetectável, e somos induzidos a acreditar que há vácuo, mas não; o ar está lá presente. Além disso, o ar pode ser percebido, ainda que invisível, pela ação dos ventos, quando se torna uma percepção táctil. Mas, e se o ar estiver parado? É ainda assim possível percebê-lo, pelo aumento ou diminuição da temperatura.

É no processo de rarefação e condensação que o ar forma tudo o que existe. No pensar de Anaxímenes, ao se rarefazer, o ar se aquece e forma o fogo; ao se condensar, esfria e forma a água; aumentando a densidade, teremos a terra e demais elementos sólidos. Em Anaxímenes, portanto, temos pela primeira vez uma dinâmica dos elementos para reger a formação das coisas.

Xenófanes e a terra

Depois disso, temos Xenófanes de Cólofon, que acredita que o elemento fundamental é a terra. A base para seu raciocínio é a inversão da conclusão de Anaxímenes. Não é o ar que se torna mais denso, mas a terra que se torna mais dispersa. É a terra, ao se rarefazer, que forma a água, que, por sua vez, se torna cada vez mais difusa para formar a atmosfera.

Mas por que a rarefação da terra, e não o adensamento do ar? Xenófanes observa que a primazia do elemento sólido se dá pelo fato de que é um meio onde encontramos uma diversidade muito maior de substâncias. É da terra que brotam os vegetais e para onde voltam os animais depois de mortos, e para onde escoa a água da chuva. Mesmo os oceanos, que são muito maiores do que a porção emersa do planeta, têm em seu fundo a mesma terra, ou seja, é o elemento sólido que suporta o meio líquido.

Mas Xenófanes também encontrou outra base importante para sua teoria: a presença de conchas e esqueletos em escavações. Ele não enxergava a formação de seres em pleno ar, mas, ao encontrar esses vestígios de seres ao se aprofundar na terra, podia interpretar que lá eles se encontravam em formação ou em desfazimento.

Heráclito e o fogo

Como não poderia deixar de ser, haveria alguém para determinar o fogo como arché. E esse alguém foi Heráclito, da cidade de Éfeso.

Este cara tem bastante importância para a Filosofia, porque foi um dos primeiros pensadores a abordar a questão da dicotomia entre permanência e mutabilidade das coisas. Heráclito era mobilista, ou seja, sua metafísica previa que todo o universo está em constante devir. Sua frase mais famosa: “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”, significando que nem o rio nem quem se banha é o mesmo em dois momentos distintos – a água do rio já passou, a pessoa que nele entra já envelheceu, mesmo que só poucos instantes.

Heráclito aperfeiçoa o dinamismo elementar de Anaxímenes, já que sua arché, o fogo, é o elemento essencial não só corpóreo, mas também simbólico da constante transformação universal. O fogo é real palpável quando faz o sólido derreter, o líquido evaporar e o gás evolar pelo infinito. E é simbólico quando brota pequeno, cresce ao ser alimentado e fica pleno até sua força ser minorada, até produzir pouco calor e luz, e até se extinguir, deixando como marca de sua existência apenas os rastros no ambiente por onde viveu.

Pitágoras e o número

Percebam como, pouco a pouco, os filósofos vão tornando suas teses sobre a arché mais e mais sofisticadas, incluindo elementos que não representavam unicamente o cosmos material, rumando para especulações metafísicas. Isso se torna mais perceptível em nossa próxima estação, a cidade de Samos, onde encontraremos um dos mais seminais matemáticos de todos os tempos: Pitágoras.

Devo agora, por uma questão de honestidade intelectual, confessar minha autêntica ojeriza por essa área tão importante do conhecimento, basilar para qualquer ciência que se queira praticar. E reconheço nisso um defeito meu, até mesmo porque admito plenamente o seu valor. E, com isso, reconheço em Pitágoras um gênio. Com pouquíssimos dados à sua disposição, formulou vários teoremas, sendo que o célebre “o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos” recebeu seu nome e é um dos postulados básicos da trigonometria. É um dos mais antigos teoremas matemáticos conhecidos.

Pitágoras e seus discípulos tinham o hábito de observar atentamente o mundo prosaico que os rodeava e encontrar correlações que permitissem reduzir os fenômenos a expressões matemáticas. Observavam trajetórias, impactos, pesos e tudo o mais que estivesse à disposição. E, evidentemente, acabaram encontrando muitas dessas correlações. Perceberam que o universo funcionava de maneira harmônica, e dessa harmonia emergiam os cálculos que a explicavam. E concluíram que o número era a essência de todas as coisas.

É óbvio que Pitágoras não achava que ao picar uma coisa qualquer em mil pedacinhos, apareceria, luminoso, o número 1. Ou que de um belo algarismo instalado no centro de um jardim, brotaria, perfumada e espinhuda, uma roseira-branca. Ou ainda que, uma vez aquecido, esse mesmo algarismo purgasse água e depois desaparecesse, transformado em ar. Pitágoras enxerga na harmonia matemática, na articulação calculável e nas engrenagens naturais a essência de todas as coisas, sem criar, para tanto, um elemento físico.

Essa abordagem será de grande valia para que a questão seja vista de maneira cada vez mais científica, desembocando em uma conclusão surpreendente que veremos mais adiante.

Empédocles e as raízes

A próxima concepção é de Empédocles, da cidade de Agrigento, atualmente na Sicília, mas que fazia parte da Magna Grécia à época. Ele traz duas grandes novidades. A primeira, mais evidente e menos importante (como veremos), é a teorização de que a arché não é composta de um único elemento, conforme imaginavam seus antecessores. Pelo contrário, tudo era composto pelos quatro elementos básicos conhecidos – terra, água, ar e fogo. Eles iam misturados em todos os objetos, em diferentes proporções, e a preponderância de um deles dava a característica geral da substância, que eram bastante óbvias: se o elemento era mais rígido, havia uma maior quantidade de terra; se era líquido, o maioral era a água, e via discorrendo. Deu a esses princípios fundamentais o nome de raízes.

A segunda novidade prenunciava as leis de atração e repulsão, muito embora Empédocles atribuísse uma espécie de “valor ético” a seres inanimados. É que nosso profético filósofo sacou que, a partir de quatro raízes, era possível obter infinitas composições, que possibilitariam a obtenção de todos os materiais do universo e a constituição de novos. E o que faria com que estas diferentes raízes se combinassem e se dissolvessem?
Bem, Empédocles propõe uma solução inusitada. Assim como no relacionamento entre os seres vivos, havia entre as raízes forças de atração e repulsão equivalentes ao amor (eros) e ao ódio (neikós). O amor é a força agregadora e atrativa. Faz com que os elementos se aglutinem, ao inverso do que ocorre com o ódio, que separa e fragmenta. Pode parecer esquisito, mas sabemos hoje que, sem os princípios de atração e repulsa, é impossível compreender bobagens como magnetismo, estrutura atômica e gravidade.
Anaxágoras e as homeomerias
Depois vamos visitar Anaxágoras, da hoje turca cidade de Clazômenas, que também traz uma grande novidade. Ele rejeita a multiplicidade de elementos preconizada por Empédocles. Para ele, a multiplicidade existe, mas encerrada em um único elemento, que contém todos os outros. São as homeomerias, que vamos investigar agora.
Anaxágoras observa o seguinte: sem que seja necessário agregar nada, uma pequena semente já contém em si a árvore inteira. Idem com um homem. Um pequeno embrião vai se tornar um homem adulto, talvez um forte guerreiro, talvez um gordo comerciante.
Ou seja, os seres não surgem do nada, como mágica. Seguem um processo de divisão que torna sobejas algumas características e inibidas outras. Isso não se aplica unicamente aos seres vivos, mas aos brutos também. Portanto, a arché seria alguma coisa que se assemelha a uma semente, chamada por Anaxágoras de spérmata (o termo homeomeria consagrou-se por conta da afinidade de Aristóteles com esta tese, e significa alguma coisa semelhante a “partes qualitativamente iguais”). O elemento seminal conteria em si mesmo a totalidade da tipificação da matéria universal, se diferenciando umas das outras pelas partes que seriam ativadas, divididas daquelas que permaneceriam inertes. As frases-mote: “tudo está em tudo” e “em cada coisa há parte de cada coisa”.
Mas havia um princípio cósmico transcendente que explicava o que fazia uma homeomeria se transformar em uma determinada coisa, e não em outra qualquer. Anaxágoras enxergava outro princípio fundamental, que determinava qual de cada componente da homeomeria prevaleceria sobre os demais. Ele não se desvencilha de atribuir a este princípio ordenador uma certa divindade. Era o nous.
A característica divinizante do nous era que essa inteligência ordenadora estava apartada das coisas, sendo sua integradora, mas não integrante. É ela que fez o universo girar e que reconheceu as necessidades de aglutinação e separação dos seus fundamentos, sendo externa a eles, para que pudesse se dar conta da harmonia do seu funcionamento.
Demócrito e o átomo (Pobre Lêucipo, todo mundo esquece-se dele)
E assim chegamos à nossa estação final. Vamos falar de Lêucipo de Mileto e de seu discípulo mais ilustre, Demócrito de Abdera. Com eles, teremos a primeira tentativa de explicar o universo de maneira puramente mecanicista, sem nenhum tipo de intervenção de divindades ou entidades metafísicas.
Desde muito tempo, o homem percebeu que os objetos de seu ambiente podiam ser reduzidos a partes cada vez menores. Uma rocha pode ser fragmentada até se transformar em areia, e que dos seus grãos poderia ser obtida uma divisão ainda maior, o que somente não era possível conseguir por causa de falta de meios. Mas é fato que essa redução era possível, até o limite da percepção.
Qual era o limite desta divisão? Até onde era possível chegar sem que a matéria se descaracterizasse? Demócrito imaginou que, quando esse limite fosse atingido, não mais haveria como tornar a matéria ainda menor. Este limite de divisibilidade da matéria era o átomo. Essa palavra grega é composta pelas partículas a (sem) e tomos (divisão).
A grande modificação em relação às raízes de Empédocles e à homeomeria de Anaxágoras era que, agora, as partículas que compõem o universo são indiferenciáveis entre si. Um átomo de água não é diferente de outro átomo de água, e nada há nele além do elemento que representa. Claro que o conceito de molécula era ainda inalcançável, mas Demócrito previu que eles teriam combinações possíveis entre si. Isso porque nosso risonho amigo pensava que o número de tipos de átomos era bastante pequeno, se comparado com o total de elementos perceptíveis no cosmos. O que fazia com que suas características fossem distintas era uma descoberta ainda mais surpreendente: os átomos tinham espaçamentos entre si, que não era preenchido por absolutamente nada. Era o vácuo.
Como não havia nenhum princípio ordenador nas teses de Lêucipo e Demócrito, tudo era formado ocasionalmente. É meramente o encontro mecânico dos átomos que produzia a ordem do universo.
Então vamos ver:
1. O mundo é composto por minúsculas partículas espalhadas por toda a parte;
2. Os átomos possuem movimento;
3. Os átomos existentes são poucos, mas suas combinações são infinitas;
4. O espaço entre os átomos é preenchido de vácuo;
5. Nada mais há do que átomos e vácuo;
6. Todas as coisas se diferenciam por conta do arranjo e disposição dos átomos que as compõem;
7. Os átomos são indivisíveis. Claro que Demócrito não previu que o átomo era particionado, ele não tinha nenhum recurso para isso, mas é preciso lembrar que não essencialmente erro nessa assertiva. Um átomo somente pode ser dividido, pelo que se conhece hoje, por fusão ou fissão, o que o destrói.
Lembrando que a construção deste conceito nasceu unicamente pela via filosófica, dá para perceber o quanto esse modelo estava correto. Pena que os maiores nomes da Filosofia Antiga, Platão e Aristóteles, não compraram essa ideia. O mesmo se aplica à Filosofia Medieval, que já dava por suficiente a explicação teológica da origem do cosmos. Por conta disso, a ideia do átomo ficou adormecida por muitos séculos, até que os alquimistas, atraídos pela possibilidade de transmutar um elemento em outro, voltaram a investigar as teses que previam a unicidade dos materiais. Mas só deslanchou mesmo com John Dalton, no século XIX. Lêucipo e Demócrito mataram a charada.
Parmênides e o Ser
È finito? Sim, mas eu ainda gostaria de fazer uma observação sobre Parmênides, o pai da permanência, do Ser infinito e imutável. Ele não discorreu fundamentalmente sobre uma arché, mas o filósofo da ciência Karl Popper percebeu que as características atribuídas ao Ser, como a redução imutável à essência daquilo que existe, e a impossibilidade de atribuir qualitativos àquilo que não existe, ou seja, da imutabilidade do Ser, em clara oposição ao mobilismo de Heráclito, faz com que vejamos uma mesma intenção, agora metafísica, de explicar a origem e a causa do universo.
O Ser é o que é, sentença estranha. Mas isso quer dizer que, livre de todos os fenômenos e aparências, que fazem com que ele seja colocado como algo mutável aos nossos olhos, não teremos nada do que o Ser não é. E, com isso, atingimos sua essência e, de certa forma, sua arché.
Não há dúvidas de que voltarei com mais rigor a este tema em especial, mas não queria deixar passar batido. O mais importante de todo esse caminho que tracei é perceber o rumo que a Filosofia tomou, e a percepção de como o conhecimento é colaborativo. Um pensador não jogou fora o conhecimento obtido por outro apenas por não concordar com ele. Pelo contrário, o pensamento de um deu base ao outro, mesmo que por oposição. E o exemplo da arché demonstra como se transita da Filosofia para a Ciência. A primeira especula até que a segunda acha. Esse é o mundo do pensamento.
Chega! Já tá muito longo. Obrigado pela paciência.

Recomendação de leitura:

Todo manual de Filosofia que se preze fala sobre a questão da arché. Por isso, vou preferir indicar a versão completa do texto de Hesíodo mencionado no começo do post. É meio pesadinho, mas não deixa de ser interessante, em especial porque é um testemunho do sistema que buscava dar sentido ao mundo antes que partíssemos para a aventura do conhecimento racional.

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 1991

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Cartas náuticas para marinheiros de terra firme - 3º relato: Estiva Gerbi e os caminhos religiosos frente à evolução científica

Olá!


Continuemos. Saímos de Águas da Prata no dia seguinte à nossa visita a Poços de Caldas. De lá, tomamos rumo à segunda parte de nossa jornada, procurando o caminho que levaria ao Circuito das Águas, região paulista plena de cidades onde o principal atrativo é a exuberância na disponibilidade de água mineral. Como tem sido costume em nossos périplos, não tínhamos certeza ainda se começaríamos pelo começo ou pelo final, mas nossa tendência era sair em Águas de Lindoia e descer o mapa na direção de Socorro. Antes disso, achamos por bem comer algo pelo caminho. Juntamos a literal fome com a vontade de comer e passamos pela pequena cidade de Estiva Gerbi, cuja principal fama é a existência de um santuário dedicado à Nossa Senhora da Rosa Mística, dos quais existem vários espalhados pelo Brasil, e cuja devoção se popularizou entre as décadas de 80 e 90.

Quando se pega a estrada vicinal que sai da Rodovia Adhemar de Barros e ruma-se para o centro urbano da cidade, uma das primeiras coisas que se veem digna de nota é o pórtico de entrada do santuário, com uma aparência algo curiosa.



Algumas referências são evidentes, como o formato triangular que remete a um manto e às rosas de três cores: uma branca, uma vermelha e outra amarela, como é facilmente visível no alto do portal:


Logo sob esta construção, existe algo semelhante a uma portaria, mas que, na verdade, se trata de um pequeno oratório, onde há torneiras para água benta (secas no dia) e lugares para sentar e fazer as preces que o caboclo julgar necessárias. Não havia ninguém por lá.


Também lá dentro, havia uma reprodução da famosa imagem, logo defronte aos dois ou três banquinhos, meio que protegida por uma redoma de plástico, com várias plantas e a expressa proibição de acender velas. Imagino que tal imagem se presta aos viajantes que por lá vão de passagem.


A mesma formatação do pórtico se repete para quem está no interior do terreno do santuário, olhando da parte baixa para frente.


É uma estrutura interessante, formada por cinco seções triangulares que se emendam uma na outra através de traves laterais em forma de escada, e que estão solidamente fixadas no chão com um esquema de aparafusamento. A mim, pareceram ser feitas de algum metal sólido, mas como não apresentava sinais de corrosão, não consegui fazer a mínima determinação de que material a compunha. Nos vãos entre cada uma das seções, há um banco de concreto para tomar um solzinho (maroto naquele dia específico, apesar de janeiro).


Na frente deste pórtico, existe uma pequena praça verde, com a colocação de alguns anjos e uma imagem do Cristo Redentor, infalível nessas cidades do interior. O jardim era, sem dúvida, o que havia de mais belo naquele local, ao menos naquele dia.


Mas o mais curioso era o quanto o local estava deserto. Não havia viv’alma no pedaço!!! Na parte abaixo do terreno, há uma espécie de cobertura de quadra, em formato de concha, que abriga uma boa centena de cadeiras e um palco, onde se arma o altar. Claramente as missas do lugar são rezadas lá.


Com tal ausência de gente, a curiosidade ficou atiçada. Onde estaria todo mundo? Por que uma imagem tão famosa não se encontrava em seu santuário? Etc, etc e etc?

O negócio era procurar a área urbana da cidade para caçar algumas informações. E o que encontramos foi uma cidade muuuuuuuuito pacata, bem quieta mesmo. Pelas ruas e pelas praças, bem pouca gente.


Paramos aqui e ali pelo comércio local, em busca de algumas notícias, que, finalmente foram obviamente encontradas na Igreja de São José, onde, aliás, foi possível comprar uma bem boa paçoca caseira.


Lá dentro, encontrei a Leonice. E através dela fiquei sabendo que a imagem é peregrina, voltando poucas vezes durante o ano para as festividades principais, daí a total ausência de movimento no santuário, privado de sua principal atração. Também fiquei sabendo outras coisas, como os porquês que levaram a esta devoção em especial. No caso, uma série de aparições ocorridas do meio para o fim do século XX, nas cidades italianas de Montichiari e Fontanelle. Diz-se que a santa apareceu a uma fiel pela primeira vez com três espadas cravadas no peito. Santa Maria chorava e dizia, suave e enigmaticamente, três palavras: oração, penitência e reparação. Algum tempo depois, no mesmo lugar onde as espadas estavam penetrando no peito da santa, surgem três rosas, nas mesmas cores e sequência que mencionei acima: branca (cor-símbolo da oração), vermelha (sacrifício) e dourada (penitência), como que informando aos fiéis as bases para a salvação do mundo. A partir daí, uma série de novas aparições foram relatadas por toda a extensão do mundo católico, inclusive no Brasil. Não é ainda uma devoção oficialmente reconhecida pela Igreja, mas bastante disseminada pelo corpo dos devotos.

E assim, diante dos meus olhos, vejo surgir uma nova tradição para quem os homens vão se dirigir em seus momentos de desespero. E começo a pensar nos motivos que levam a essas contínuas gêneses: novos santos, novas devoções, novas religiões. Por que surgem ainda, e por que proliferam, em um mundo que já não benze as feridas, preferindo passar-lhes um unguento?

Bom, para ajudar a entender como a história se movimenta dos vodus pré-históricos para a cristalização em ausência de gravidade, vou buscar em minha estante um livro sobre Auguste Comte, pai da Sociologia e do Positivismo. Depois disso, já mais interessado, busco a obra do próprio.

Comte vive em um tempo no qual a Idade Média já ia longínqua, em que o Iluminismo já havia trazido uma explosão de ideias e ideais e que a Revolução Francesa já havia tratado de derrubar reis e convicções. Para o bem e para o mal, o mundo se apresentava como algo totalmente novo – um novo pensamento que, desamarrado das estruturas religiosas que guiaram seus passos até então, fazia vislumbrar o futuro pelas lentes da Ciência.

É neste clima que Comte desenvolve suas teses. Ele vislumbrou uma Filosofia da História que, por final, desembocou em novos paradigmas epistemológicos, como poderemos observar. Vamos lá.

No princípio da humanidade, o homem, dono da faculdade da razão, mas ainda com aporte de conhecimentos reduzido, começou a observar vários fenômenos para os quais não conseguia explicação – o surgimento dos brotos na terra, dos fungos na umidade, das doenças e das curas, além de eventos fantásticos, como as avalanches, os grandes temporais, os cometas e eclipses. Começa a perceber que a vida não se limita a si mesmo, aos animais e às plantas que o cercam, e passa a atribuir uma anima a tudo o que está ao alcance do seu olhar. Para que se sele um pacto entre ele e esse mundo, que tanto pode lhe auxiliar como lhe matar, o homem passa a lhe render culto, a agradar essas entidades de alguma forma, aos objetos e astros dos quais acredita restar dignidade desse seu esforço. E, nesse comportamento associativo, nasce o fetichismo.

Com o passar do tempo, o ser humano percebe que nem sempre seus ritos são eficientes para atrair ou afastar a atenção de seus fetiches. Não é toda dança que traz chuva, não é todo amuleto que afasta azar. O homem passa a entender que, por trás dos fenômenos e irregularidades da natureza, há uma vontade superior que os conduz. A sapiência não está no objeto, mas em alguma coisa externa a ele. E, desta forma, nascem as divindades. Há um deus que cuida dos ciclos das colheitas, outro que orienta as marés e correntes oceânicas, outro ainda que indica a força e a direção dos ventos, e mesmo há aqueles que regem as relações humanas: deuses do sexo, do medo, do comércio. É o politeísmo.

Esse politeísmo persiste até que surja a percepção de que, mesmo que a princípio não pareça, o universo tem regularidade e equilíbrio: os ciclos de verão e inverno se repetem, as auroras surgem sempre na mesma época, as estrelas sempre se repetem no mesmo lugar, e mesmo aquelas que se movem (os demais planetas) seguem sempre a mesma rota. O universo existe em um totus, e a existência de vários deuses, em permanente conflito, passa a não ser mais uma explicação satisfatória, e, com isso, chegamos ao monoteísmo. Uma vontade universal unificada explicaria a mecânica dos ciclos, e sua ira era a causa de suas quebras.

Essas três fases – o fetichismo, o politeísmo e o monoteísmo – compõem o que Comte chamou de estágio teológico da história humana.

Na continuação do estudo desta evolução da História, Comte entende que o eixo da busca do conhecimento sai das causas que regem o universo e vai para o sentido da existência. Se o homem perguntava o que dava causa às coisas, agora questiona por que as coisas são como são. Desloca-se do estudo da causa para a consequência, e, nesse movimento, já não são mais os deuses que importam, mas entidades abstratas que representam os valores humanos. Dessa forma, se uma pedra cai na cabeça de alguém e o mata, já não é mais uma vontade divina e ponto final. Aqui, questionamos o que é a morte, seu valor como distintivo do final do ciclo da vida; questionamos o próprio valor da vida que se perde. Os valores são personificados: a Vida, a Morte, o Amor, a Justiça. O conhecimento perde em crença, ganha em ética.

Esta é a etapa metafísica da História, aquela que observa além do cosmos, já não recorrendo a deuses, mas ainda sem olhar para o próprio mundo na caça do saber. E, para Comte, portanto, essa é ainda uma fase da qual é preciso evoluir. É preciso alcançar o Positivismo, o estágio da História onde a análise é voltada para o real concreto.

Para explicar o termo, vou lançar mão de um recurso que não estava disponível ao filósofo em questão, mas que é didático o suficiente. Imagine uma fotografia qualquer, mas não das atuais, feitas com câmeras digitais. Imagine uma fotografia daquelas tiradas em rolos de filme (se você não tem idade suficiente, peça uma para pais ou avós, que com certeza têm). A foto que consta do rolo não possui correspondência direta com a realidade. Suas cores são diferentes dos objetos, que são mui dificilmente identificáveis. Destas fotos, que chamamos de negativos, podemos ter uma ideia de como são os objetos retratados, mas não os temos nítidos. Segundo Comte, os estágios teológico e metafísico são negativos, pelo mesmo motivo.

Já a fotografia revelada, em oposição ao negativo, é clara, evidente, nítida. Sabemos com precisão o que há à nossa frente e podemos analisá-lo pela sua própria imagem. É o positivo da foto, o afirmativo.

O estágio positivo, portanto, não mais se ocupa do “o que” teológico ou do “por que” metafísico. A sua preposição símbolo é o como. Como se cura uma doença? Como se formou o universo? Como produzir mais e melhor? A base da sociedade positivista não é mais a Religião nem a Filosofia; é a Ciência e a sua derivação prática, a Tecnologia.

O que assegura um destino mais auspicioso para a humanidade é o pensamento científico, o que fez Comte deduzir que conhecimentos outrora especulativos deveriam fazer uso da mesma metodologia utilizada pelas Ciências em geral, e, assim, tornarem-se eles mesmos novas Ciências. E é desta forma que surge a Sociologia.

Comte tinha para si que os fatos e as relações sociais obedeciam a algum tipo de mecânica que poderiam ser redutíveis a observações e experimentos, de forma que deles pudessem ser extraídos leis e postulados. Aliás, Comte supunha que a Sociologia era uma Ciência de altíssima complexidade, que dependia de todas as demais para produzir suas conclusões. Aliás, Comte hierarquizava as Ciências, e colocava a Sociologia no topo de uma escada alegórica. Na base, a Matemática, seguida pela Astronomia, a Física, a Química, a Biologia e a Sociologia, sendo que mais adiante foi acrescida a Moral.

Pois muitíssimo bem. Comte propõe um mundo em que as Ciências devem ter a primazia no desenvolvimento da intelectualidade humana, e que o estágio positivista é a resposta adequada para seu futuro. Mas qual é a posição que a Religião pode ou deve se colocar diante do papel terciário em que foi colocada?

Em primeiríssimo lugar, é preciso ter em mente que o pensamento comteano é plenamente contestável, como qualquer outro. O que não há como negar é que ele tinha razão quando preconizou a predominância científica em relação à Religião. Quem tem dor de cabeça prefere tomar uma Aspirina no lugar de água benta, basta ver. Portanto, o papel da Religião como pensamento para a physis do mundo está superado. E o seu olhar deve se voltar para aquilo que é sua essência, a fé. Todas as vezes em que a Religião tentar competir com a Ciência na esfera da dedução experimental, vai tomar de goleada.

Quando lida com questões de fé, a Religião ganha “direitos” em relação à Ciência que, tendo necessidade de provas e evidências empíricas, não consegue se valer. A Religião recebe um poder especulativo que, para a Ciência, está limitado à sua capacidade de se movimentar dentro de seus próprios métodos. Nesse sentido, a Religião, assim como a Filosofia e a Arte, goza de maior liberdade. Enfiar a Religião no método científico mata-a por sufocamento. Se colocarmos a Ciência em uma metodologia de pesquisa religiosa, o acidente também se consuma: teríamos a volta da astrologia e da alquimia, a consolidação do criacionismo como alternativa científica à teoria do evolucionismo, e também da ressurreição de outras áreas “científicas” que já foram definitivamente descartadas.

Só que, evidentemente, há uma presença maciça da Ciência e da Tecnologia em nosso quotidiano, progressivamente cada vez maior. Essa predominância leva a Religião a fazer uma busca permanente de novos objetos que reforcem a fé das pessoas, sua matéria-prima. E assim surgem testemunhos pessoais de milagres, o que é muito forte em religiões de origem protestante, mais especificamente aos evangélicos neopentecostais, tão em voga no Brasil; surgem novas derivações, vertentes e seitas em toda e qualquer religião existente no mundo; surgem novos líderes, com uma nova retórica, mais próxima do linguajar científico, como é o caso do Espiritismo e da Cientologia. E, finalmente, surgem dentro do Catolicismo essas novas manifestações de fé – imagens que choram, santos que mandam mensagens, milagres eucarísticos. São vários, como é o caso deste santuário que motiva a existência desta pequena e pobre cidade. Não é pouca coisa. Basta lembrar que a imensa maioria das pessoas no mundo inteiro ainda possui algum tipo de relação com a transcendência, e estas manifestações são tremendamente significativas para elas.

Recomendação de leitura:

Comte faz uma síntese completa de suas ideias em um livro na forma de um curso, que indico logo abaixo. Voltarei a este filósofo logo em breve, para tratar de sua concepção de sociedade, que é bastante polêmica e atual.

COMTE, Auguste. Curso de Filosofia Positiva. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Col. Os Pensadores.