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terça-feira, 30 de junho de 2015

Cartas náuticas para marinheiros de terra firme - 2º relato: Poços de Caldas, um sabor de vidro e corte

Olá!

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Passando um tempo grande já, retomo as cartas náuticas. Nossa segunda parada foi na mui famosa cidade de Poços de Caldas, já aqui colocados no estado de Minas Gerais. Não há grandes transcursos, as cidades são bastante próximas, e de fato é possível chegar em menos de meia hora.

Quando eu e a patroa viemos a Águas da Prata em 1990, não tínhamos certeza se viríamos até aqui, desmotorizados que estávamos. Mas, como já mencionei na minha primeira carta, existia um trem turístico interligando ambas as cidades, o que facilitava sobejamente o deslocamento. Minha intenção era novamente chegar aqui por via ferroviária, mas o trem de Águas da Prata para Poços de Caldas não funciona mais. Desta forma, nada mais resta a não ser embarcar no meu carrinho e seguir viagem queimando gasolina.

Poços de Caldas é muito maior e agitada que Águas da Prata. De fato, basta comparar a vista que se tem do morro do Cristo Redentor de uma e de outra...

Poços de Caldas



Águas da Prata



... Cristo este que fica no mesmo lugar em que desemboca o teleférico da cidade, infelizmente inativo naquele dia. Curioso que tal equipamento não funcione em período de férias, mas enfim...

Poços de Caldas, ao contrário do que ocorreu com Águas da Prata, deu uma mudada boa nesses 25 anos. Algumas bem ruins, como a desativação do monotrilho e da estação de trem (da qual falei ainda há pouco), que acabou virando um depósito de presépio...



... mas que ainda consegue contar algumas histórias interessantes. Ao longo da parte externa da gare há, por exemplo, alguns monumentos e um xadrez gigante, bem como essa insólita maquininha a vapor. À primeira vista, pensa-se: “Oh, uma locomotiva para anões”, mas não. Trata-se de uma niveladora de macadame, os nossos escorregadios paralelepípedos, de tantas topadas matinais e entortadas noturnas.


O centro da cidade é todo bem cuidado, e isso não mudou tanto. Há exemplos belíssimos de arquitetura do auge do ciclo do café, como o Palace Hotel, situado no conjunto chamado de Parque José Afonso Junqueira:


E o prédio das Thermas Antonio Carlos, local que reúne o mais atrativo dos recursos naturais da cidade, as águas sulfurosas, com temperaturas que se mantém em torno de 45 graus Celsius, com uma construção em estilo art nouveau, combinando solidez de suas paredes detalhadas com o requinte dos vitrais que as cercam e recobrem:


Nada mal, os vitrais do teto...


O prédio ainda funciona em seu propósito original, e é “equipado” com médicos, fisioterapeutas e que-tais, além de muitos acessórios que os acompanham desde sua inauguração. Uma verdadeira relíquia. Um pouco chato o inquérito necessário para acessar as águas, mas regra é regra e não passei sobre elas, optando por cozinhar nos 35 graus disponíveis ao ar livre, senegalesco que se encontrava naquele momento.

Há ainda outros logradouros que são bastante significativos para a cidade e para a minha memória. A pracinha onde ficam as charretes possui o relógio John Canta, todo feito de flores recobrindo seus mecanismos, cujo modo de fotografar permanece i-gual-zi-nho ao de tempos atrás: um belo banco de ferro, e braços erguidos para conseguir o melhor ângulo possível. Em tempo: não tenho pau-de-selfie. Em tempo 2: A praça se chama Getúlio Vargas.


A cidade também se caracteriza por possuir duas grandes fábricas de cristais do estilo murano, além de outros pequenos estabelecimentos que fazem o mesmo serviço, à vista dos seus clientes, moldando o vidro a altas temperaturas com suas ferramentas e colorantes habilmente entrelaçados. A foto abaixo foi capturada meio de soslaio, porque a fiz clandestinamente. Não sei por que cargas d’água o dono não deixa fotografar as peças (até mesmo por isso, prefiro não identificar a loja. Pena).


Um pouco retirado do centro, há o Recanto Japonês, um jardim nipônico que fica na encosta de um morro da Serra de São Domingos. A ideia é concentrar em um só local o contato com a natureza e a paz reflexiva típica da cultura oriental. Há muitos lampiões e veredas que encaminham a uma mata cada vez mais fechada, onde, com um pouco de sorte, consegui avistar uns macaquinhos e até mesmo um quati. Também há quantidade considerável de borboletas de porte médio, muito bonitas:


O ponto central do conjunto é a Fonte dos Três Desejos, monumento que escoa três filetes de água que recaem sobre um pequeno tanque, representando as necessidades espirituais e materiais do ser humano: amor, saúde e inteligência. Há uma passagem sob o pórtico, onde é possível se assentar e meditar. Um lugar para vir com tempo.


O local disponibiliza gratuitamente quimonos para tirar fotos. Como nem eu, nem a Mimi achávamos que caberíamos em algum deles, resolvemos não arriscar e passar carão.

Bom, mencionei as charretes da praça GV. Elas percorrem não apenas os pontos turísticos urbanos, mas também algumas quedas d’água do Ribeirão das Antas, cuja mais famosa é, sem sombra de dúvida, o Véu da Noiva:


O local, além da beleza que a foto traduz, possui bastante artesanato local, baseado em trabalhos de madeira, palha, cordoaria e outros.

Prosseguindo rio abaixo, chega-se à Cascata da Lua de Mel. Cascata no sentido figurado mesmo, porque queda d’água não há, somente alguns desníveis. Mas há o mérito de ser um local com bastantes pedras, o que permite chegar ao meio do rio com certa segurança, e daí pudemos molhar adequadamente as costas.


Finalmente, passamos pela represa Bortolan, já no caminho de regresso a Águas da Prata, para matar a saudade de andar de pedalinho. Em outros tempos, os coletes eram desnecessários, o que é particularmente agradável em tempos de sol a pino. Mas, como em questões de segurança é bom não dar mole, vamos embutir a reclamação no bolso e sair pedalando e navegando de escuna.


Apesar de estarmos numa pontinha do estado de Minas Gerais, é inegável que há um quê diferente. Certos aromas se intensificam, alguns sotaques aumentam de frequência e, mesmo com os mais de 400 km que separam Poços de Caldas de Belo Horizonte, e com os pestilentos acordes do sertanejo universitário espoucando nos meus tímpanos, há algo entre atávico e espiritual que me traz Clube da Esquina a cada canto em que eu olhe.

Não deveria ser assim, já que o Clube da Esquina foi um fenômeno e uma corrente urbana, e eu estou no meio do mato. Pensando bem, estou falando bobagem, há muito de campestre nesta escola que se formou já há tanto tempo, e muito de urbano em uma cidade com mais de 140.000 habitantes. Bom, é melhor eu discorrer sobre o tema.

O movimento começa a fazer pipocar seus primeiros brilhos em meados dos anos 60, mas é na década de 70 que podemos considerar que ocorre seu período áureo. Tem muito a ver com o considerável sucesso de seu membro mais ilustre, o cantor e compositor Milton Nascimento, que se reunia com um pessoalzinho assentado na esquina da Rua Divinópolis com a Rua Paraisópolis, no bairro de Santa Tereza. Não adianta procurar o clube, ele não existe. O que há é uma placa na parede da casa que ladeia as duas ruas, indicando que naquele local se concentravam os jovens que impulsionariam uma nova escola da música popular brasileira, com seus violões e poesias.

Esses mineiros deram início a um estilo musical que combinava a complexidade harmônica da bossa nova, o lirismo do folk e a multiplicidade do rock progressivo.  Muitos nomes estão inscritos no Clube. O mais afamado é Milton Nascimento, sem dúvidas. Mas o movimento segue agregando o clássico Wagner Tiso (músico erudito de formação), os compositores Tavinho Moura, Ronaldo Bastos, Fernando Brant, Toninho Horta (também guitarrista), Márcio e Telo Borges, e os cantores Lô Borges, Beto Guedes (que trouxe muito do “ar do campo” da tendência), e que teve suas últimas referências com o grupo 14 Bis e com Tavito, bem mais tardiamente.

Quando digo que o estilo musical do Clube remete à bossa nova, imediatamente podemos incluir aí toda a carga jazzística que esta já tem. Isso significa que, mesmo com um ritmo sincopado e um andamento moderado, não são músicas “facinhas” de tocar, como eram as coetâneas canções da Jovem Guarda. Para quem toca um pouco de violão, é fácil de entender. Há uso profuso de acordes incomuns, cheios de sextas, diminutas, nonas aumentadas e etc, que exigem dedos longos e propensos à contorção. São aqueles acordes que, ouvidos isoladamente, chegam a ser desagradáveis. Sua eufonia está justamente no contexto musical em que se encaixa, a tal da harmonia.

As letras das músicas possuem muita subjetividade. Estávamos em plena época da ditadura militar. Os artistas ligados à música de protesto, como Edu Lobo e Geraldo Vandré, já tinham sido colocados para correr pelo aparato repressivo, e aqueles que ficaram tomaram a atitude de continuar sua tarefa de oposição através de letras cada vez mais intrincadas e metafóricas. Chico Buarque, por exemplo, foi um grande mestre nessa arte. “Apesar de você” e “Cálice” são bons exemplos de como usar os desvios e desvãos da linguagem para se dizer o que se quer sem dar conta a quem não pode saber. Neste caso, a censura.

Os membros do Clube da Esquina utilizavam alguns subterfúgios interessantes para carregar sua poesia de referências. Em primeiro lugar, foram precursores dos grunges (leiam mais aqui) na fuga como atitude ("em meio a tantos gases lacrimogêneos ficam calmos, calmos, calmos"), através de temas intimistas ou de histórias internas. E também usavam enredos quase herméticos, com um lirismo crivado de referências internas, desconhecidas das pessoas de fora de seu círculo. Mas isso não impediu que a “redentora” chegasse aos seus pés. Dois exemplos:

Primeiro: Marcio Borges precisou andar escondido por uns tempos, por conta de seu envolvimento com o movimento estudantil. Qualquer letra sua era vista como um fantasma que carregava mensagens ocultas, prontas para incitar à sublevação. Claro que é muito mais difícil produzir em um ambiente onde há uma espada sobre a sua cabeça, o que ajuda a explicar a hermenêutica restrita mencionada anteriormente. 

Segundo: Milton Nascimento, ao contrário de outros artistas, recusou-se terminantemente a deixar o Brasil. A consequência foi que, mesmo permanecendo contratado das gravadoras, teve as portas das rádios e da TV fechadas. Sua obra ganhou a pecha oficial de música para intelectuais, o que, bem entendido para o jargão da época, significava subversão. Se isso lhe salvou o couro, prejudicou a carreira e a mensagem. Para se ter uma base, a música Ponta de Areia, do álbum Minas (1975), é repleta de vocalizações. Estas foram introduzidas na música para suprimir partes da letra censuradas. Mais explícito ainda é o álbum Milagre dos Peixes (1973). Quem ouve este disco, pensa: “Olha, o Milton Nascimento está querendo ser exótico! Um disco praticamente todo instrumental!”. Nada disso. O que houve ali foi um veto quase total, mas Milton resolveu investir em vocalizações, e o álbum foi gravado assim mesmo. A censura prestou ótimo serviço: um álbum instrumental de sucesso, algo raro, principalmente para um artista notabilizado pela voz.

Também mencionei a influência do rock progressivo. Este é um estilo que estava em voga no final da década de 60 e início da de 70, e é caracterizado por alta vanguarda, com a utilização abundante de toda a tecnologia disponível, algumas risíveis para os dias de hoje, mas que eram o máximo da genialidade humana para a época.

(Vou exemplificar com o mellotron, um aparelho de teclas que acionava um conjunto de fitas magnéticas onde estavam gravados os timbres de qualquer instrumento. Cada fita correspondia a uma nota, e, se quiséssemos ter um som de violino, por exemplo, era necessário gravar uma por uma – uma trabalheira imensa. Mas o resultado era a possibilidade de ter uma orquestra inteira ao dispor de um único músico. Qualquer programinha de computador comprado na feira hoje em dia faz melhor, mas ainda tem quem seja apaixonado pelo processo analógico).

Como toda grande tendência, o rock progressivo possuía várias vertentes, e aquela que foi utilizada com mais afinco por músicos do Clube da Esquina foi o folk prog, eternizado por bandas como o Jethro Tull.

Mas, peraí... O som do Jethro Tull não tem nada a ver com o Clube. Não mesmo, cara-pálida. O folk prog utiliza as raízes musicais da pátria que representa. O Jethro Tull é oriundo de Blackpool, uma cidade inglesa, e, naturalmente, busca nas ilhas britânicas as origens de seu som. Um músico que faça folk prog no Brasil buscará raízes brasileiras, ok? Por isso mesmo, ao lado de músicas complexas, há um toque de pesquisa nacional em sua obra, como pode ser bem observado, em especial, em músicas como Página do Relâmpago Elétrico, do Beto Guedes. De certa forma, portanto, o Clube deu origem a outros movimentos de vanguarda brasileiros, como é o caso da Lira Paulistana, porque ajudou a dar início nestes usos inusitados dentro da música. 

Influência dos Beatles? Não preciso nem falar. Quem não foi influenciado pelos Beatles?

É isso. Já gostava de Poços de Caldas, continuei gostando. A vinculação que fiz com o Clube da Esquina é um tanto exótica, mas, no final das contas, isso não apareceu à toa na minha cabeça. Espero que vocês tenham gostado e que lancem mão de uma escola da MPB que costumo utilizar muito quando sinto que estou perdendo a razão.

Recomendação de audição:

A masterpiece deste movimento é o álbum chamado (oh!) Clube da Esquina. Praticamente todas as suas músicas se tornaram clássicos da MPB, o que faz com que muitas pessoas pensem se tratar de uma coletânea. Vale a pena de ponta a ponta. Se você não gostar, não curte música nem poesia. Vá procurar outra praia (exagero completo).

BORGES, Salomão; NASCIMENTO, Milton. Clube da Esquina. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1972.

terça-feira, 23 de junho de 2015

Ensaio sobre o ensaio - da cegueira e metafísica do egoísmo

“Parece uma parábola, disse uma voz desconhecida, o olho que se recusa a reconhecer a sua própria ausência” – José Saramago.
Só existe o que os meus sentidos percebem” – Thomas Hobbes

Olá!

Diabetes é uma doencinha ameaçadora mesmo. Ler sobre suas consequências, ainda mais se sabendo portador da mesma, é uma experiência necessária, porém assustadora.


Ler... Andei percebendo que, nos últimos tempos, minha acuidade visual tem se avinagrado um pouquinho, mesmo estando de óculos. Tenho controlado razoavelmente bem os níveis de glicose, mas mesmo assim achei prudente procurar o médico, que respondeu com um significativo “hmmmmmm” ao meu relato. Na ausência de equipamentos mais sofisticados, deu uma olhadela com aquela incômoda lanterninha e me mandou procurar um oculista, para dar uma mapeada na minha retina.

Fiz isso recentemente, e a doutora que me atendeu não viu nada além de uma discreta dilatação nos vasos sanguíneos. O perigoso mesmo, que são os prejuízos à retina, parece que não se concretizou. Para elucidar, pediu um outro exame, mais rigoroso. A princípio, no entanto, nada além do que a velhice que chega às portas. Quando der o dia, vamos ver o que vai dar.

Puta que pariu... Que medo de ficar cego! Nós, humanos, somos muito mais dependentes da visão do que qualquer outro sentido, e ficar sem ela é um limitador tão grande que se torna difícil até mesmo imaginar como seria viver. Conheço um rapaz chamado Flávio, cego de nascença. Certo dia, um vento maroto na janela empurrou a cortina no cidadão, que tomou um belo susto. Uma menina ao lado, inconsequente, perguntou se ele ainda não estava acostumado com essas coisas. Ele respondeu que, por mais que conviva relativamente bem com sua condição, é inevitável a ocorrência de pequenos acidentes, e ele acaba por se machucar muito. Junte-se a isso o incipiente processo de acessibilidade dos espaços públicos e torna-se fácil compreender galos e caneladas.

Somos animais dependentes da visão. Há um nível de sofisticação neste sentido que o torna o principal entre os demais. A seleção natural dá caminhos distintos para nós, que detectamos um amplo espectro luminoso e temos bastante noção de tridimensionalidade, e outros animais, que não fazem tão profundo uso. Há o faro apurado dos cães, que enxergam poucas cores; a audição complexa dos morcegos, cegos que se guiam pelos ecos. Há animais que fazem uso profuso dos olhos como nós, porém em uma ordem inversa, como a coruja que vagueia pela noite. Mas a nossa visão é quase que um fator de identidade, entre tantas características frágeis, como a parca audição, o ridículo olfato...

Li o “Ensaio sobre a Cegueira”, livro de José Saramago, e posteriormente assisti ao filme de Fernando Meirelles, movido pela curiosidade e pelas dúvidas da afilhada Renata. Vou quebrar o meu método de dissertação neste texto. Geralmente, faço pesquisas em cima dos temas em que trato, mas, dessa vez, relatarei minhas impressões de modo particular, com o conhecimento filosófico que tenho. Serei o mais honesto possível, e não procurarei outras opiniões. Quero fazer este exercício para testar minha capacidade de interpretação de uma obra tremendamente complexa, com amplo fundo filosófico e social. Desejem-me sorte e vamos lá.

Em primeiro lugar, devo dizer duas coisas: Saramago é um dos meus escritores favoritos, o livro é extremamente bom e perturbador – provavelmente seu escrito mais famoso – mas pasmem. Na minha humilde opinião, no quesito de causar incômodo, não é sua melhor obra. Neste sentido, O Evangelho Segundo Jesus Cristo é ainda mais bem escrito e mais capaz de chacoalhar e perturbar convicções. Essa é a primeira coisa. A segunda é que, entre o livro e o filme, obviamente cada um retrata o âmago do enredo de maneira diferente. O livro traz dissertações filosóficas impossíveis de ser manifestadas no filme, e o filme dá uma agilidade que ajuda muito na ideia global, o que é impossível em livro. E, apesar de ambos estarem em pé de igualdade, minha clássica migração para a ilha deserta incluiria o livro. Mas recomendo ambos.

Tem mais uma coisa para observar. Como São Paulo é lúgubre quando a vemos com outros olhos... Acho que nem deu tanto trabalho ao diretor para dar aquela cara de terra arrasada aos baixios do Minhocão e às ruas do centro, já que são degradadas “por natureza”. São lugares em que passo dia após dia, mas pela lente da câmera parece outro lugar, muito mais atro e temível. Credo...

Pois bem. O livro não é unívoco, e isso dificulta um pouco as coisas. Poderíamos interpretar o modo como a humanidade sempre exclui seu diferente, o quanto o homem ainda tem de animal, como a parte irracional de nossa psique prepondera em nossa consciência, como somos egoístas e egocêntricos, como somos frágeis ao ser expostos a condições desfavoráveis, mesmo que não tão extremas, como solidariedade e alteridade são bibelôs de estante quando o sapato aperta. E, por isso mesmo, entendo que a obra pode ser bem definida como a reescrita da teoria do contrato, mais especificamente a de Hobbes.

Desde já, indico que Saramago não deve ter tido essa intenção, ao menos diretamente. Mas tanto ele quanto Hobbes parecem compartilhar da mesma visão de homem, que é mau por natureza. Por isso mesmo, é inevitável minhas pinceladas sobre o Leviatã, magnum opus do nosso pessimista filósofo (apesar de já ter falado sobre o moço neste texto). Também puxarei algumas coisas do De Cives (Do Cidadão).

Hobbes fala sobre o modo como a sociedade se forma em um período histórico no qual a reflexão filosófica começa a apontar com mais consistência para a Política. E vai buscar na origem e na constituição do ser humano o modo como as relações sociais se construíram. Como o homem é um animal a quem se adiciona o raciocínio (e nada mais), há muito do instintivo a permear as suas ações. Como este raciocínio é próprio a cada um dos indivíduos, tudo cai no bojo da relatividade. Não há nenhum tipo de valor absoluto, nem mesmo o bem e o mal. O que existe é vantagem.

Hobbes tem uma tese muitíssimo interessante, e que parece aproximá-lo da discussão proposta por Saramago. Para o filósofo inglês, toda a Filosofia deve se basear no corporeísmo e no mecanicismo. Trocando em miúdos: Hobbes criou a figura da Empusa metafísica. Este ser mitológico seria uma espécie de espírito maléfico saído da caixa de Pandora (que continha todos os males do mundo), que a cada um se apresentava de maneira distinta. Para se ver livre da Empusa, ou da imprecisão metafísica, era necessário fixar vista no que era perfeitamente cognoscível. O que deve ser estudado e desvendado são os corpos. E temos aqui um problema – não são todos os corpos que são mensuráveis por réguas humanas. Podemos, por exemplo, conhecer perfeitamente aquilo que é redutível à Geometria e à Física, dizendo, por exemplo, o peso de um bloco, a velocidade de um carro, o volume de uma caixa d’água. Isso ocorre porque as métricas tem correspondência com a realidade e demonstram corpos tangíveis, mas são criações humanas. Estabelecemos os gramas para detectar o peso, os metros por segundo para medir a velocidade e os litros para mensurar os volumes. Ou seja, convencionamos humanamente proporções naturais. Com relação aos corpos naturais em si, a coisa não é tão simples, porque não dependem de nossa construção e não estão abarcados plenamente pelo nosso conhecimento. Para que possamos dizer algo sobre um corpo, é preciso que ele tenha uma mecânica, ou seja, que se movimente de alguma forma. É a partir daí que este corpo pode ser medido, ou seja, humanizado. Para que isso seja possível, Hobbes considera como corpo não somente as pedras, as plantas e os homens, mas o próprio conceito de Estado, porque é através dele que se pode medir o movimento de um povo como um todo integrado. Esses movimentos não são somente seus deslocamentos, mas sua História e suas conexões sociais.

Como o homem percebe os movimentos? Através dos seus sentidos. E estas sensações estão dirigidas, naturalmente, ao mundo que nos cerca. Vemos as folhas que caem, tateamos as asperezas, sentimos o amargo das ervas, e tudo isso são captações de movimentos, porque deslocamos nosso olhar para ver tais folhas, e se movem tanto os nossos olhos quanto a folha. Pelo tato sentimos algo áspero porque deslocamos nossa mão até o objeto. E este é áspero porque esteve em atrito com algo, ou sofreu uma colisão. O amargor é percebido porque mastigamos a erva, que brotou, cresceu, e foi arrancada por nossas mãos. Tudo isso é movimento, mesmo o imperceptível deslocar de seiva internamente na erva.

Isso parece ser bastante coisa, mas há algo mais que é movimento?

Sim, nossas sensações interiores também são movimentos. Na medida em que somos os sujeitos que percebemos e sentimos, essas sensações formam as representações mentais que temos do nosso redor. Essas imagens não são fruto de gravações mentais estanques, mas se formam associando e acumulando informações, ou seja, nossas sensações mudam, se movem. E o que faz com que esse movimento ocorra? Ora, a maneira como percebemos as coisas. Gostamos de algo, e nossa representação muda. Detestamos, e a representação muda também. Algo nos causava nojo, agora nos causa prazer, e futuramente nos causará dor. Vemos um caramujo, e sentimos arrepios. Descobrimos que é escargot, experimentamos e passamos a gostar. Temos uma dor de barriga e sofremos. Tudo isso são deslocamentos. Tudo são corpos que se movem, ainda que a nível mental. Mente também é corpo, e também tem sua mecânica.

E aí vem o grande busílis. Tudo isso mostra que somos privados de liberdade. Há, em todos os movimentos, uma conexão mecânica necessária, que não poderia ser diferente do que realmente é. O nojo, o consequente prazer e a consequente dor não são objetos de escolha, são frutos de movimentos que escapam ao nosso controle. E isso coloca o homem, mesmo com sua racionalidade, no mesmo campo instintivo dos animais. Não controlamos os sentimentos que temos diante de um objeto, e, com isso, não controlamos nossos desejos. Mais ainda: a lógica do desejo funciona de maneira igual, seja em nós, seja nos bichos.

E então vamos fazer uma pequena retificação. Não é que o homem seja mau; ele procura o que é melhor para ele. O homem é, na verdade, egoísta e egocêntrico. O modo como Saramago detecta e insere este fato em sua obra é genial. Parecendo retornar aos romancistas naturalistas, desenvolve algo como um romance de tese, para provar o homem como um ser em patamares muito mais baixos do que ele realmente julga. Mas como retirar o homem de sua civilidade, de sua estrutura social, e colocá-lo novamente em ambiente selvagem? Simples: suprimindo o sentido que melhor lhe move – sua visão. E daí os identificadores passam a ser irrelevantes, por isso todos são apresentados sem nome. No máximo, para contextualizar, são tratados pelas características em que foram inseridos na trama: o médico, a mulher de óculos escuros, o rapazinho estrábico. Tudo isso diz mais sobre cada pessoa do que seu próprio nome ao serem arremessados ao mundo selvagem. E o ser humano cai perfeitamente na armadilha do nosso português.

No sanatório, percebemos a condição hobbesiana do homem que é lobo do homem. Enquanto há poucos internos, a situação é controlável pelo senso comum, pela opinião razoável. Mas, à medida que aquela estranha sociedade cresce, aumenta também as discrepâncias. A cegueira branca é uma mistura de todas as cores. Tudo se torna tão igual que já não resta diferença, e ela é dupla. Não estamos falando de homens que nasceram em ambiente selvagem, mas a retirada da visão faz cegar também a memória, e então se torna irrelevante que as pessoas lá presentes tenham saído dos mais diferentes estratos sociais. Estão todos como leprosos, a cegueira os igualou. E o movimento que faz com que eles voltem a diferir entre si é o mau caráter.

Percebam como o consenso se forma. A princípio, um pequeno grupo se reúne em torno de um líder que procura coligir bom senso, no caso, o médico. Este não é um consenso espontâneo quando observado individualmente, mas, enfraquecidos que estão como pessoas, é a melhor vantagem que se pode obter. Com o crescimento dos internos, outros grupos e outros líderes surgem, cada um com seu conjunto próprio de ideias, diferentes entre si. E há um deles que baseia seu poder na violência. Sua persuasão se constrói ao redor do poderio de opressão, e a moral de apoio mútuo surgida no grupo original é derrubada. A princípio, há a submissão; mas o rumo que a coisa toma, partindo para a violência física e simbólica, primeiro com os “tributos”, depois com o estupro coletivo, desmonta a lógica de consenso pacífico do primeiro núcleo. É assim que aflora a guerra de todos contra todos. A mesma tática de violência é adotada pelos bons. É um ambiente que comprova que o ambiente selvagem animaliza o homem. Com parênteses, porém.

(Hobbes diferencia o estado de natureza entre homens e animais. No caso dos últimos, o objetivo da violência é a manutenção da espécie como um todo. Há um substrato que os une. Já para os homens, a preservação é da própria vida. É o chamado “átomo de egoísmo”).

Os bens são relativos, eu já disse, mas há esse bem maior que é a própria vida. Sendo tudo relativo, a virtude também o é. Não existindo uma virtude natural, a sociedade vai se moldando através deste movimento entre egoísmo e convenções, que se estabelecem para ser possível a sobrevivência. Uma destas convenções é aquela que consegue manter um pouco de ordem na sociedade, e já aqui Hobbes e Saramago se desencontram. Para Hobbes, os homens chegam ao soberano como aquele que provê legalidade. Já Saramago parece nos dizer que não há um consenso absoluto, nem com o soberano, nem contra ele. Vejam que a solução do caos do manicômio não é a nomeação de um grande líder, mas a fuga. Saramago parece apostar na remanescência do caos permanente. Ele não aposta em um soberano, assemelha-se mais a um anarquista (pelo menos nesta obra). A ordenação desta sociedade é a continuidade da lógica do poder.

É preciso estômago, tanto para ler o livro quanto para assistir o filme. Mas é preciso prestar atenção no seguinte: tanto nas cenas de roubo quanto nas de estupro, o mais dolorido é pensar que reside no homem um animal que não depende do estado selvagem para se manifestar. Em todos os lugares, seja em um grande centro ou em um pequeno rincão, sempre haverá alguém sendo vitimada pela violência. Sempre haverá extorsão, sempre haverá estupros, e daí sempre brotarão reações. Há roubos e estupros na África Negra, na América Latina, na Noruega, na Austrália... O contrato social não garante que o homem se livre de sua porção irracional. Por um motivo muito simples: o homem realmente não é livre, seja na posição de vítima, seja na posição de opressor.

Algumas efemérides para finalizar: E por que há uma personagem que não perde a visão em nenhum momento? É difícil dizer, principalmente pelo fato de que ela não usa essa vantagem, a não ser quando sua própria sobrevivência está em jogo. Dá a impressão de que a mulher que não perdeu a visão assemelha-se ao filósofo que sai da caverna, na alegoria de Platão.

E a visão que volta espontaneamente retrata a continuidade do ciclo de violência: nada aconteceu, nada mudou. O homem pode voltar a ficar cego, pode voltar à sua animalidade a qualquer momento. Isso está claro no penúltimo parágrafo do livro, quando se discutia sobre as causas da cegueira inaudita: “Penso que não cegamos; penso que estamos cegos. Cegos que veem; cegos que, vendo, não veem”.

Em suma. Ótimo livro, ótimo filme. E repito. Tentei extrair uma opinião e embasá-la. Há ainda inúmeras outras maneiras de interpretar esta obra, mas por ora chega. Já estou com a vista cansada.

Recomendações:

Obviamente, recomendo o livro...

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

... e o filme.

MEIRELLES, Fernando. Ensaio sobre a cegueira. Filme. Brasil, Japão, Canadá: Fox, 2008. Colorido. 121 min.

Mencionei duas obras de Hobbes. O Leviatã está referenciado no post que indiquei no texto. Quanto ao De Cives, segue sua citação.

HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

Agradeço à Rê pela foto da cegueira e à cidade de Queluz por emprestar uma simpática ladeira, devidamente transfigurada para se tornar fúnebre. Quem quiser ver a foto original, está disponível neste link.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Lições de cinema para fazer professores chorar (de raiva)

Olá!

(Advertência: vou tocar em tema polêmico, mas não quero perder amigos nem causar transtornos por causa disso. Aliás, peço para ser bem compreendido, já que não tenho absolutamente nada contra a religião de ninguém, a não ser pelo fato de que confrontos nessa área costumam gerar mais lesões do que em encontros de torcidas. Não estou aqui atacando nenhuma religião, de nenhuma vertente, mas apenas um filme que, no meu entender, é dúbio; estou apenas tomando a defesa da atividade filosófica e didática).

Sabe aquele filme que tem um monte de gente assistindo, que você tem certeza de que não vai gostar, mas algo nele te chama a atenção e que por isso mesmo você acaba pagando o risco? Pois é, acabou de acontecer comigo. Assisti ao filme “Deus não está morto”.

O fato motivador é simples. Vi muita gente comentando e elogiando a obra em questão, e me chamou especialmente a atenção o seu nome, claramente em contraposição à clássica frase nietzschiana, contida em um dos seus mais famosos aforismos, e do qual já dei meus pitacos neste post. Fiquei muito curioso em ver como a questão era tratada, ainda que desconfiado, e o fiz, disponível que estava no site de filmes que assino. E, infelizmente, cheguei à conclusão de que o filme é ruim, muito ruim. Direi por que.

Vou fazer muito spoiler. Aguentem a mão ou fujam agora. Para começar, devo contar alguns detalhes. Eu tentei assisti-lo uma primeira vez, mas interrompi minha audiência em dez minutos, logo após o conflito inicial, quando o professor ateu lança um desafio ao aluno cristão. A coisa foi assim: o mestre de Filosofia expõe um monte de nomes de proeminências científicas e filosóficas em um quadro, e diz que o ponto em comum neles é o fato de serem ateus. Estabelece peremptoriamente que a religião é uma sombra que ofusca a razão, coloca-a no campo das bobagens e, depois, manda que todos os alunos escrevam em uma folha de papel a frase “Deus está morto”, no melhor estilo primeira série do primeiro grau, mas um dos alunos alega não poder fazê-lo, por ser cristão. O aluno é devidamente ridicularizado e desafiado a convencer a todos na classe do contrário. Não sei dizer por qual motivo o aluno não foi à direção reclamar de um método claramente discriminatório. Já ali era possível perceber a qualidade do que estava por vir. Fechei meu notebook e fui passar roupa, que era melhor. 

Evidentemente, é preciso um mote para construir qualquer ficção, e nem sempre é fácil fazê-lo. Mas a maneira como ele foi desenvolvido no caso é indigno para professores, risível para filósofos e vergonhoso para cineastas. E isso ficou me incomodando por dias. Resolvi tomar um Engov e retomar o filme, agora deitado na cama, porque queria ver como Nietzsche era inserido na história.

E não foi!!! Simplesmente Nietzsche não foi debatido. A briga toda do filme não é dizer se Deus está vivo ou morto, mas sim se Deus existe, o que só é possível desconhecendo a obra do bigodudo alemão. Portanto, vamos lá, classe...

Prestem atenção e leiam a frase abaixo:


Ora, um livro ateu, não? A frase por si só é bastante clara: Não há Deus, ou seja, Deus não existe (como consta de outras traduções). Não é o tipo de frase que se encontraria em uma obra que serve para proclamar uma divindade. Será?



Salmo... Pelo que eu me lembre, é um capítulo deste livro aqui:


É isso. A Bíblia diz que não há Deus, que Deus não existe. O livro que busca comprovar Deus relata sua inexistência. Isso é o suficiente para demonstrar que uma frase extraída aleatoriamente do seu contexto muda completamente de sentido. Fazer esse tipo de coisa só pode ter dois motivos: burrice ou desonestidade. Vamos ver o trecho completo:


Ah, agora ficou tudo claro! Pois é.

É mais ou menos o que acontece com o título do filme em questão. Ele aproveita uma frase bastante forte do livro Gaia Ciência, de Nietzsche, que é um grande debatedor da questão religiosa, e a usa apenas para intitulá-lo, ou seja, faz o mesmo exercício que fiz acima. O resultado é o desencaixe do contexto, e a impressão de que o filósofo em foco é um ateu malvadão e autoritário, e que o professor nada mais seria do que a sua alegoria, só faltando o bigodão (não gostaria de ver Nietzsche tomando sopa creme).

Duas coisas a colocar: Nietzsche de fato era ateu e conhecia muito bem o cristianismo, já que seu pai e seu avô foram pastores de relevo. E ele discutiu menos a questão da existência das divindades e mais os reflexos da religião no mundo. Nesse sentido, descartar o seu aforismo 125 é perder a oportunidade de debater os porquês que levaram Nietzsche a escrevê-lo desta forma, e, principalmente, em que medida ele pode ter razão ou não. Ele poderia levar os próprios religiosos a observar se as suas propostas encontram eco na realidade vivida, ou seja, se cumprem seus objetivos.

Vamos reproduzir o aforismo em debate:

“Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: ‘Procuro Deus! Procuro Deus?!’ – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou- os com seu olhar. ‘Para onde foi Deus?’, gritou ele, ‘já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘em baixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele ainda mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodreceram! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e o mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará esse sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa deste ato, a uma história mais elevada que toda a história até então!’ Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. ‘Eu venho cedo demais’, disse então, ‘não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e, no entanto, eles o cometeram!’ – conta-se também que no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas, e em cada uma entoou o seu Requiem Aeternam Deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: ‘O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus’?

Pois bem. Percebam que o louco se apresenta na feira diante dos homens dos quais se diz que não mais acreditavam em Deus, o que o coloca no campo da chacota. Mas o incisivo discurso põe estes homens na perplexidade. Então é bem possível notar que não é pelas suas palavras que os homens do mercado não creem em Deus, mas por suas atitudes. Seu modus vivendi é discrepante com relação ao que pregam os sermões das religiões vigentes, e a própria sociedade de então já revelava um desprezo com a necessidade de um deus para pavimentar sua base. Estamos nos fins do século XIX, o apogeu da fé no progresso. Já não têm mais os deuses o mesmo papel que possuíam em tempos pretéritos.

E agora? O que será dos homens, sozinhos e pelados embaixo das pontes, desprovidos de apoio e fundamentos? Quais serão suas novas divindades, suas novas transcendências? O deus Ciência, o deus Mercado, o deus História, o deus Acaso... Serão estes os novos avatares dos novos tempos? Mas terá condições o homem de perceber que seu discurso é um e sua ação é outra? Percebe o homem que ele está matando Deus ao se afastar de sua necessidade de enxergar vínculos entre a ação divina e o transcurso da natureza? O homem tem olhos para perceber uma nova moral que se instaura e modifica suas convicções? Por quanto tempo durará esta transição? Para Nietzsche, o caminho em que o homem se desvincula de suas divindades e os leva a outras (a si mesmos, talvez) já existe, mas conduz a algo incomensuravelmente distante (‘a mais longínqua constelação’), algo dificilmente perceptível.

Essa é a reflexão que o ‘Deus está morto’ de Nietzsche deve levar, e não a uma declaração de amor ao ateísmo. No sentido de que o homem vive em descompasso com as convicções que professa, o alemão doido causa choque porque faz com que o homem reflita sobre si, em especial no quanto somos cínicos ao fazermos os mais complicados malabarismos para forçar um encaixe entre nossas rezas e nossas ações. Convivemos com a pobreza e a desgraça, e achamos isso normal; talvez, no máximo, lamentável. Mas, mesmo assim, corriqueiro – como se não tivéssemos culpa de nada. O louco do aforismo diz que matamos Deus, e não paramos para pensar o quanto isso é verdadeiro ou não. Se esta não é uma reflexão que trespassa a Filosofia e alcança a reflexão religiosa, não sei mais o que é.

O filme perde a oportunidade de colocar essas discussões em pauta e desperdiça o próprio título. Não é de surpreender, portanto, que cause calafrios na minha porção filosófica, e desânimo na minha parte professoral. O objetivo da peça parece ser apenas o de rebater teses científicas, tentando aplicar esta mesma Ciência para refutar a si própria. Sempre que a Religião tenta se valer de métodos científicos, a coisa desanda. Ao tentar recorrer à prova, à indução, à falseabilidade, cai-se na armadilha.

Isso porque as teses que são apresentadas como provas da existência de Deus são mais frágeis. Prova é coisa da Ciência, assim como fé é coisa da Religião. São campos distintos. Se o filme se limitasse a militar por esse campo, faria muito melhor.

Vou dar um exemplo: A frase é “Se Deus não existe, tudo é permitido”, utilizada no livro “Irmãos Karamazov”, de Fiodor Dostoievski, é colocada como definitiva pelo cineasta para comprovar os princípios religiosos como fonte de toda a ética. Só que não é. Não é só a Religião que formata os princípios morais do mundo. Essa impressão é passada porque, em geral, as religiões compilam e sistematizam todo um sistema ético, ao contrário de outros modos de construir disposições morais. Temos métodos abertos que são também mecanismos de embutir ética em uma sociedade, como é o caso do contrato social, em que os homens cedem liberdade para obterem condições de sobrevivência. É deste contrato que nascem as leis, as fronteiras, as formas de fazer girar a engrenagem da sociedade. Se não fosse assim, a lei não seria válida para todos, independentemente de sua fé. E, em tempo, a frase foi mal reproduzida, utilizando uma versão advinda do senso comum. Seus termos corretos são “... não existe a imortalidade da alma, portanto não existe tampouco virtude. Então, tudo é permitido”. Lembrando que se trata de uma frase literária, e não científica.

Vou dar mais um: a teoria do Big Bang, que representa uma explicação para a origem do universo – esta origem seria o momento em que uma concentração extraordinária de energia começa a se expandir no tempo e espaço – é apresentada como sendo formulada por um teísta. Vou ter que dar uma rápida espanada neste termo e nos demais que rotulam a posição de uma pessoa em relação à existência de uma transcendência.

Teístas são pessoas que acreditam em um Deus pessoal, personalizado, entidade maior de um sistema religioso. Este é o caso dos cristãos, dos judeus, dos islâmicos.

Deístas acreditam em uma divindade difusa, impessoal, uma espécie de energia vital ou relógio que dita o ritmo do mundo, que não deixa regras transmitidas, mas que podem ser percebidos na natureza e na harmonia universal. Muitos filósofos do iluminismo, como Voltaire e Locke, eram deístas.

Agnósticos suspendem seu juízo e preferem não definir a existência de um Deus. São céticos em perceber uma ação divina por trás do funcionamento natural, mas também não a negam. Acham apenas impossível que se conheça a transcendência.

Já os ateus acreditam que Deus não existe, o que não deixa de ser uma fé.

Bom. O nosso aflito aluno diz que a teoria do Big Bang foi desenvolvida por um teísta, repito. É verdade. O teísta em questão era o belga Georges Lemaître, um padre. Padre. Porque isso não foi dito, eu não sei. Talvez fosse chato dizer em um filme não católico que a melhor tese científica apoiada pela fé tenha sido elaborada por um padre. Pode ser isso.

Mas seria muito simples dizer que o filme pratica proselitismo, e que é feito POR e PARA convertidos. Ele faz muito pior: é uma ode a vários preconceitos. Por isso mesmo, ele pode ser tolo, mas não é inocente.

O mais óbvio é a menina muçulmana que se converte e é espancada pelo pai, que ainda a expulsa de casa. Nestes tempos de Estado Islâmico, que faz a Al Qaeda de Bin Laden parecer um grupo de meninos combatendo com bodoques, retratar um muçulmano comum como uma pessoa violenta no seio de seu lar me parece útil apenas para uma coisa: demonstrar o quanto esse estereótipo está arraigado na cultura ocidental. Não entendo porque algo tão desnecessário foi inserido no filme. Outras questões poderiam ser levantadas. Como o filme mostraria, por exemplo, uma menina WASP que se achegasse à família tradicional estadunidense e dissesse que está grávida de um negro? Como trataria um rapaz que se revelasse gay? Teríamos ainda mais estereótipos? Teríamos demonstrações inequívocas de misericórdia? Teríamos outros pais espancando filhos e expulsando-os de casa? Ou essas coisas não acontecem?

Tem também a jornalista ecochata, que se indispõe contra todo e qualquer sistema que julga pernicioso contra a natureza, em especial na defesa dos animais, até que se vê vítima de uma doença incurável. Aliás, achei estranhíssima a colocação de um defensor da ecologia no lado dos maus. Deve ser porque se trata de uma pauta predominantemente de esquerda, mas isso não é obrigatório. Não se discute se suas reivindicações são justas ou não, o quanto são importantes para um planeta que se encontra doente. Não se faz nem mesmo uma menção do quanto é cristã a atitude de preservação do meio em que se vive. Outra vez, temos uma trama paralela e desconectada do enredo.

E há a questão dos ateus. Os ateus são maus, apresentados de maneira maniqueísta. Há o empresário, frio, que trata com desprezo sua velha mãe com mal de Alzheimer. Há o pai do oriental, revoltado pela conversão do filho. Já o professor, além da intransigência com os alunos, trata sua namorada cristã como casca e tudo, e a humilha com constância. Seu remédio é a morte, o que ocorre juntamente com sua conversão.

Mais uma coisinha: como vocês sabem, tenho um projetinho neste espaço que é o pequeno guia das grandes falácias. Todas as vezes que faço a descrição de uma delas, preocupo-me em adicionar exemplos e obras que ajudem na compreensão dos erros lógicos. Isso às vezes é custoso, dá muito trabalho para achar algo que se acomode ao contexto. Mas só porque eu não conhecia este filme. Aqui tem de tudo: referência circular, declive escorregadio, afirmação do consequente, red herring, ataque pessoal, inversão do ônus da prova, deuses das lacunas, falsa dicotomia e toda sorte de apelos – à crença, à autoridade (uns vinte), à popularidade... Um grande compêndio.

Resumo: o filme é simplório demais em alguns aspectos, pernicioso em outros. Seu ponto central, que deveria ser os debates entre o professor e o aluno desafiado, vale-se de uma imensa coleção de frases soltas e de teses não explicadas. Levanta a velha arquitetura maniqueísta de se colocar um lado para o bem, e o outro para o mal, sem intermediações. E no final o professor não era um ateu de fato, era um cristão revoltado com Deus, o que ajuda o filme a falhar ainda mais.

Enfim, apenas para terminar. Se um dia algum de vocês me vir atropelado em uma destas encruzilhadas da vida, não tentem praticar proselitismo em uma hora dessas. Se não houver nada a fazer para me ajudar, ofereça-me uma calderetta bem gelada da melhor cerveja que estiver ao seu alcance. Nunca é tarde para celebrar a vida.

Santé!

Recomendações:

Já tinha recomendado Gaia Ciência em outra postagem, por isso vou recomendar a autobiografia de Nietzsche, carregadíssima de ironia. Vai ajudar a entender a gênese do seu pensamento.

NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. São Paulo: Escala, 2009.

E serei honesto: o filme tema deste texto não é ruim no aspecto técnico. Aliás, este é o único ponto tolerável, porque é feito com equipamentos de primeira linha e técnicos de som, fotografia e figurino competentes. Além disso, para que meu post seja compreendido, é preciso que o filme seja assistido. Por isso, segue a recomendação.

CRONK, Harold. Deus não está morto. Filme. Scottsdale: Pure Flix, 2014. Colorido. 113 min.