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terça-feira, 31 de março de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 9º tomo - A inversão de causa e efeito (direção inversa)

Olá!
Vai uma diabetezinha aí? Posso assegurar a vocês que não é uma boa ideia aceitar. Quietinha, quietinha, ela vai se infiltrando em todas as instâncias da sua vida. É preciso aposentar os doces, esquecer-se das garapas, tomar cuidado com as massas, evitar cerveja - no que sou peça de resistência... E, com o tempo, dá-lhe antiglicêmicos, substitutos da insulina, inibidores do não sei o quê, antagonistas daquilo e do outro. Tudo isso para evitar a hipertensão, a aterosclerose, a cegueira e a impotência – espero ter saído de campo antes dessas últimas duas.

Diabetes... Não me faltava mais nada

Descobri minha diabete de forma inesperada. Minha mãe, bem antes de se descobrir cancerosa, teve uma bela crise de dor de cabeça e tontura. Tomou a habitual Dipirona, mas não adiantou. Como só piorasse, apelou para o pronto-socorro, onde foi feito um rápido exame com um glicosímetro, aquele aparelhinho que serve para colocar uma gota de sangue extraída da ponta do dedo. Através de uma reação química entre o sangue e o metal da tira de medida, é possível mensurar a quantidade de açúcar no sangue. Com taxa muito alta na ocasião, a ora defunta mãe foi encaminhada ao laboratório para melhores exames. Caixa: estava com diabetes. Como sói acontecer nesses momentos, adquiriu um destes aparelhinhos para deixar em casa. Aí eu resolvi medir minha glicemia. 135 (o máximo é 100). No dia seguinte, respeitando corretamente os prazos de jejum, deu 127. Engoli em seco e marquei uma consulta. Tudo devidamente confirmado. Merda...

Quando uma pessoa está sob suspeita de ser diabética, geralmente os endocrinologistas não se fiam unicamente na glicemia em jejum, exame este de indício, não de confirmação de diagnóstico. Para fechar o quadro, lançam mão de outros exames, como a glicemia pós-prandial, os níveis de frutosamina, a hemoglobina glicada e a polêmica curva glicêmica. Polêmica por quê?

É que o exame consiste no seguinte: estando em jejum por 12 horas, é feita uma primeira extração de sangue do paciente. Logo em seguida, é oferecida ao contribuinte uma solução de glicose doce tão doce mais doce que o doce de batata-doce – uma autêntica bomba calórica. Depois de duas horas, é colhida nova amostra de sangue. A critério do médico, podem ser extraídas amostras após 3 e 4 horas, mas não é o padrão. Essas amostras permitem desenhar uma curva de resposta do organismo ao excesso de glicose, o que é muito mais preciso do que uma mera amostragem em jejum.

Não foi uma, nem duas, nem três pessoas que me disseram isso, mas várias. Muita gente acha que “pegou” diabetes por causa do exame de curva glicêmica. Não e não e não.

Não é o exame de curva glicêmica que causa a diabetes, é a diabetes que faz a curva glicêmica ser alta. Essa crença se dá por conta do velho pensamento enraizado no senso comum de que excesso de consumo de açúcares causa a malfadada doença. Para isso ser verdade, é preciso que tais excessos sejam habituais, e não somente no evento de um exame. Ou seja, o excesso precisa fazer parte da dieta da pessoa, e também é necessário que haja outros problemas de ordem metabólica. O senso comum relaciona diabetes com doce, mas açúcar e carboidratos são praticamente sinônimos. Assim, o diabético precisa ter cuidado com farinhas, com grãos, com tubérculos, etc.

Mas é só do senso comum que nascem estas inversões? Não, absolutamente. A Ciência também, mesmo que apoiada em evidências, pode acreditar em uma tese equivocada, até que a mesma seja falseada (do que já falei aqui).

Vou dar um exemplo bem recente de como algo que acreditamos piamente ser uma causa, na verdade é um efeito (ou pode ser, pelo menos). Várias pesquisas na área médica fizeram perceber que as floras intestinais de obesos têm significativas diferenças em relação às pessoas de peso normal. A correlação era quase óbvia: alimentação diferente produz resíduos diferentes, e cada composição de flora é adaptada para uma ou outra. Mais ainda: as alterações físicas decorrentes da obesidade levariam a uma produção de enzimas e hormônios que alimentariam diferentes tipos de bactérias. Portanto, não seriam só os diferentes hábitos alimentares a causa de colônias próprias, mas também derivações do próprio organismo.

O diabo é que tinha algo que não se encaixava nessa regra. Há obesos que possuem a mesma dieta equilibrada dos magros, que não são diabéticos, hipertensos ou congêneres, e ainda assim suas floras intestinais permanecem as mesmas, ou seja, as floras típicas dos gordos. Por que será isso?

Pesquisadores da Unicamp, capitaneados pelo professor Mario José Adballa Saad, tem conduzido uma pesquisa que busca solucionar este problema, através de uma insólita (e um tanto psicologicamente nojenta) técnica conhecida como transplante de fezes!!! Tá bom, o nome correto é transferência de flora intestinal, mas já sabe qual vai pegar, né?

O procedimento consiste em obter flora convencional de doadores magros e injetá-la nas tripas devidamente purgadas do gordo-cobaia, em uma quantidade muito superior à anteriormente residente, de forma que as novas bactérias se apropriem do ambiente e eliminem quem estava lá.

Bom, qual é o objetivo da transferência de escatologias? É verificar se não tínhamos uma inversão entre causa e efeito. Acredita-se que é a obesidade que ocasiona aquele tipo específico de colônia bacteriana, mas o que se busca aqui é propor se não são, por ventura, as bactérias que causam a obesidade e suas consequências. E cinquina! A maioria dos transplantes foi bem sucedida em ratos, e os gordinhos voluntários têm se tornado mais lépidos e faceiros, mais álacres e pimpões, mais magros que agora estão.

A Ciência é assim mesmo, move-se para lá e para cá, às vezes em rumos inconsuetos, mas (jocosamente a partir de agora) costuma tirar ouro de onde só existe m...! Já pensou? “Para um corpinho de modelo, cápsulas de m... do Dr. Abdalla! À venda nas melhores drogarias”.

Bom, já brinquei, com pedido de perdão incluso. Enquanto na Ciência as inversões de causa e efeito são estudadas para obter explicações, na retórica elas são utilizadas para criar confusões. É uma falácia formal, em que, geralmente, dois eventos concorrentes são tomados um como a causa do outro, quando o que ocorre é exatamente o contrário. Os componentes do raciocínio estão presentes e corretos, mas colocados em posição invertida.

Como pudemos ver acima, há inversões de causa e efeito que não são falaciosas no sentido lato do termo, mas há exemplos em que o erro está no raciocínio em si, não na falta de dados ou experimentos disponíveis. Vamos ao exemplo, naturalmente.

Escuto falar muito que as gerações atuais descuidam com facilidade da construção do seu saber. Se pergunto por que isso ocorre, vem a resposta: É porque são indolentes. E, com ela, a sentença quase axiomática: “É o aluno que faz a escola”. Paremos e pensemos.

Que tipo de escola oferecemos às nossas crianças? É uma escola atrativa, que trata o conhecimento com a nobreza que lhe é devida, ou é um espaço do enjoo, do enfado, onde aprendemos (?) coisas que nunca utilizaremos na vida? No primeiro caso, provavelmente teremos crianças estimuladas a aprender cada vez mais, e no segundo, o único momento agradável será o de ir embora (ou o intervalo, vá lá que seja). A criança, quando vai à escola pelas primeiras vezes, é, na maioria dos casos, uma tabula rasa. Não no sentido do conhecimento, que pode ser provido por outras fontes, mas no relacionamento interpessoal. É na escola, muito provavelmente, que a criança terá seus primeiros contatos com volumes maiores do que a do seu núcleo familiar em uma frequência quase diária. Ou seja, a escola é não só o local onde o aluno receberá conhecimento sistematizado, mas também é sua primeira introdução real na sociedade mais ampla. Não vou me alongar muito, por que já falei sobre o assunto, mas a escola dá forma ao aluno. É a escola que faz o aluno, e não o contrário. A sociedade constitui a escola de determinada maneira, e esta maneira é transmitida ao seu corpo discente, modificando-o. Essa história de que o aluno faz a escola é uma quase mentira. É bem verdade que, por exemplo, de fraquíssimas faculdades possam sair excelentes profissionais, mas percebam como isso é individual e não modifica a escola. É mérito próprio: o cara que viu a insuficiência do que lhe é ofertado e corre atrás de algo melhor por suas próprias pernas (mérito não é meritocracia, sobre isso podemos falar melhor em outro momento). Mas não é o que ocorre na regra: escolas ruins produzem profissionais ruins, bastando pensar no que poderiam fazer essas pérolas raras se tivessem ao seu dispor boas instituições de ensino.

Sacaram? O que é motivado se torna motivador, deturpando a relação entre causa e efeito. No exemplo acima, imputamos uma responsabilidade a quem não é responsável, e notem como isso é perigoso, porque remove a responsabilidade de quem de fato deveria tê-la: a escola construída pela sociedade, incluindo todos os seus componentes: os pais, os professores, os dirigentes, os governantes. Quando dizemos que é o aluno que faz a escola, livramos a cara de todos os demais.

Só para fechar, inversões de causa e efeito são utilizadas profusamente em arte, desta vez conscientemente. Algo como “o canto das cigarras vem trazendo o verão”. Vejam que a questão aqui é uma direção inversa nas sensações. É claro que é o verão que faz com que as cigarras cantem, mas sua chegada é menos perceptível que o alegre zunido dos fabulescos insetos. Isso faz com que o artista a priorize, mas, como estamos no campo da Estética, tal inversão é compreensível. 

Recomendação de leitura:

Desta vez, vou dar uma recomendação diferente. Trata-se do artigo que mencionei neste texto. Desculpem-me, mas está em inglês, que é a língua internacional da Ciência. Estou elaborando um post em que falo do mecanismo de divulgação científica através de artigos publicados em revistas, algo crucial e pouco conhecido. Por enquanto, é importante verificar o quanto há de rigor na investigação científica, para compreender o quanto esta deve ser levada a sério.

SAAD, Mario J. A. et al. Gut microbiota is a key modulator of insulin resistance in TLR 2 Knockout Mice. Disponível em: http://journals.plos.org/plosbiology/article?id=10.1371/journal.pbio.1001212. Acesso em: 20.03.2015.

sexta-feira, 20 de março de 2015

Sobre as coisas que explicam a necessidade de manter meia dúzia de árvores em pé

Olá!


Tenho acompanhado os desdobramentos e o vai-não-vai que envolve o quarteirão composto por Consolação-Caio Prado-Augusta-Marquês de Paranaguá, onde ativistas do meio ambiente querem que seja criado o Parque Augusta, e as construtoras Cyrela e Setin querem erguer três torres de não sei quantos andares. Para quem não é de São Paulo, é necessário fazer algumas referências e dar certas explicações. Vamos ao Google Maps:


Este quadrado é um não tão grande terreno que fica situado em um local movimentadíssimo, na região central da cidade. É um raríssimo espaço onde ainda existe uma pequeníssima mancha de Mata Atlântica original. Já vou parar com os superlativos, calma. É local de fácil acesso, próximo à estação República do metrô, na rota dos ônibus da Augusta e dos corredores da Consolação, atrás do Centro de Especialização da PUC e quase de frente à Universidade Mackenzie, em região que ainda mantém alguma coisa de edifícios históricos, vizinho de bairros privilegiados, como Higienópolis e a parte nobre da Bela Vista – leva vinte minutos a pé tanto para a Avenida Paulista quanto ao Marco Zero da praça da Sé. Nada a estranhar se eu disser, portanto, que seu valor imobiliário é muito alto. Outra referência: para quem viveu em São Paulo na década de 80, é no exato espaço onde se situava a tenda do Projeto SP, uma “casa” de shows em formato de circo, onde Legião, Paralamas, Camisa, Engenheiros, Ultraje, Ira!, Barão, Titãs, Kid Abelha, Capital, Biquini, Gang 90, João Penca, RPM, Nenhum de Nós (nem sei se todos mesmo passaram por lá) e alguns internacionais desfilaram seus sucessos na chamada década perdida. Se não estou muito enganado, mudou de lá para a Barra Funda, onde hoje fica o Villa Country. Não sei por que acabou, era um lugar excelente. Dava para comer pizza e beber cerveja antes ou depois dos shows, ao contrário do que acontece com o Campo de Marte ou com o Morumbi, de onde nada resta a fazer a não ser sair correndo para pegar o metrô aberto/ônibus circulando. Acho que tem a ver com a incapacidade de uma lona reter sons. Talvez a vida fosse mais barulhenta e menos chata, sei lá. Não vou julgar agora.

É relativamente comum eu passar por aquele trecho, é caminho do meu dia-a-dia laboral. Ainda na semana passada, vi operários que já se ocupavam em cravar estacas e escavar buracos. Tive vontade de descer da Kombi e dizer a eles: “Meus amigos, deixem essas pás e picaretas de lado! Vamos aproveitar a trégua da chuva, vamos sentar embaixo de uma dessas árvores que chegaram muitos anos antes de nós e tomar uma cerveja de bom selo e temperatura adequada. Vamos descobrir quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Se utilizarmos essas ferramentas, que seja para derrubar os muros que nos rodeiam e dividem dois mundos: a cidade que nos olha e nós que a queremos conosco. Vamos eu, tu e ele nos transformar em nós, vós e eles. Vamos deixar que a avó conte suas histórias a todos aqueles que queiram ser seus netos. Vamos vacilar junto com o rapaz que deseja se enamorar de todas as garotas do mundo. Vamos também nós vestir a camisa do time da rua de baixo, para sermos campeões mundiais contra o time da rua de cima, em um universo circunscrito no pequeno quadrilátero de terra com grama esparsa, vamos nós acompanhar o canto e os acordes de violão em uma roda cujos limites estão situados no simples prazer de viver, de ter a sensação mista de conter e de pertencer, levando também as nossas músicas, que falam de nossos amores e de nossas aflições. Vamos arrumar um desses pneus velhos, maternidades de dengues e chikungunyas, vamos fazer deles balanços à moda antiga para as crianças, mas vamos nós mesmos brincar primeiro, tentar chegar à lua sem quebrar o pescoço, bêbados que já estaremos”.

Mas o som de uma marreta, ao passar pelo último portão que dá vista ao terreno, retira de mim todo o estro poético. Comento qualquer coisa com o seo Odair, motorista da Kombi, que igualmente responde qualquer coisa e prossegue seu caminho, atento e cuidadoso ao volante, enquanto eu me torno cabisbaixo, configuração típica ao me por pensativo.

(Homenagem estilística – quase paródica e prá lá de pretensiosa – a Fernando Pessoa e Rubem Braga).

Na minha humilde opinião, o espaço deveria ser mantido. O argumento básico dos defensores da criação do parque é o de que há pouquíssimas áreas verdes na cidade, em especial em região tão central. De acordo com o estudo da Secretaria Municipal de Verde e Meio Ambiente, a cidade de São Paulo possui uma disponibilidade de 12,5 m2 de área verde por habitante, o que a salva por um fio de ser reprovada na recomendação da Organização Mundial da Saúde, que é de 12 m2. Mas o número é ilusório, porque se excluirmos apenas três distritos do município, teremos uma mudança significativa nesse número.
Vamos ver. Parelheiros, Jaçanã e Perus possuem extensas áreas que, de alguma forma, possuem algum mecanismo de proteção legal, seja por serem áreas de mananciais, seja por conterem reservas de Mata Atlântica. Isso faz com que a área verde por habitante nesses distritos seja respectivamente de 313, 89 e 65 m2 por habitantes, aproximadamente. Se contarmos todo o resto, composto por 28 distritos, teremos a exígua média de 5,47m2 por habitante, menos da metade do recomendável, sendo que cinco deles tem menos de 1 m2 para cada contribuinte... Mia caríssima Mooca é a campeã negativa, com insignificantes 0,35m2. Deve dar menos de uma árvore por cabeça, mamma mia!

Os defensores do verde pensam que, mesmo se tratando de uma área bem pequena, extingui-la significa reduzir o que já é minúsculo. Concordo com essa tese, mas acrescento a ela outro motivo, que considero até mesmo mais importante: a manutenção do espaço pelo seu contexto histórico.

A cidade de São Paulo, infelizmente, destaca-se pela péssima maneira com que trata seu patrimônio histórico. E é possível perceber isso em um prosaico périplo dominical. Senta, que lá vem história.

Há coisa de um mês atrás, fomos comemorar o aniversário da Natália, afilhada minha. Após uma série de negociações, ela achou por bem celebrar com partidas de cartas e caipirinha de maracujá em um bar divertido (e caro!) na rua Treze de Maio. Como o Bixiga fica relativamente perto, resolvemos ir a pé mesmo, subindo a boa e velha Brigadeiro, tão temida pelos corredores da São Silvestre, e tão tranquila que é nos domingos (exclusivamente). Passando ao lado do teatro Renault (antigo teatro Abril, mais antigo teatro Brigadeiro, mais antigo ainda cine Paramount), sua irmã Renata começou a conversar comigo sobre o que resta de construções que contam a história de cidade, tertúlia que se manteve, parando aqui e ali, até a chegada ao lúdico e etílico estabelecimento. Ela comentou alguma coisa sobre o estado de preservação da Vila Mariana, que, concordo, conserva uma boa parte do seu casario antigo, e que é bem representativa de uma determinada época da cidade. Mas mesmo lá temos problemas. A Vila Mariana nasceu em função do matadouro que existe ainda hoje próximo ao Parque Ibirapuera (desativado, é óbvio) e que também tem, em suas proximidades, o Instituto Biológico. Ambos os imóveis são tombados pelo patrimônio histórico, mas os órgãos que cuidam desta pasta queriam também tombar todos os imóveis existentes em seus arredores, para uma melhor contextualização histórica, o que causou grande celeuma e revolta nos proprietários. O motivo óbvio: a desvalorização decorrente da imobilização, com a impossibilidade de rearranjo da área. Em São Paulo, morar em patrimônio histórico não dá orgulho. Estranho, isso. Mas, observações à parte, o grosso da história da cidade que cresceu a partir do século XIX se dá em bairros mais antigos e centrais, como a Bela Vista na qual andávamos, mais conhecida como “Bixiga” em sua parte mais proletária.

Passear pelo Bixiga tem o mesmo efeito do que perambular pelo Brás, pela Mooca, pela Barra Funda e pelo Bom Retiro, ou pelos ainda mais centrais Sé, República, Santa Ifigênia, Luz. A história da cidade está escrita em fragmentos, é preciso caçar com uma lupa os vestígios que restam.

Se fizermos uma observação meramente numérica, ainda há muito a ser observado. Só que há um problema grave nesta descontinuidade: você reconstitui o passado por suposição, e não por demonstração. Imagine o trabalho de um arqueólogo. A partir de meia dúzia de cacos, ele reconstitui um vaso inteiro. Descobre o material da manufatura, usa técnicas de datação química para determinar sua idade, compara com os estilos e os recursos em voga quando de sua constituição, analisa outras peças obtidas na mesma região geográfica, analisa a tecnologia à disposição na época, e com isso chega o mais próximo possível do vaso em questão. Seu trabalho é admirável e faz uso de toda lógica possível, uma mescla perfeita entre pensamento artístico, síntese histórica e austeridade científica, mas o que temos é uma aproximação. Temos a hipótese, nunca a precisão absoluta. E a dificuldade na recuperação do caso é diretamente proporcional à quantidade de fragmentos; a cada um que se perde, temos mais dificuldade em recompor a peça. Mais uma vez: é ótimo que existam profissionais com capacidade para reciclar o passado através de poucos indícios, mas não seria melhor ter a peça inteira? Quando mais íntegra, melhor são as extrações antropológicas que podemos fazer dela: conclusões culturais, econômicas, religiosas, artísticas, utilitárias, e assim por diante.

Quando cruzamos com uma dessas casinhas, de chaminés, de fabriquetas, ou de um portãozinho, uma inscrição sobre uma porta, um modelo de calçamento, uma placa, ou algum móvel em um estabelecimento, um ponto de ônibus abandonado, temos os fragmentos, mas não temos um conjunto substancial que conte sua história por si só. Há, para dar um exemplo, uma última casa térrea na Avenida São João. Podemos concluir alguma coisa ao observá-la: que tipo de construção existia antes dos prédios que a tomaram o redor. Mas o que havia ao seu lado? É inconclusivo! Poderíamos ter outras casas iguais, ou poderia ser um modelo de habitação de vanguarda, ou já poderia ser antiquada para a época... Isso está perdido, não temos mais como presenciar. Contamos apenas com fotografias e com a memória de quem ficou, mas da primeira temos as limitações técnicas, e da segunda temos de pular a barreira da afetividade. Troquemos em miúdos.

Quem tem um celular mediano possui em suas mãos um potencial gigantesco de registro, e acabamos nem percebendo isso. Tirar fotografias hoje em dia é uma verdadeira brincadeira de criança. Se retornarmos no tempo por um século, porém, veremos que o contexto é absolutamente invertido. Tirar fotografias era um autêntico acontecimento, e as pessoas comuns até mesmo se preparavam para a ocasião, trajando as melhores roupas e colocando-se formalmente diante da câmera. Isso tudo porque uma máquina fotográfica, seus acessórios e chapas eram caros, muito caros. E grandes, muito grandes. Havia profissionais no ramo, especialistas da fotografia diferentes dos de hoje, que tem no primor artístico sua principal virtude. A coisa na época era muito mais prosaica: tirava-se fotos para documentos, em casamentos e só. Não existia um equipamento que permitisse tirar milhares de selfies em único dia. Fotografia não era uma banalidade. Por isso, são raras as fotografias da época, principalmente aquelas com foco no ambiente e não nas pessoas. Mais ainda: tudo era preto e branco. Existia até mesma uma estranha e extinta profissão, que é a de colorizador de fotografia – o gajo sobrepunha com tinta colorida um original p&b. Tenho uma dessas retratando minha mãe ainda criança em casa.

Com relação à memória, temos o limitador dos afetos de quem conta a história. É delicioso ouvir o que nossos queridos macróbios tem a dizer, mas expressões como “ah, que saudades”, “como era bom”, “como era bonito”, já mostram que a visão objetiva destas pessoas está embotada por turvações causadas por seus próprios sentimentos com relação a coisas e lugares. Em suma: sem nenhuma memória sentimental de um bairro como a Sé, por exemplo, posso dizer que ela é mal cuidada, mal cheirosa, perigosa e outras tantas coisas. Se eu nasci e cresci nas suas imediações, terei mais dificuldade em minimizar suas virtudes e destacar suas misérias, porque tenho uma relação afetiva com o lugar. Provavelmente teria passado todos os dias por ela, na colo da mãe, carregando cadernos, de braço dado com a namorada. Se ela faz parte da minha história e é o ambiente no qual foi moldada minha personalidade, não terei uma visão objetiva plenamente imparcial. Sou suspeito, e é obrigatório inserir filtros no meu depoimento, todo crivado de incertezas. Mais uma vez, temos o fragmento, e não o todo.

Por isso mesmo, sou favorável que se mantenha o espaço da Rua Augusta. Não só como refúgio verde, mas como elemento histórico da cidade. Poucos espaços ainda são íntegros, como a Vila Economizadora na Luz, as casinhas térreas da Rua Barra do Tibagi (Bom Retiro), os sobradinhos da Rua Japurá (Bela Vista) e mais alguns, apenas para citar exemplos. Levo em consideração os argumentos de quem é contrário à criação do parque. O principal deles é o fato de que seria gasto muito dinheiro para uma área pequena, que valorizaria ainda mais uma região já muito valorizada. Tendo a enxergar um certo egoísmo nessa assertiva. Uma praça tão próxima ao centro não é um fenômeno local, não se destina unicamente aos moradores da região que, de resto, são poucos. É um local onde muita gente trabalha, muita gente faz compras, muita gente estuda (PUC, Mackenzie, Caetano de Campos), e podem fazer uso do espaço. Observar a redondeza é importante, mas, para tanto, tiramos os olhos do próprio local e do que pode nos trazer de bom. Não acho inteligente reduzir ainda mais a quantidade de cacos deste vaso quebrado chamado carinhosamente de Sampa.

Recomendação de site:

O site São Paulo Antiga, do jornalista Douglas Nascimento, é FOR-MI-DÁ-VEL. É uma das obras que eu gostaria de ter feito. Para quem não conhece, é um trabalho primoroso de acervo e de exploração do que resta de história no imobiliário da cidade. Anteriormente, o site se chamava São Paulo Destruída. Eu gostava mais desse nome. Dava uma pegada mais forte de denúncia, mas é evidente que a mudança não diminuiu em nada a qualidade do trabalho. Pelo contrário. O escopo foi ampliado e o conteúdo se tornou ainda melhor. Imperdível. Visitem sempre.