Marcadores

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 7º tomo - A inversão do ônus da prova

Olá!

A criançada de hoje em dia sabe o que é chiniqueiro (xiniqueiro? xeniqueiro? cheniqueiro? chinequeiro?)? No meu tempo de moleque, usava-se este dispositivo informal e quase legal para decidir prioridades em jogos de esconde ou outro qualquer. Alguém pegava uma pedrinha e ocultava em uma das mãos, obrigando cada um a adivinhar onde estava a tal.

O chiniqueiro, metodologia de arbitramento de seleção 

Uma vez feitas as escolhas, aferia-se o resultado. Às vezes, o detentor do chiniqueiro (não faço a menor ideia sobre a origem do termo, nem consegui pesquisar nada que me dissesse alguma coisa), vendo alguma espécie de desfavor a si próprio ou a algum aliado, fraudava o resultado, dando sumiço à pedra. Era o suficiente para o pau fechar, já que não era possível provar os acertos/erros de palpite. Afinal de contas, quem tinha que dar o resultado era o chiniqueiro, correto? Mas a afirmação era dele ou de quem apontava a mão? Quem deveria provar algo não é quem faz a afirmação?
 
Pois muito bem, vou conceituar um pouco o que é ônus da prova.

Ônus da prova é um conceito que faz parte da terminologia do Direito e que serve para indicar que a parte que detém a responsabilidade de produzir provas é aquela que acusa, ou seja, o polo ativo. Se alguém for a juízo para fazer uma acusação que não pode provar, ou que essa prova constitua ilegalidade, verá o juiz julgar inepta sua causa, e não será dado andamento ao feito. Um dos principais axiomas do Direito diz que ninguém será considerado culpado sem que se prove, e seu corolário diz que é melhor ver um culpado inocentado do que um inocente recebendo o encargo de uma culpa que não tem.

O ônus da prova existe para que não se diga que alguém é culpado por um ato qualquer porque é feio, bobo ou chato – ou pior, por conta de sua cor, nacionalidade, gênero, preferência sexual, posição política, religião, time de futebol, etc. É necessária a materialidade do que se diz – não posso acusar alguém de ser ladrão, por exemplo, se não tiver fotografias, testemunhos, posse da res furtiva ou outra coisa qualquer, mesmo que seja verdade.

Acontece que, em alguns sistemas jurídicos, e em alguns casos específicos, a lei prevê a inversão do ônus da prova. No caso específico do Brasil, esta inversão é prevista pelo Código de Defesa do Consumidor. O espírito adotado na elaboração desta lei parte do suposto que o consumidor está no polo mais frágil da relação de consumo. Imagine, por exemplo, uma causa em que conste você contra um dos grandes bancos do país. O CDC supõe que dificilmente você conseguirá fazer frente à instituição guerreada, que possui em seus quadros economistas, contadores, advogados e outros ofícios em profusão, enquanto tu tens unicamente suas razões e, no limite, um advogado. O poder de fazer cálculos e alegações está todo do lado mais forte. Por isso, o juiz, em face da hipossuficiência do consumidor e da verossimilhança de suas alegações, pode inverter o ônus da prova, fazendo com que o banco do exemplo tenha que provar sua inocência.

Mas não é só no Direito em que o conceito de prova é central. Também a Ciência somente se explica através da obtenção de provas e de testes de resistência delas, em um processo hoje conhecido como falseabilidade (já falei sobre isso, leiam aqui). Todo o processo científico sério é seguido de uma série de publicações em revistas especializadas para teste e apreciação dos pares, incluindo críticas, corroborações, novos testes e novas publicações. Tudo isso se dá em cima de produção de provas. Como a Ciência tem uma necessidade maior de acuidade, não se aplicam inversões, como ocorre com o Direito. E, como tal, a responsabilidade de quem informa a existência de um novo sistema planetário, ou de uma nova droga para combate ao câncer, ou da criação de um novo explosivo, ou da descoberta de uma espécie animal desconhecida é provar. A inversão do ônus da prova é aplicável no caso em que o cientista quer que a prova recaia sobre seus críticos, e não sobre si mesmo.

Sim, isso existe. Florais de Bach, magnetização de água, pulseiras elétricas, energia pendular e outros apetrechos podem até funcionar, mas não há base científica para justificá-los. Pode ser que funcionem de fato, mas não há uma descrição dos seus mecanismos de atuação. Podem funcionar como placebos, podem ter algum efeito químico totalmente desligado de explicações energéticas, mas, em geral, os seus adeptos deixam o encargo de provar a ineficiência dos métodos a quem se contrapõe a eles, o que é errado. Tanto é verdade que não há reconhecimento acadêmico nem chancela governamental a esses métodos terapêuticos. Espera-se pela prova, que, em geral, os defensores não querem/não podem produzir, mesmo se arrogando a qualificação de cientistas.

Como se pode deduzir, Ciência sem prova dá uma aura de transcendência aos “princípios ativos” que o movem, e aqui chegamos à colisão Ciência X Religião.

Há uma guerra constante entre ambas. E aqui temos o mais clássico dos casos de inversão do ônus da prova aplicado ao discurso – a Ciência diz que a presença de Deus não pode ser provada, portanto Deus não existe; a Religião diz que a ausência de Deus não pode ser provada, portanto Deus existe (estou fazendo uma generalização, pessoas – há cientistas que acreditam em Deus e há religiosos que tentam aplicar sua crença à Ciência).

No meu entender, aqui há um grande erro, de parte a parte. Prova é algo mais intimamente ligado à Ciência e ao Direito do que a outras áreas do conhecimento humano. A própria Filosofia se baseia mais na especulação do que na prova, e por isso mesmo caminha na senda mais dúbia do conhecimento incerto. A Filosofia está mais na base, por isso é mais livre. Aqueles raciocínios que formam alicerces para teorias científicas acabam por permanecer. Os demais, ou morrem ou vão para outras áreas.

Ônus da prova aplicado à Religião é uma armadilha, já que esta se vale da captação das intuições individuais, e não de provas em seu sentido estrito. A percepção das divindades assemelha-se à experiência do tempo, conforme descrevi neste post, mas acho interessante dar um revisãozinha.

Temos três pessoas em um só veículo, viajando para o mesmo lugar. Para uma, a viagem é tremendamente agradável, com paisagens belas e novidades a cada quilômetro. Para outra, é a repetição de um mesmíssimo itinerário feito inúmeras vezes, um mesmo tédio. Para o terceiro, há uma enorme expectativa não no trajeto, mas no destino, parecendo não chegar nunca. O tempo de viagem é rigorosamente o mesmo, mas a maneira como cada um intui seu decurso é totalmente diferente. Para o primeiro, o tempo voou; para os outros dois, se arrastou. A mesma diferença de percepção se dá na música: alguém pode achar triste uma música, enquanto outra pessoa nem de perto acha isso. Idem para a noção de divindade – cada um sente a presença do transcendental de uma maneira diferente. Pode-se ver a divindade nas coisas, fora delas, nas pessoas, ou em lugar nenhum. Religião está fora do campo da prova. Discutir isso é perder tempo.

Coisas que não podem ser provadas são, portanto, o principal objeto da inversão do ônus da prova. E esta falácia acontece quando se tenta deslocar o dever de provar àquele que não tem esse encargo. Exemplo: se eu digo que as pirâmides foram construídas por seres extraterrestres, preciso dar minhas razões. Se elas não incluem provas, ficam no campo da especulação, e é, no máximo e com muita boa vontade, Filosofia. Se elas incluem provas, preciso descrevê-las e apresentá-las, para que possam ser verificadas. Tenho que demonstrar rastros, algum objeto desconhecido, alguma correspondência geográfica, equações matemáticas, ou sei lá o quê. Posteriormente, estas provas poderão ser aceitas ou refutadas. Neste caso, tenho Ciência. O que não posso fazer é obrigar meus pares a dar contraprovas daquilo que não consegui provar. Aliás, é por isso que ciências não consolidadas (jeito tucano de dizer pseudo-ciências) publicam livros, mas não artigos em revistas de Ciências, já que a publicação de livros depende de capacidade de vender, e não de aprovação do meio acadêmico. Estou preparando um texto em que falo melhor sobre o tema publicação.

E finalmente podemos falar do caso do chiniqueiro (xiniqueiro? xeniqueiro? cheniqueiro? chinequeiro?). Não há provas a serem produzidas, porque é um palpite, e não uma Ciência. Aliás, como eu disse quando descrevi a falácia da mão quente, é preciso muito cuidado quando se for aplicar estatísticas (uma Ciência) para tentar deduzir um resultado onde o imponderável está presente. Portanto, a minha questão inicial é totalmente imprópria para fins de inversão do ônus da prova, simplesmente porque não há prova, mas um prognóstico.

Recomendação de leitura:

Já que falei sobre Direito e provas, recomendo um livro incrível. É uma obra espectral, carregadíssima, onde o protagonista só sabe que está sendo alvo de uma acusação, e, por mais que tente descobrir as causas, é colocado em um torvelinho inexplicável, onde a realidade não faz sentido em momento algum. Um clássico.

KAFKA, Franz. O Processo. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

Agradeço à minha Mimi pelas mãozinhas prognósticas.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 6º tomo - O tu quoque (apelo à hipocrisia)

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas

Vou contar uma historinha – grande novidade – que aconteceu quando eu trabalhava em uma metalúrgica na minha já longínqua juventude. A tal empresa era uma então bem sucedida fabricante de máquinas para trabalhar metais (prensas, guilhotinas, tesouras mecânicas, calandras, laminadores) e possuía, na época, mais de 500 funcionários. A legislação obrigava, portanto, a presença de um médico especialista em medicina do trabalho, que no nosso caso, tratava-se do Dr. Yosuke, chamado de “Doutor Hiroshi” pelo corpo popular. Figura bastante peculiar, o Dr. Hiroshi tinha métodos razoavelmente inesperados de clinicar. Em alguns casos, uma cantilena bastante canastrona era o suficiente para que um chorão ocasional tivesse seu atraso abonado. Em outros, febres de 40 graus eram insuficientes para acometer a piedade de nosso caro oriental.

Tá bom, vou prolongar e contar um fato que me envolve, junto à intercessão do já citado médico. A coisa toda é a seguinte: tinha nesta mesma empresa uma telefonista chamada Vânia, que aumentava sua renda vendendo toda sorte de badulaques, contando aí potes de doce de leite, daqueles de um quilo. Como o preço era razoável e a garota era gente boa, comprei dois vidros: um contendo doce de leite puro, outro misturado com banana.

Chegando em casa, após trabalho e escola, abri um dos potes para constatar a qualidade. Meu pai, era coisa de primeira linha! Ponto correto, açúcar na quantidade exata, consistência perfeita... Imprudente e inexperiente, consumi UM VIDRO INTEIRO, de uma só vez. Não, não foi um vidro inteiro, foram dois meios vidros, o que dá na mesma.

O resultado foi uma diarreia histórica, daquelas de fazer suspeitar contaminações pelo ebola. Só que esta foi se desenrolar apenas na manhã do dia seguinte, pouco depois do início do expediente. Para vocês terem uma ideia, ganhei o agradável apelido de “Chafariz” neste dia, por motivos óbvios e para desprazer não só meu, mas do Esfola Gato, faxineiro da casa, e que teve de se encarregar dos meus resíduos (peço desculpas, não lembro seu nome de batismo).

Acreditem se quiser, mas precisei passar QUATRO vezes no Dr. Hiroshi para que ele acreditasse em mim e me liberasse. Recomendou primeiramente muita água, depois um comprimido de Colestase, depois falou que eu precisava ter paciência. Na última, inclusive acompanhado do chefe do RH, meteu seu jamegão no atestado e me dispensou. Precisei pegar um táxi para chegar em casa a tempo da próxima sessão... Blergh!

Tudo isso colocado, para perfeita compreensão do naipe de nosso médico, lembro-me do dia em que fui procurá-lo por estar acometido de uma gripe muito forte. Auscultou meu peito, deu umas porradas nas minhas costas (ele adorava fazer isso), passou um comprimido qualquer e me recomendou muito seriamente que eu parasse de fumar.

Acontece que nosso sui generis doutor era fumante contumaz, daqueles de acender um cigarro na guimba do outro. Sua pobre enfermeira, aliás, era uma das maiores fumantes passivas que já conheci, porque seu consultório era pequeno e abafado, gerando uma névoa de fazer inveja à neblina da interligação Anchieta-Imigrantes na visibilidade e a qualquer casa de bilhar clandestina no cheiro. Como uma maria-fumaça dessas pode aconselhar alguém a parar de fumar?

Pode, e deve. Suas atitudes não tem nada a ver com seu conhecimento. Ele é um médico, conhece os efeitos do vício, bem como os malefícios à saúde, e deve prescrever a abstinência aos seus pacientes, ainda que ele mesmo pratique a ação que recomenda evitar. Não é uma atitude hipócrita, como pode parecer a princípio.

Combater o argumento do Dr. Hiroshi desta forma é apelar para a hipocrisia, com uma falácia informal conhecida pelo nome técnico de Tu Quoque (você também, em latim). Este nome é utilizado por causa do famoso fato histórico da morte de Júlio César, no senado de Roma. Como se sabe, um grupo de senadores conspirou para matar o imperador, o que foi levado a cabo. Dentre seus executores, encontrava-se Brutus, a quem Júlio César nutria um sentimento de confiança paternal. Ao ver dentre os traidores o seu amado pupilo, pronunciou a frase que se imortalizou no tempo: “Tu quoque, Brutus, fili mi?”. Em bom português: “Até tu, Brutus, meu filho?”. Desta forma, Brutus ficou marcado como um sinônimo de hipocrisia.

É uma falácia de dispersão, aquelas em que desviamos o foco do argumento ao invés de combatê-lo por conta de algum defeito lógico ou factual.


Todos nós já tomamos dedo na cara, acusando-nos de hipócritas

Na verdade, esta falácia é um tipo especial do argumentum ad hominem, já analisado neste espaço (veja a lista completa de posts já publicados). No caso anterior, acusamos o adversário de algum defeito pessoal. Neste caso, diz-se que o interlocutor é incoerente por ele mesmo praticar aquilo que combate, ou não praticar aquilo que defende. Em resumo, é uma síntese daquela famosa frase: “Faça o que eu digo, não faça o que eu faço”. 

Um exemplo terrivelmente frequente se dá no âmbito das discussões entre os defensores dos direitos dos animais e seus detratores. Quando alguém levanta a questão das pesquisas realizadas com a utilização de animais, colocando-se em posição contrária, imediatamente temos a seguinte reação:

“Na primeira dor de cabeça, já engole uma Aspirina... Como pode ser contra a utilização de animais em pesquisa?”.

Onde há erros nesse argumento? Em primeiro lugar, temos uma simplificação que seria ingênua, se não fosse a acusação imiscuída em si. E, principalmente, a resposta não argumenta sobre a afirmação feita. Pode-se dizer uma série de coisas: que os testes são obrigatórios por lei, que são necessários para a correta condução da pesquisa, que a vida de um animal não tem o mesmo valor que a de um ser humano, que as alternativas de pesquisas são insuficientes e ineficientes, uma série de coisas. Desta forma, concordando-se ou não, temos uma contra-argumentação. Mas dizer que o interlocutor é hipócrita tira todo o foco da discussão.

(Em tempo, estou na fase inicial de preparação de uma postagem onde me posiciono com relação às pesquisas científicas que envolvem a utilização de animais. As colocações do presente texto são meramente ilustrativas, por constituírem um bom exemplo).

Mas o tu quoque é sempre falaz? Não necessariamente. A primeira observação é que mesmo um mentiroso pertinaz pode ter seus momentos de veracidade, mas me parece evidente que os critérios para avaliar suas razões devam ser mais rigorosos. Ou seja, é preciso ligar o “desconfiômetro” para o argumento de alguém que não pratica o que diz, mas sem se esquecer de que isso não é o suficiente para invalidar o argumento. A chave para entender esse tipo de falácia é que o argumento não carece de lógica, mas de ética. Se alguém disser que não gosta de bebidas alcoólicas no exato instante em que faz um brinde, há algo errado não só com a pessoa, mas com a própria declaração, que é evidentemente falsa.

Recomendação de leitura:

Não é propriamente um texto em que se identifiquem apelos à hipocrisia com facilidade (apesar de existir algo semelhante), mas é uma bela peça literária e que traduz a raiva e indignação do escritor francês Émile Zola, principal escritor da escola naturalista, com o desenrolar do chamado “caso Dreyfus”. Rapidamente: um oficial francês de origem judaica, Alfred Dreyfus, é acusado de traição pela suprema corte, em um processo recheado de vícios e inconsistências, conduzido secretamente, e que resultou na sua condenação. Pelo que se pode concluir, o elemento motivador foi a xenofobia e o racismo. Um segundo julgamento foi realizado, tendo em vista um conjunto probatório da inocência exuberante, mas a decisão foi mantida, o que levou Zola a redigir um artigo denominado J’accuse, que foi publicado na primeira página do jornal L’aurore, e que se tornou célebre por seu conteúdo mordaz e iracundo. Tal artigo causou problemas a Zola, o que ele mesmo já previa no próprio texto. Vale a pena ler, é curtinho e fácil de achar. Está contido no livro abaixo:


ZOLA, Émile; BARBOSA, Rui. Eu acuso! e O Processo do Capitão Dreyfus. Organização e tradução de Ricardo Lísias. São Paulo: Hedra, 2007.

Agradeço à Natália e ao Santiago por me deixarem utilizar a fotografia do dedo na cara.