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quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A teoria do gomo da mexerica

Olá!

Já perceberam que as pessoas costumam se estapear por motivos banais? Quando vemos uma briga de bar, daquelas que podem terminar em morte, quase sempre o estopim foi alguma discussão do tipo futebol, infidelidade, adjetivos maternos pouco recomendáveis e outros motivos irrelevantes. Quando os envolvidos são do sexo feminino, o problema é o mesmo, porém deslocado para motivos conjugais (extra, para ser mais preciso), pequenos desencontros informacionais alheios, e via discorrendo. Mas há motivos ainda menores, como, por exemplo, um pedaço pequeno, já inútil, mas muito cobiçado, de plástico-bolha...

Sim, já vi brigas por causa de um pedaço de plástico-bolha usado. Que tipo de fascínio um detrito desta ordem pode exercer nos seres humanos para que eles se voltem as costas mutuamente, apenas e tão somente porque 51% das bolhas ficaram disponíveis para um, e apenas 49% para o outro?

O encanto diante do plástico-bolha é tanto que encontrei, em uma rápida pesquisa na internet, dois artefatos curiosos: um aparelho chamado “ploc-ploc” (olhem neste endereço) que se auto-proclama um plástico-bolha infinito, pois as bolhinhas se enchem novamente após os estouros, e há o plástico-bolha digital (experimentem aqui), que expõe um quadrado de suculentas bexigas disponíveis para explodir com o ponteiro do mouse. Sem dúvida, há gente com tempo no mundo...

Meu plástico-bolha é outro. Sou capaz de passar muuuuuuuuuito tempo tornando absolutamente limpos... gomos de mexerica! Tiro fiapo por fiapo, dos mais longos aos mais curtos, até desprover completamente cada um dos gomos da fruta, buscando pela peça perfeita. Começo pela parte baixa do gomo, a mais trabalhosa. Supervisiono as laterais e retiro as eventuais fibras lá existentes. Removo a junção do alto e, em seguida, os caroços inevitáveis (há exceções, é verdade). Aí sim, com a peça totalmente isenta de “penugens”, mando a infeliz para a garganta, descartando eventualmente as peles laterais, mas sorvendo a inferior. Às vezes limpo umas quatro ou cinco de uma vez, outras vezes vou deglutindo os gomos na medida em que os limpo. Prefiro as ponkans, altissimamente fibrosas. Também gosto das recentes dekopons, uma laranja com forma de mexerica (ou uma mexerica com gosto de laranja, tanto faz). As pequenas cravo são diversão para poucos minutos, e as murcotts... Bem, não considero as murcotts mexericas.


Tangerinas, bergamotas, mexericas... Por que, hein?

Bom, há duas maneiras para ver a coisa: uma é nossa propensão a desvendar as coisas, mas com a impossibilidade de ficar com as mãos paradas. Meu falecido compadre Plínio, por exemplo, ficava extremamente feliz quando, ainda criança, ganhava de presente algo que tivesse um mecanismo, como um relógio ou carrinho de corda, não porque lhe seria útil, mas porque poderia desmontá-lo, e compreender seu funcionamento interno.

Outra coisa é que provavelmente temos diante de nós uma questão de possessividade com um objeto sem dono. O plástico já utilizado não serve para mais nada, apenas para ser estourado. Nunca vi, nem tenho notícia, de alguém comprar um metro de bolhas para estourar com o sagrado e constitucionalmente garantido direito de propriedade, somente o plástico que já cumpriu sua missão pode ser utilizado. Com a mexerica é a mesma coisa, mas aí temos a questão da reminiscência infantil. Isso porque nós pagamos (e caro) pela dúzia da precitada fruta, mas temos inscrito em nossa memória o tempo em que elas estavam disponíveis nas árvores da vizinhança (bem como goiabas, pitangas, abacates, etc.). A fruta está lá, pendurada na árvore, desprotegida e oferecida ao primeiro guloso que se dispusesse e catá-la. Essa sensação de pertença ainda permanece, mesmo que tenhamos comprado a fruta, porque o sentido do prazer em sorver o que foi conquistado a custo é maior do que o sentimento de segurança jurídica de haver adquirido legalmente o produto.

Mas há outros motivos, ao menos aparentemente. Estourar bolhas assemelha-se a técnicas de yoga. Como os esforços táteis são repetitivos e dispensam grandes demandas mentais e foco estrito, proporcionam um agradável isolamento do mundo exterior, favorecendo a meditação. Também é comum transmitir uma sensação de proteção – quando não estamos em vigília contra o perigo, algo que nasceu com nossos ancestrais. Afinal, é difícil ver alguém estourando bolhas andando nas ruas (plástico-bolha não é celular). Fazê-mo-lo sentados, em ambiente fechado, e temos com isso uma sessão de descarga de stress. Damos uma desligada nos sentidos e com isso vem a sensação de prazer. Também tem mais um fator. Um pedaço de plástico-bolha representa um objetivo, e queremos levá-lo até o fim, não deixar uma obra inacabada, ainda mais tão simples que é. Pode ser que aí entrem as brigas. Um quadradinho destes tem começo, meio e fim, mas ele é MEU, só MEU. Dividir o derivado do petróleo, no caso, atiça os instintos primevos do contribuinte, como um pedaço de carne mal repartido. Sei lá, acho que é isso, tudo junto ou separado.

Tudo isso pode ser aplicado ao desnude de meus gominhos. Também ali tenho uma sensação de relaxamento, também ali tenho uma tarefa a levar a cabo até o fim, também ali tenho o sentimento de proteção, também ali tenho a insatisfação quando alguém vem serrar minhas pequenas partículas (Ok, não nego gomos a quem me pede – basta não ser folgado). E enquanto executo a dissecação do precioso alimento, aproveito para filosofar.

E neste vai e vem de fiapos, de retirada de caroços, de gomos de mexerica levados à perfeição gastronômica, em todo esse esmero na dissecação do objeto, o cuidado para desnudar a proposição que se quer estudar, enxergo as lições do mestre francês René Descartes, um dos maiores filósofos da Idade Moderna, o pai do Racionalismo, e percebo que, de certa forma, aplico as regras de seu famoso método para dissecar o “problema” da limpeza das minhas partículas frutíferas favoritas.

Descartes vive em um tempo em que vemos a aposentadoria de um paradigma filosófico e ressurgimento de outro. Era a época do esgotamento do modelo teocêntrico da Idade Média e da nova antropologia suscitada pelo Renascimento. Tal como na era socrática, o homem volta para o centro da especulação filosófica, mas com uma roupagem diferente – a Ciência já não é mais uma possibilidade distante. Os métodos de observação e experimentação propiciam possibilidades que ficavam antes restritas à imaginação dos pensadores. Apesar disso, Descartes coloca o homem ainda mais ao centro. Para ele, não é apenas o homem o objeto a ser analisado – ele mesmo é a usina que produz esse conhecimento.

A principal percepção de Descartes é a ausência de um método que desse guia para a razão em suas especulações. Esse método é o que ele mesmo chamou de dúvida metódica, um grande clássico da Filosofia, especialmente da Filosofia da Ciência.

A frase mais conhecida de Descartes é o famosíssimo “cogito, ergo sum”, o penso, logo existo. Seu desenvolvimento derivou da implantação da dúvida como método científico e foi mais ou menos assim: apaixonado pela matemática, e incomodado com os desvios dos sentidos e com o poder das opiniões, que obscurecem o verdadeiro saber, Descartes iniciou sua investigação em busca de uma certeza perfeita. Para tanto, extremou a dúvida ao máximo, colocando entre parênteses até mesmo sua própria existência. Para matar a charada, lança mão da hipótese do gênio maligno. Esta entidade teria o poder de enevoar qualquer tipo de conhecimento, capaz de iludir o intelecto sobre a existência de toda percepção, como a visão, a audição, a memória, todas as coisas exteriores, a noção cosmológica, tudo; até mesmo o próprio corpo. Descartes passou a supor a existência de tudo isso como meras ilusões produzidas por esse gênio maligno.

Acontece que, mesmo imerso em um universo de ilusões, é preciso que se admita a existência de algo para ser iludido. Quando somos objeto da ilusão, pensamos; quando erramos em nossas opiniões, pensamos; quando fazemos um julgamento qualquer, pensamos; até mesmo quando duvidamos, estamos pensando. Há sempre algo necessário para qualquer atividade mental, e esse algo é o pensamento. Desta forma, o pensamento é prova inequívoca de existência. Existimos enquanto pensadores.

Com essa premissa de que é possível atingir alguma certeza, Descartes abandona a possibilidade de um ceticismo absoluto, que, em seu limiar, impediria a Ciência. O conhecimento deveria se apresentar a razão passando pelo crivo da dúvida cartesiana. E esses filtros são clareza, distinção e evidência. Por clareza, devemos entender, na concepção cartesiana, como aquilo que se apresenta ao espírito de maneira direta, ou melhor dizendo, sem necessidade de intermediários. Isso significa que o conhecimento não pode ser intuído como real por se “ouvir falar”, é preciso tê-lo à sua frente desnudado e sem nenhuma espécie de opinião para distorcê-lo. Por distinção, temos que pensar na ideia que se insere descolada de qualquer outra, ou seja, é preciso ser possível que todos os elementos que compõe um determinado objeto da razão sejam individuais, que sejam únicos. E por evidência, temos uma consequência direta das anteriores, da clareza e da distinção, aquilo que é inequívoco para nossas representações mentais, e com isso temos a base para nossas construções racionais.O cogito tem todas essas características, e passa a ser um paradigma para todas as demais elucubrações.

Tendo em conta essas regras para aceitar o que deve ser considerado em nossas pesquisas racionais, Descartes constrói seu método. Não vou fazer longas assertivas, até mesmo porque este método é, no final das contas, facilmente resumível. Sua composição básica é a seguinte:

1) Evidência: como disse há pouco, é preciso estabelecer se nosso objeto de estudo é claro e distinto, ou seja, se temos diante de nós um alicerce seguro para a ideia a desenvolver;

2) Análise: o fato de existir evidência não significa que a representação que temos seja simples. Se há dificuldade na compreensão direta de uma ideia é preciso que se faça a sua divisão em partes cada vez mais simples, o que permite uma melhor organização, já que a ideia dividida em “módulos” permite a elaboração de um rearranjo cada vez mais vasto e, por conseguinte, com melhores possibilidades de entendimento;

3) Síntese: uma vez dividida a representação, em tantas partes quantas forem necessárias para sua compreensão, temos elementos que nos permitem reorganizá-la adequadamente. A síntese é a reconstrução do objeto do pensamento já devidamente ordenado. Esse processo deve ser considerado levando em conta a utilização de suas partes mais simples, agregando seus significados em conjuntos cada vez mais complexos, até a abranger a totalidade do seu significado.

4) Enumeração: trata-se de uma revisão de todos os processos anteriores, com a reanálise de todo o raciocínio aplicado a casos que possam levar a desvios do resultado geral. Perceba-se que o método, de certa forma, é circular, porque a enumeração pode levar a novos resultados inconclusivos, que deverão novamente ser injetados nos critérios de verificação.

E com isso temos um método que deixa seus rastros nas Ciências até os dias de hoje. Aplicado às mexericas (agora em tom de brincadeira), tenho por evidente o objetivo de descascar e deixar perfeitos os gomos da fruta, verificando as possibilidades de trazer máximo prazer ao meu paladar. Para tanto, faço um processo de análise, que inclui retirar a casca, isolar os gomos, descartando os menos saudáveis, de extrair as fibras uma a uma e de ter todos os aproveitáveis diante de mim. Após isso, reúno todos em meu prato, já agora com o nome de sobremesa (sua síntese). E, por fim e por perfeccionismo, reviso todos, para ver se não escapou nenhum fiapo, se as películas laterais estão soltas e se todas as sementes estão devidamente removidas. E lá vão meus cartesianos frutos carnosos do tipo baga goela abaixo...

Poxa, tudo isso num gomo de mexerica? Pois é, a Filosofia é assim...

Recomendações de leituras:

Renê Descartes discorre sobre seu método nos seguintes livros;

DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
________________. Meditações Metafísicas. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Pequeno guia das grandes falácias – 1º Tomo – Uma introdução

Olá!

Conforme havia prometido neste post, inicio uma pequena série sobre as falácias, estas danadinhas que insistem em nos enganar, e que são tão utilizadas nos discursos de nossas ilustres autoridades políticas, em especial nos tempos de eleições.

Muito do que nos é apresentado como argumentos
 válidos nada mais são do que falácias

As falácias pertencem ao campo da Lógica e da Filosofia da Linguagem. Desta última, gosto bastante, mas com relação ao estudo da Lógica... Bem, confesso que é meu ponto fraco. Tabelas-verdade, notação formal, transposição, regras de inferência, não são bem minhas preferências, mas foi justamente com o estudo das falácias que eu compreendi melhor essa parafernália toda. E comecei a encará-las com menos repugnância (talvez até um pouco de admiração). Por isso, acho que vale a pena tratar do assunto.

Mas... o que é uma falácia?

Falácia é um termo oriundo do latim fallere, que significa faltar. No caso, com a verdade. Uma falácia é um argumento construído de tal forma a dar impressão de ser verdadeiro, mas que, na verdade, possui em si uma tentativa de ludibriar o interlocutor. Enfim, uma falácia nada mais faz do que lançar mão de defeitos da linguagem, como os paradoxos, os duplos sentidos e outras coisinhas mais.

As falácias, falando bem basicamente, podem ser de dois tipos: formais e informais. Vamos falar um pouco da questão da formalidade, com o mestre Aristóteles.

Aristóteles é uma espécie de “padroeiro” da Lógica. Não que seus antecessores não tenham se ocupado com a retidão do raciocínio, mas é com ele que pela primeira vez temos uma sistematização do pensamento de modo a torná-lo mais matemático, a se preocupar com a forma com que deve ser disposto. A ferramenta dessa lógica formal é o silogismo.

O mais clássico de todos os silogismos é aquele que nos é apresentado como exemplo inicial em todo manual de introdução à Lógica: a questão da mortalidade de Sócrates.

Todo homem é mortal
Sócrates é homem
Logo, Sócrates é mortal

Este silogismo está bem estruturado. Possui uma proposição universal (todo homem é mortal), que chamamos de premissa maior, aquela em que cabem mais coisas; possui uma proposição particular (Sócrates é homem), denominada premissa menor, ou seja, aquela com menos elementos; são concatenadas através de um termo médio, comum às duas (homem), e delas deriva uma conclusão (Sócrates é mortal). De uma articulação antecedente (as premissas), extraímos um consequente, que é a conclusão.

Pois bem. Esse conjunto de proposições que remete a uma conclusão é chamado de argumento. Quando esse argumento está bem formulado, ou seja, há coerência interna entre as premissas e a conclusão, podemos dizer que ele é formalmente válido. Vejamos outro exemplo:

Alguns homenzinhos verdes são marcianos
Eu sou um homenzinho verde
Logo, eu sou marciano

Há um erro neste silogismo. Perceba-se que as duas premissas são particulares – a premissa maior não abarca a totalidade dos homenzinhos verdes existentes no universo. Com isso, o fato de que eu seja um homenzinho verde não me torna, automaticamente, um marciano. Pode ser que eu seja de outro planeta que também tenha homenzinhos verdes, pode ser que eu esteja doente do fígado, pode ser que tenha caído uma lata de tinta verde na minha cabeça, entre outras desventuras. Quando falta ao argumento uma estruturação lógica, como no caso acima, dizemos que ele é inválido.

Quando o erro do argumento está na sua forma, ou seja, quando ele é inválido, afirmamos que qualquer utilização dele produzirá uma falácia formal.

Só que aí temos um pulo do gato. Um argumento formalmente bem construído é garantia de que ele produzirá verdade? A resposta é não.

Vejam bem. Dei dois exemplos de silogismos, um formalmente válido e outro inválido, sendo que o segundo nunca poderá receber um valor de verdade, já que tem problemas em sua estrutura (ainda que sua conclusão seja verdadeira). É como um carro sem rodas – não tem como cumprir sua função, há algo essencial a faltar nele. Carro sem rodas não transporta nada, argumento sem lógica não exprime nada. Já o primeiro argumento, o do Sócrates, que já concluímos ser válido, tem o “poder” de receber um valor de verdade, ou seja, ser verdadeiro ou falso. E mais ainda: a verdade das premissas garante a verdade da conclusão. De fato, sem prejuízo da estrutura do silogismo, podemos fazer as mais diferentes elucubrações para tornar o argumento falso (ainda que válido): Sócrates pode não ser um homem, mas uma divindade; pode não ser um homem, mas o nome de um cachorrinho de estimação; pode ser o sobrenome de uma mulher; pode ser o título de uma obra, e não o filósofo em si; pode ser que a palavra “Sócrates” represente qualquer outra coisa em uma língua diferente. Isso tudo falsifica a premissa “Sócrates é homem”, e consequentemente a conclusão, mas não invalida o argumento. Quando isso acontece, temos os casos que produzirão as falácias informais.

Há ainda um tipo específico de falácia informal que não está ligada à veracidade do argumento, mas ao desvio do foco da discussão, e ocorre quando buscamos “ajuda” externa, no mais das vezes pela falta de justificativas para responder adequadamente ao interlocutor. É o que chamamos de apelos, e são dos mais variados tipos: apelamos à força, à misericórdia, à autoridade, à popularidade, à velhice, etc., de modo a usar um subterfúgio para encerrar a questão escapando do campo lógico. Exemplo:

- É melhor você me obedecer. Emprego anda difícil.

Uma ameaça nada sutil. Neste caso, não há uma explicação dos motivos pelos quais o dever de obediência é conveniente. O que temos é uma interrupção da linha argumentativa, de forma peremptória. Apelos e ataques são extremamente comuns.

E é isso. De agora em diante, pegarei algumas das mais significativas falácias e as deixarei nuas. Não haverá ordem, nem sequência, nem um roteiro específico, e também procurarei não me alongar muito em cada uma delas, mas tentarei explicar suas origens e demonstrar como podem ser detectadas no dia-a-dia, como é o escopo deste blog.

Recomendação de leitura:

Aristóteles fala sobre a construção de silogismo como a formalização de argumentos em sua seguinte obra:

ARISTÓTELES. Analíticos Posteriores. In: Órganon. São Paulo: Edipro, 2005.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Cinema mudo, terror e política entrelaçados em um consultório veterinário

Olá!

Costumo ver os agitos da rapaziada quando algum lançamento muito esperado no cinema finalmente vai para as telas. Os filmes da franquia Marvel, as continuações do Harry Potter (há algum tempo atrás), e mesmo os desenhos da Disney/Pixar costumam mobilizar esse pessoal, que se organiza (?) em animadas turbas para invadir shoppings e suas salas de projeção, para assistir os filmes e, subsidiariamente, forrar os chãos de pipoca. Mesmo caras mais velhos, como meus colegas de serviço, volta e meia saem comentando sobre as películas que encararam no final de semana.

E eu?

Bem, não sou tão frequente nas salas de cinema. Por uma mera questão de gosto, costumo ir ao teatro no mesmo tanto de vezes que meus amigos vão ao cinema. Coisa de pelo menos uma vez por mês (às vezes duas; às vezes, nenhuma – é só uma média). Sou meio chatinho com relação a filmes (fresco seria um termo mais direto). Comédias românticas, comédias pastelão, draminhas gratuitos, filmes seriados, blockbusters em geral são prontamente descartados.

Bom, acontece que tivemos alguns problemas de ordem canina em casa (sim, estou mudando de assunto, mas já convirjo para ele novamente). Melhor dizendo, meu velho cachorro andou tendo alguns peripaques típicos de quem têm mais de 75 anos (em uma conversão de idade arbitrária), como tonteiras, cólicas e tumores nas “bolas”, o que é mais grave. No leva-e-traz à veterinária Dra. Luciana, comecei a carregar um notebook, já que a espera é longa. Como o dito consultório tem uma tevê à disposição do público presente, mas não ando com ganas de assistir novelas nem propaganda política, aproveitei para assistir a alguns filmes mudos, ao lado da indefectível Deborah, aflita tutora do precitado animal. Desta forma, não atrapalhei ninguém com ruídos para se engalfinhar com as vozes peremptórias dos atores e persuasivas das atrizes, e aproveitei para rever (não no mesmo dia, que eu não sou de ferro) “O Encouraçado Potemkim”, obra máxima de Sergei Einsenstein, “Metropolis”, do alemão Fritz Lang e... “O Gabinete do Doutor Caligari”!!!

Este último é um dos grandes marcos do cinema, que acabou ficando esquecido na poeira. E não é muito de estranhar. Realmente, se não nos colocarmos no contexto temporal, histórico e artístico em que foi realizado, nada mais poderemos fazer do que dar risadas. Mas a obra tem um grande significado. Vamos lá.

Trata-se de um filme de terror (o máximo que poderia ser chamado com os conceitos de hoje em dia é de suspense). Seu mote não está na violência extremada que o gênero ganhou atualmente, mas na pressão psicológica exercida sobre os personagens e, por extensão, sobre o público. A obra foi desenvolvida no contexto do movimento denominado Expressionismo Alemão, e esta escola está inserida no amplo conceito do Expressionismo que surgiu nos princípios do século XX. Vamos falar um pouco sobre esta escola.

Mais do que um conjunto comum de características, o Expressionismo possui uma coincidência de atitudes. Surge dialeticamente como antítese ao Impressionismo, que busca captar o instante flagrado da realidade, e ao Naturalismo, que tem como propósito demonstrar a existência determinística, fechada pelo ambiente e genética. O Expressionismo é arte intuitiva, que tem a ver com uma visão particular. Como cada indivíduo tem para si uma perspectiva da realidade, nem sempre a visão do artista diante de um determinado fato ou objeto é a mesma que temos para nós mesmos. Essa individualização dificulta a limitação de características, mas abre o leque de possibilidades artísticas. Melhor dar uns exemplinhos.

A pintura abaixo se chama “No Terraço”, traçada pelo mestre Auguste Renoir, um dos mais expressivos expoentes da escola impressionista.


Vamos notar que, apesar da sensação levemente etérea, tão característica desta escola, e que serve para dar sensação de movimento ao admirador, a cena retratada é perfeitamente factível, é um reflexo da realidade. Tudo está em seu lugar: os rostos serenos da mulher e da criança, a paisagem de fundo representado o riacho e sua vegetação, a mesa opípara, as proporções, as cores (lembrem que, no Impressionismo, a proximidade dos olhos com a tela desmascara a ilusão de ótica – a mistura se dá no cérebro de quem observa a tela, e não nela mesma. Por isso mesmo, as telas impressionistas são feitas para olhar a distância). Até mesmo a própria situação está plenamente inserida no campo do real palpável – ainda que inexistente, é perfeitamente concrescível. Uma situação absolutamente prosaica e banal – a mulher e a criança (mãe e filha, talvez), em um desjejum ao ar livre.
Agora vamos analisar e comparar outra obra: A Morte e a Donzela, do austríaco Egon Schiele, um dos eméritos representantes do Expressionismo.


Aqui, toda a suavidade e espelhamento do real vistos na tela anterior foram deixados de lado. O aspecto da obra é mais pesado. A representação dos personagens está limitada a informar que se trata de seres humanos, ou de algo antropomorfizado. Não há nenhum compromisso com o reflexo do mundo material. Não há a intenção de se demonstrar belos rostos ou belos corpos, não é o exterior que importa, é a expressão – a tradução do mundo psicológico de quem é retratado. A expressão (e por isso o nome da escola, Expressionismo) é o principal recurso para se expor o status interior, por isso ela é sempre exagerada (diria melhor: ressaltada) pelos artistas desta tendência. O objetivo é fugir do racionalismo e ultrapassar os limites da realidade. Por isso, as formas no Expressionismo são tão distorcidas e desconexas. Em suma, há realidade a ser retratada, mas ela é interna; um rosto não precisa parecer um rosto, desde que ele consiga expressar a ideia do artista através do personagem.
Ok. O diretor do Caligari, o alemão Robert Wiene, tinha um desafio. Um pintor tem ao seu dispor uma tela, pincéis e tintas que o permitem expressar livremente seus pensamentos, por mais desvinculado do mundo observável que estejam. Já o cineasta não tem um suporte tão etéreo para trabalhar – não estamos falando de desenhos animados. O que ele fez? Construiu no estúdio utilizado todo um ambiente distorcido, irregular e obscuro. Aproveitou a disponibilidade exclusiva de películas em nuances de cinza e a usou a seu favor. A maquiagem dos personagens ajuda a compor o quadro de desnaturamento, dando-lhes aspecto ora excessivamente lívido, ora coberto de penumbra. A direção de fotografia procura dar ainda mais ênfase a estes aspectos lúgubres, seguindo um jogo de distância e proximidade em aclives, escadas e telhados (elementos fortemente geométricos) de forma a dar aos diferentes planos uma situação cada vez mais caótica. A ideia é sugerir que a distorção não está no ambiente, mas no olhar de que observa.

Mas o que o filme tem de mais legal é todo o espectro histórico que está escrito em suas entrelinhas. Estamos em 1920, apenas dois anos após o término da Primeira Guerra Mundial. O mundo emerge de sua maior guerra realizada até então, e, apesar de ainda se constituir em uma guerra de trincheiras (o que será modificado a partir da Segunda Guerra), a tecnologia dos armamentos e o surgimento do avião como arma bélica expande o poderio mortal a níveis até então inimagináveis. A paz estabelecida pelo armistício já nasce oscilante, derivadas da posição draconiana do Tratado de Versailles, que impôs penalidades duríssimas aos vencidos alemães. Wiener consegue vislumbrar tanto a reação da Alemanha quanto o modelo político que será adotado na mesma, e isso pode ser percebido pelos nomes dos personagens que protagonizam o enredo – Caligari e Cesare. A vingança viria da Itália.

De fato, o fascismo nasce e começa a tomar forma através da ação de Benito Mussolini. Em 1919, ele adere ao nacionalismo exacerbado que estava latente na Itália e o molda para a formação de um Estado fortemente repressor. Ele começa a fazê-lo através da criação dos fasci de combattimento, feixe de combate. Esse nome provém do fato de que uma vara ou caniço, isoladamente, são frágeis e fáceis de quebrar. Mas, uma vez reunidos em um feixe (o Estado), tornam-se praticamente indestrutíveis. É a ideia do Estado forte, uma entidade sobre a qual nada pode prevalecer. Nos dizeres do próprio Mussolini: “Tudo para o Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado”.

Ocorre que o fascismo é uma entre tantas ideologias, e já sabemos bem como elas funcionam – convencendo as pessoas de que não há outra maneira possível de fazer existir uma sociedade, e de que qualquer outra tentativa de sistema é um bloco a ser descartado, tutto intero, como dizem os italianos. Não adianta espernear: isso não é exclusivo do fascismo. Também o comunismo é assim, o liberalismo, a democracia cristã, o anarquismo, a monarquia e outros tantos.

A distorção das formas, nesse sentido, é aplicável à distorção das ideologias. E o enredo é o espelho tanto do terror aplicado à alienação que está a serviço da sede de poder quanto, antagonicamente, à sua resistência, simbolizada pela mudança de comportamento do pré-fantasma Cesare.
Então... Cesare é um zumbi, um indivíduo que está hipnotizado e que representa o povo ideologicamente manipulado e que se prontifica a servir seus mentores cegamente, o que faz. Vejam só: o dr. Caligari é um pressuposto adivinho que prediz a morte de personagens, que realmente ocorrem. Na medida em que seus vaticínios se confirmam, mais e mais as pessoas passam a acreditar nele. Cesare, provavelmente, é aquele eu mais acreditou no bruxo, a ponto de ter todos os seus movimentos controlados por ele. Aqui também temos um belíssimo vislumbre. Vejamos qual.

Sempre que analisarmos a história da 2ª Guerra Mundial, veremos que a Itália era o flanco mais frágil do Eixo que compunha com a Alemanha e o Japão. Pelo relato dos italianos que chegaram ao Brasil (incluindo alguns parentes meus), ao contrário dos outros dois países, o povo italiano NÃO queria a guerra.

Não sei dizer bem o motivo. Talvez porque muitos desejassem a manutenção da monarquia, ou pela existência de uma tradição anarquista, ou pela unificação ainda frágil do Estado, ou por outro motivo que eu ainda não tenha conseguido detectar, o fato é que por várias vezes Hitler precisou enviar suas tropas em auxílio à Itália. Quem melhor se identifica com o Cesare de Wiener são justamente seus compatriotas, que levaram os combates da 2ª Guerra Mundial até o fim, e aqui temos a melhor justificativa para a utilização do gênero terror: o terror das mortes no front, o terror dos prisioneiros que são arrancados de sua terra, o terror dos povos exterminados em genocídio, o terror diante da derrota que se avizinha e via discorrendo.

Mas eu disse que o filme é também uma metáfora à resistência. Uma das determinações de Caligari a Cesare é que ele assassine a bela Jane. No filme, Cesare tem um insight que o impede de levar a cabo sua tarefa: a beleza de sua vítima. Este mesmo insight revela o limite da ideologia. Há um momento em que ela se torna tão absurda que cai em descrédito, como cai o muro de Berlim, as ditaduras latino-americanas, as dinastias medievais, entre tantas.

Por final, o Caligari que reaparece vivo como médico do hospício é uma advertência: o mal nunca some eternamente. E isso explica um pouco do sucesso e da validade do gênero terror. Sentir medo é inerente à espécie, e assistir a um filme de terror é a oportunidade que temos de sentir um “medo seguro”, da mesma forma que ocorre com uma turnê pela montanha-russa, por exemplo. Os níveis viciantes de adrenalina sobem à estratosfera, e sentimos imenso prazer com esse narcótico natural. E com isso, nosso genial Wiener funde a atração pelo medo com uma inteligente prospecção política.

Pois é isso mesmo. O Gabinete do Doutor Caligari pode ser interpretado como uma metáfora da formação de um regime que leva à guerra, lançando mão do terror e da loucura. Um bom filme, com enredo interessante, em que precisamos colocar os “óculos históricos” para bem compreender, tanto em seu sentido estrito, que, conforme se diz no seu início, é a retomada de uma lenda do século XI, quanto pelo seu campo simbólico, todo carregado pela força de prenúncios que, infelizmente, acabaram por se concretizar.

Recomendação de filme:

É um filme muito fácil de se assistir, já que está em domínio público, penso eu. Pelo menos está disponível no YouTube:

WIENER, Robert. O Gabinete do Doutor Caligari. Alemanha, 1920. Filme. P&B. 71 min. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=VU-wIeUw1C8>. Último acesso em 06.11.2014.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Arte restrita, arte expandida (Sobre macarrão com alcaparras)

Olá!

Sempre parto dos relatos de minhas andanças para desenvolver os temas a que me proponho neste espaço. Desta vez, vou abordar algo um pouco mais suave e menos polêmico: a culinária. Afinal de contas, comer pode parecer meio prosaico, mas é dessas tarefas mais essenciais que se alimenta a Filosofia.

Há um tempinho atrás, vagávamos eu e a patroa em nosso corre-corre quotidiano quando um sinal orgânico nos deu um alerta: vocês estão com fome! Parem imediatamente e procurem algo para comer. E que seja rápido, ainda tem muita coisa a fazer. Bem, achar lugar para comer não é exatamente um problema em nossa gastronômica metrópole.

Encontramos absolutamente ao acaso uma casinha que fica no Largo Nossa Senhora da Conceição. Para quem não sabe, esse logradouro fica no exato encontro entre os bairros da Liberdade, Glicério, Cambuci e Aclimação. Assim como alguns outros poucos locais do centro, e, na minha humilde opinião, mais do que qualquer outro, a redondeza assemelha-se a um bairro, mas daqueles bem pacatos, com muitas casinhas antigas e uma igreja a catalisá-los. Olhe para todos os lados e você verá prédios e avenidas, cinzentos e lotados todos. Ali, não. A praça central ajuda no aspecto entre lúdico e provinciano. E não deve ter muito mais que um quilômetro de distância para a Sé. De casa, posso ir a pé sem muita dor.

O nome do lugarejo: Santa Ceia. Bem a propósito. Chamou atenção a singeleza do estabelecimento. Um sobradinho daqueles que remetem às influências dos muratori italianos nos bairros operários. Lembra um pouco a Mooca ou o Bixiga. Imagens falam mais que palavras:


Eles tiveram a sabedoria de manter o estabelecimento em seu interior com o aspecto da fachada: uma casa da tia gorda, ou da nonna, que nos recebe com lautas quantidades de calorias. Dá vontade de fuçar na geladeira ou de puxar o gato pelo rabo, entre outras traquinagens. Vejam se não é verdade.


Um singelo macarrão regado ao molho de tomate esmagado, com alcaparras e azeitonas, e um conjunto coxa+contracoxa assados compuseram um prato para comer rezando, para consubstanciar seu religioso nome. Uma peça de arte. Eis os reles vestígios do que um dia foi um prato sobejamente preenchido:


Ganhou dois fregueses. Eis um dos grandes privilégios de morar na cidade de São Paulo. Praticamente em todas as cidades do mundo há um ou alguns lugares onde a prática gastronômica merece receber o estatuto de notável. Em São Paulo, esse fenômeno se multiplica a cada esquina. Muitos dos melhores templos da religião do bem comer são simplíssimos, como é o caso da recém-mencionada Santa Ceia, da Esquina do Fuad e sua chuleta com pasta d’alho, do Garimpo do Interior e suas mineirices, do extraordinário (EXTRAORDINÁRIO) pastel de palmito do minúsculo Senhor dos Pastéis, da excelência árabe atingida pelos judeus do Jacob (!!!!), do simpático bolinho de abóbora com carne seca do Chopp Escuro, ah... Chega que eu estou babando no teclado. Ah, sim!!! Tem as cavacas das pretas velhas da palhoça do Parque da Água Branca. Não posso esquecer-me das bás e seu café forte.

A comida paulistana é distintivo de qualidade até mesmo quando ela não é o prato principal. Lembram quando eu falei sobre a exposição de três jovens vegans (neste post)? Pois então. Foram servidos acepipes aos transeuntes que ali passavam do melhor bom gosto, e que serviram para desmistificar todo o preconceito que há contra a comida vegetariana, que é saborosíssima quando confiada a mãos hábeis.

Efetivamente, e sem esquecer que tudo tem um lado comercial, evidentemente, parece que o paulista faz comida de primeira por boa educação (o que não é verdadeiro para outras circunstâncias). As pessoas devem procurar as casas por questões afetivas, a comida delas deve fazer parte das suas histórias. Por isso mesmo, não vejo nada de mal em recomendar esses endereços todos, e peço desculpas para aqueles outros meritórios e não indicados, seja por esquecimento, seja por desconhecimento, seja para não tornar este texto sacal e com foco perdido. Mas o segredo é tratar dos pratos como o pintor lida com seus pincéis.

E aí eu me pus a pensar. Se a culinária exige talento e aguça os sentidos, não será ela uma legítima representante do panteão artístico? Quais são os limites da arte? Ou melhor, o que podemos chamar de arte? O talento é o bastante para nominarmos um artefato de nosso dia-a-dia como objeto de arte? Vamos ver.

Enxergo duas definições válidas para a arte, e cada uma delas conduz a uma conclusão. Entendo a arte como a significação de uma ideia ou como a concretização de um talento. Mas há algo que os catedráticos gostam de diferenciar, e tipificam atividades de cunho estético, tornando algumas legítimas e outras nem tanto. Vou chamar uma de “arte restrita” e outra de “arte expandida”. À primeira, considerarei o que habitualmente se chama de arte: escultura, música, literatura, etc. E à outra, vou pinçar aquelas que são mais tangíveis e visíveis no nosso dia-a-dia, como é o caso da macarronada em questão.

Uma das diferenças que poderíamos estabelecer entre as duas visões que lançamos sobre a arte está calcada no alcance que a Estética (enquanto visão filosófica) tem sobre cada uma delas. E, neste caso, temos uma boa notícia para a arte expandida: a Estética tem tudo para considerar ambas como autênticas obras de arte.

Vamos analisar o que nos dizem as melhores definições sobre a Estética como disciplina, ou melhor dizendo, área do conhecimento filosófico.

Para começar, precisamos fazer uma pequena porém necessária triagem. Se falarmos em Estética pura e simplesmente, vamos de pronto imaginar as clínicas que pululam por aí, prometendo e nem sempre entregando beleza prét-a-porter para as mulheres ávidas – e muitos homens também – de alcançar o alquímico desejo da longa vida mesclada a um impossível espelho de Narciso. Não, Estética não é isso. Mas há um ponto de contato que explica o uso do nome.

Aisthesis: palavra grega que derivou para o português como Estética. Esta palavra significa a faculdade de conhecer através dos sentidos. E, claro, o que mais nos afeta é a beleza. Bela música para ouvir, bela tela para ver, belo acepipe para saborear. Mas este conceito é extremamente subjetivo, já que está alicerçado nas nuvens: a capacidade de imaginar, de sonhar, de encontrar formas perfeitas. A Estética versa sobre o belo, mas não inclui apenas a Arte em seu escopo. Afinal, a natureza tem um sem número de objetos belos, que não passaram por mãos humanas, e não dependem da aplicação do seu talento. Para algo entrar no terreno da Arte, já é preciso que alguma manufatura tenha ocorrido.

Essa manufatura inclui em si não só o talento, mas a técnica. Nos primórdios, o conceito de arte não indica apenas o criar, mas o saber fazer. Arte e ofício eram praticamente sinônimos. O artista é aquele que sabia aplicar sua techné na confecção das obras.

Essa aplicação da técnica era, e ainda é, coisa para poucos. Os artistas mais notáveis são aqueles que conseguem exacerbar sua arte através dos tempos, e torná-la marcante em qualquer lugar onde possa ser compreendida.

Ok, então. Se temos todas essas definições seguras sobre a Estética, com que cara vamos excluir a arte expandida do seu universo? Há um pulo do gato para explicar razoavelmente esse egoísmo das belas-artes, e responde pelo nome de elitismo.

Quando do surgimento da ideia da Estética como conhecimento do belo, tínhamos como seus cultuadores, na maior parte das vezes, os membros da aristocracia, já que o povo estava mais ocupado em puxar enxada.

A classificação de arte utilitária e da arte popular como subalterna ou desqualificada tem a ver com essa posição das elites, de reservar para si o que há de melhor em todos os estratos, e a Arte por si mesma, a Arte por excelência, não pode ser distribuída a quem pretensamente não tem envergadura intelectual para concebê-la.

Não podemos estranhar tanto essa atitude da burguesia nem achar que não faríamos o mesmo, considerando-nos os melhores humanistas e os grandes democratas. Não é verdade que muitas vezes achamos que o povo não sabe votar? Ou que não tem condições para exercer sua própria cidadania, tendo a necessidade constante de ser tutelado? Se pensamos nisso, mas não fazemos nada contra esse estado de coisas, então agimos identicamente à aristocracia. Primeiramente porque achamos impossível que o povo mais excluído tenha mesmo condições de dar um salto de qualidade em seu conhecimento. E depois porque queremos dar manutenção ao status quo do qual fazemos parte.

Os principais especialistas no mundo das artes consideram que elas devam se justificar por si mesmas, ou seja, sua existência está vinculada e se basta unicamente no propósito de ocasionar prazer. Sendo assim, qualquer função utilitária da obra de arte a desqualificaria como tal. Portanto, atividades que envolvam os sentidos ou exijam talento, mas que tenham objetivos práticos, estariam fora do contexto das “belas artes”, a quem chamei neste texto de arte restrita. Eis que atividades como a moda, a oratória, a perfumaria, o design, a maquiagem, a culinária, a tapeçaria e tantos outros, por terem objetivos que vão além da mera função artística, estariam em situação menos nobre, e excluídas deste escopo.

Há um grande problema, no entanto. Essa parece uma tentativa de tornar a arte justamente o que ela não é – algo definido, canônico, prescrito, regulamentado – uma Ciência. Há algo neste tipo de descrição que tira a espontaneidade da atividade artística, e a Arquitetura vira Engenharia, a Literatura vira manual, o Teatro vira História. Desta forma, não parece favorável dizer que a arte pode prescindir do talento. E, neste quesito, tanto as belas-artes quanto as artes utilitárias estão em pé de igualdade. Ninguém pode dizer que Rafael Sanzio não era talentoso na pintura, assim como ninguém pode dizer que Antonin Carême não sabia o que fazer com suas panelas.

Pois bem. Isolada a questão do talento, vou partir para a expressão das ideias, e ver se as “artes práticas” resistem a um confronto com essa característica. Vou usar as teses do italiano Luigi Pareyson neste imbróglio.

Pareyson é um filósofo um pouquinho subestimado, porque fez interessantes observações ontológicas e hermenêuticas, mas trabalhou principalmente com a Estética e a Filosofia da Arte. Sua principal tese é a teoria da formatividade, que diz que a obra de arte é um objeto em permanente construção. Quando o artista inicia seu processo criativo, ou seja, quando se inspira, a obra de arte já existe, independentemente de sua vida física, e isso acontece porque, ainda no seu pensamento, o artista já agrega e descarta possibilidades em seu constructo. Por vezes, a obra nem chega a nascer – quando é descartada como um todo – mas nem por isso deixa de existir como ideia, o que significa que já recebeu algum tipo de interpretação.

Esse processo é contínuo. O artista, ao escolher o suporte, interpreta qual o melhor para expressar a ideia, assim como ao optar pelas cores ou pelos instrumentos. Passa depois pela execução em si, muda de ideia, reinterpreta e adapta partes, descarta algumas, agrega outras e vai moldando seu objeto, até lhe dar forma final, o que não significa que as possibilidades da construção tenham acabado. É preciso escolher o que fazer com a obra. Guardá-la, vendê-la, expô-la em uma galeria, fazê-la participar de um evento ou destruí-la são hipóteses. Tudo isso é fruto de uma interpretação de suas possibilidades. E o processo continuará eternamente, porque o eixo de interpretação da obra pronta se deslocará do artista para o apreciador, e cada observação nova de cada um que a analisar será mais um tijolinho na constituição daquele objeto.

Bom... então ferrou! Como eu faço para interpretar um prato de spaghetti? A definição de Pareyson impossibilitou definir comida como arte!

Calma. Se observarmos bem, veremos que é possível, sim, aplicar a tese pareysoniana até mesmo ao nosso quotidiano arroz-e-feijão. Basta tirar a grandiloquência de nossa frente e pensar em um ponto menor.

Já definimos que a obra de arte deriva do talento, e que este pode ser aplicado em coisas do dia-a-dia. É óbvio que já é mais difícil – mas não impossível – para a dona de casa expressar ideias a cada vez que precisar realizar a tão famosa dicotomia arroz X feijão. Mas é que estamos pensando apenas no aspecto prático da coisa. É preciso observar também a sua teleologia.

Imaginemos, por exemplo, um jantarzinho especial, daqueles românticos, em que comemoramos um aniversário de casamento. A princípio, vamos descartar as facilidades modernas, como contratar um terceiro ou jantar fora. A comida vai ser pensada de modo a agradar o gosto de ambos os cônjuges, teremos uma entradinha básica, que vai ser pensada de forma a não causar saciedade e conflitar com o prato principal, que por sua vez vai ser combinado com um vinhozinho bem escolhido e complementado por uma sobremesa bem articulada, fechando com o habitual café ou com a sofisticada opção de um licor. Todos os talheres e porcelanas foram escolhidos a dedo e devidamente posicionados. A combinação de sabores é feliz e há música suave no fundo. O prosaico jantarzinho será recordado e comparado com anteriores e posteriores: o vinho tinto estava ideal, o fondue estava pouco espesso, mas casou bem com a tentativa de pão sovado no lugar de pão italiano – “Ah, mas por que você fez essa troca, meu amor?” – “Porque a gente tomou nosso primeiro café da manhã com pão sovado, queria lembrar disso” – Essas pequenas coisas que dão colorido na vida de pessoas específicas, e que são banais aos olhos alheios. Não há expressão de ideias? Não há interpretação de ideias? Não há Estética? Não há Arte?

É dessa forma que são feitas as coisas. Como interpretamos se um perfume é mais adequado para usar de dia ou de noite? Ora, interpretando a criação do perfumista, e adotando-a ou descartando-a, e assim por diante. E, assim, chegamos à conclusão que as coisas práticas, quando executadas com talento e quando expressam alguma ideia, podem ser consideradas obras de arte, sem dúvida alguma. Inclusive meu prato de macarrão.

Recomendação de leitura:

Pareyson é um filósofo interessante, e possui um didatismo raro de se encontrar. Isso o torna fácil de ler, o que é bom para quem não manja tanto dessa área filosófica.

PAREYSON, Luigi. Os problemas da Estética. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Solidão e sentimentos - o que pertence à ideologia e o que é inerente à espécie (ou a solidão como doença da linguagem)

Olá!

Domingo de virada do horário de verão é, pela natureza do que faço para ganhar meu pão, dia de trabalho. Por que? Bem, tenho que controlar o ajuste de algo em torno de 750 relógios de ponto, que, se não for bem sucedido, costuma gerar um belo barulho. Afinal de contas, não é muita gente que gosta de chegar em um horário e marcar ponto em outro. É bem verdade que o início do horário de verão é menos problemático – o relógio não ajustado tem um horário anterior ao estabelecido em lei e não gera atraso – mas mesmo assim não é bom que os desacertos aconteçam. E lá vou eu, para uma das salas, realizar um trabalho repetitivo e de pouco uso mental, no silêncio ocasional do centro de São Paulo. Vou com roupas leves, alguns litros de líquido (incluindo muito café) e pão com mortadela. É uma experiência, antes de mais nada, de solidão. No caso, saudável.

A pessoa solitária não é bem aceita. Sabemos muito bem que estas pessoas ganham o estatuto de esquisitões, algumas vezes atribuídos à sua timidez, outras a uma suposta soberba. Mas por que temos que pensar mal da pessoa solitária? Por que temos de considerar sua atitude como algo antinatural?

Quanto à última questão, entendo que é de fácil resposta. Sim, a solidão para o homem, no sentido de espécie, é antinatural. Mas estamos bastante longe de sermos seres “naturais”, então precisamos buscar a resposta também no campo cultural.

Vamos à minha experiência pessoal. Em uma tarde de domingo ensolarada, transitando do Largo de São Francisco à Praça da Sé por uma rua Benjamin Constant quase deserta, a habitual afilhada Renata me conta conversas que tem com um colega de escola, de quem não lembro mais o nome. Na afirmativa do gajo, os sentimentos humanos não existem; são construções ideológicas. É a ideologia impingida a uma determinada sociedade que impõe ao indivíduo seu dever de amar, de ter saudades, de suportar inveja e via discorrendo. O amigo quer me parecer mais marxista do que Marx, mas a sua tese não deixa de ser interessante. Por isso mesmo, vou calmamente desconstruí-la (o que é prova de respeito).

Em primeiro lugar, o homem é um animal. Ponto. Apesar de ser um pascaliano caniço pensante, sua condição de animal faz com que o homem tenha uma espécie de “piloto automático”, e que tenha características semelhantes a outras espécies. Isso se espelha em duas características: a existência do instinto e do atavismo.

Sobre o instinto, já falei aqui e aqui, mas vou dar um pequeno recuerdo. O instinto é uma reação imediata a uma necessidade urgente, em que é preciso ser rápido para preservar a integridade física ou mesmo a sobrevivência. Um dos textos dos links fala dos pianos que caem sobre as nossas cabeças. Outro exemplo acontece quando nos encostamos em uma panela quente. Não ficamos pensando: “Puxa, como este objeto está quente! Devo cessar o contato que tenho com ele, sob pena de que minha pele fique altamente danificada, causando enorme dor e obrigando-me a procurar cuidados médicos”. Nós simplesmente tiramos o dedo! Percebem como ser racional nessa hora traria-nos problemas? Como seria perigoso? Por esse motivo, os mecanismos evolutivos selecionaram os indivíduos com a melhor resposta instintiva e o resultado é esse que temos hoje.

Com relação ao atavismo, é um tipo de patrimônio comportamental inerente à espécie, também irracional, e que serve como um “guia” dos fundamentos das condutas humanas, e que foi sendo construído de geração em geração, até constituir o que somos no presente. Para compreender esse processo, é bom saber o que é um arquétipo – leiam mais neste post, onde eu explico um pouco da brincadeira.

A construção das disposições atávicas (proveniente do latim atavus – avô, ancestral) tem um dinamismo semelhante a um relógio analógico, ou seja, parece se mover sem se mexer (aos extremistas – pensemos em um relógio sem o ponteiro dos segundos). A inserção de cada componente no conjunto demora milênios para acontecer, e demora milênios para ser modificada, e demora milênios para desaparecer. Vamos puxar um fio do novelo e tentar segui-lo desde o começo.

Imaginemos a vida dos primeiros hominídeos. Sem dúvida, uma aventura. Inserido em um contexto violento, onde era presa fácil e corpo frágil, o homem percebeu que poderia se dar melhor se não vivesse isoladamente. Muito fraco, só em grupos as caçadas poderiam ser mais eficientes e menos perigosas. Também em grupo funcionava melhor um esquema de vigilância que evitasse o ataque de feras predadoras, já que era possível um revezamento e uma multiplicação de olhos e ouvidos. Para a manutenção do grupo, fazia-se necessário que seus membros se reproduzissem. A proximidade já existente favorecia esse laço.

O homem, também derivando da proximidade, desenvolveu paralelamente um mecanismo que permitisse a comunicação entre si, o que lhe servia tanto para a organização geral quanto para o registro e transmissão da experiência: era a linguagem. Esse mecanismo carregava consigo algo tremendamente característico do ser humano – a referência e utilização de símbolos. E é justamente esse substrato simbólico que dá ambiguidade à linguagem. Essa ambiguidade é expressa principalmente na utilização de sinônimos, nas figuras de linguagem, na variações idiomáticas e etc. Mas prossigamos.

O contato entre determinados grupos fazia com que se percebesse que alguns tinham características melhores que os outros: uns eram mais altos, outros mais fortes; uns eram mais rápidos, outros saltavam mais alto. Também era possível perceber que havia defeitos que ocorriam em um grupo que não ocorriam no outro – uns com tendência a mortes precoces, outros com dificuldades em absorver certos nutrientes. O cruzamento desses grupos fazia com que as melhores qualidades de um passassem a se unir às melhores qualidades do outro – na junção dos defeitos, a seleção natural se encarregava de dar cabo. E daí temos todo um conjunto de necessidades biológicas que se traduzem em impulsos, que não são conscientes, e que se disseminaram por toda a espécie humana.

Partindo destas informações, podemos perceber que os sentimentos meio que se “equalizam” às necessidades de sobrevivência. Nesse sentido, o medo é um sentimento necessário para que um indivíduo ou um grupo se protejam. O amor é um sentimento necessário para que exista um laço onde os homens colaborem entre si, como é o caso de um casal que precisa dar amparo à sua prole.

O sentimento, portanto, existe antes da ideologia. O que esta pode fazer é dirigir e moldar o que pode ser feito com estes sentimentos. Comparando com o parágrafo anterior, o medo representa uma segurança contra o perigo; é possível incutir ideologicamente o medo a uma determinada etnia, ou uma determinada religião, ou seja lá o que for, apresentando-a justamente como um perigo. Ou é possível manipular esse “devo amar” atávico, determinando o desvio do sentimento voltado a um grupo para algum objeto específico, como o fato de se prezar mais uma conduta moral do que outra. Mas desmobilizar o sentimento em si, não me parece possível. Isso porque somente é possível fazer valer um determinado conjunto de ideias na medida em que é possível transmiti-las, ou seja, o limite da ideologia é o limite da linguagem. E com isso concluímos: para manipular ideologicamente um sentimento, já é preciso que ele exista antes.

É por isso que parece estranha a pessoa que vive isoladamente. Fomos moldados para o gregarismo. Mas é algo muito diferente o fato de uma pessoa gostar de viver sozinha e o fato de uma pessoa se sentir sozinha. Essa diferença é absolutamente decisiva.


Quando falamos da espécie “ser humano”, precisamos partir da premissa da influência da cultura em seu comportamento. Como explanei, o homem tem a tendência a ser gregário, e todo seu escopo social parece confirmar culturalmente aqui o que foi decidido naturalmente. Mas a cultura existe exatamente para subverter aquilo que é natural. E o item cultural mais significativo de todos é a justamente a linguagem.

A linguagem é um campo tão vasto que passou a se tornar, a partir do final do século XIX, um dos itens centrais da Filosofia, e não fosse ela algo tão humano, poderíamos até mesmo dizer que o foco da Filosofia saiu do homem para a linguagem (o que não faria sentido).

A ênfase no estudo acerca da linguagem se dá através do que os filósofos chamam de “problema semântico”. E esse problema nasce na medida em que a Ciência, cada vez mais precisa e com a necessidade de expressão universal, encontra o obstáculo da ambiguidade linguística. O que significa isso? Que a linguagem precisaria ser matematizada, ou seja, ser libertada de qualquer sentido paradoxal para que as formulações científicas pudessem ter validade em qualquer lugar e a qualquer tempo.

O primeiro filósofo a tratar do tema como objetivo em si mesmo foi Gottlob Frege, mas não vamos tratar dele neste momento – não faltará oportunidade. Hoje eu quero lidar com as teses do galês Bertrand Russell.

Russell desenvolve uma teoria denominada atomismo lógico. Essa teoria diz que as expressões podem ser quebradas em fragmentos cada vez menores, até o ponto em que cada um dos seus componentes mantenham um certo sentido isoladamente, ou seja, até o ponto em que uma nova quebra destruiria o sentido do fragmento – tal qual ocorre com a matéria.

Para falar bem superficialmente, Russell achava que existia um erro na tese hegeliana, então em voga na Europa, de que a linguagem somente poderia ser compreendida em seu todo. Essa visão holística acaba por ocultar componentes menores e mais simples, que guardam sentido mesmo que destacados do contexto global da frase.

A redução atômica de Russell funcionava mais ou menos assim:


Se eu digo “Sócrates é mortal”, posso formular a frase da seguinte maneira:

A=Sócrates
B=mortal
Portanto, A=B

Mas, se eu disser “O maior de todos os filósofos clássicos é um ser que terá um fim”, chego à seguinte formulação:

A=O maior de todos os filósofos clássicos
B=Um ser que terá um fim
Portanto, A=B – ou seja, tenho a mesma conclusão que a anterior.

E o mesmo se repete com todas as expressões linguísticas que seguem este escopo. É claro que há expressões mais complexas, que vão compor uma formulação mais detalhada, como, por exemplo:

“Sócrates é mortal se e somente se todo homem for mortal ou se a alma não for imortal”

Que pode ser reduzida matematicamente para



(ou algo semelhante... confesso que andei dormindo um pouco nas aulas de Lógica).

Finalizando: um átomo lógico é uma expressão linguística que carrega consigo um sentido completo, e que pode ser inserido em uma proposição, podendo receber um valor de verdade – verdadeiro ou falso. Percebam que tanto A quanto B, nas primeiras expressões, são sinônimos, diferindo apenas na complexidade com que são descritos, e ambas podem ser consideradas verdadeiras ou falsas.

E esse é também o grande problema da teoria atômica. Ela funciona muito bem na Ciência, mas falha quando cai no campo especulativo ou lírico, para citar dois exemplos. A busca desenfreada em remover dubiedades da linguagem é tarefa tão inglória quanto tentar encontrar leis que rejam relações sociais ou antropológicas, porque um simples passo para o lado pode deslocar todo o sentido do que se quer expressar.

Em suma, apesar de toda a engenhosidade do método do atomismo lógico, permanecemos com o problema semântico, porque ele pode ser muito bem aplicado às formalidades da linguagem científica, mas falha quando saímos dessa esfera. E, para entender isso, vamos materializar a metáfora do átomo.

Em algum dia do meu longínquo passado, escutei do meu primo Moacir, leitor deste espaço e químico formado, uma frase interessante: “O diamante é um carvão que deu certo”. Realmente, tanto um quanto o outro tem a mesma composição: átomos de carbono. A diferença, portanto, não está em sua constituição material, mas nas condições de temperatura, pressão e outras mais, que fizeram com que o arranjo molecular, com suas ligações e demais badulaques originassem um belo e cristalino (e caríssimo) diamante ou um ordinário pedaço de carvão mineral.

A mesma lógica se aplica à linguagem. Os átomos lógicos podem ser os mesmos, mas as “condições de temperatura, pressão e outras mais” podem modificar totalmente o sentido do produto final. Querem um exemplo? Esperem um pouco que eu vou chamar o síndico. Leiam a letra com atenção.

Não sei por que você se foi
Quantas saudades eu senti
E de tristezas vou viver
E aquele adeus não pude dar

Você marcou na minha vida
Viveu, morreu na minha história
Chego a ter medo do futuro
E da solidão que em minha porta bate

E eu gostava tanto de você
Gostava tanto de você

Eu corro, fujo desta sombra
Em sonho vejo este passado
E na parede do meu quarto
Ainda está o seu retrato

Não quero ver pra não lembrar
Pensei até em me mudar
Lugar qualquer que não exista
O pensamento em você

E eu gostava tanto de você
Gostava tanto de você

Essa música do Tim Maia chama-se “Gostava tanto de você” e, a primeira vista, parece falar sobre as desventuras amorosas do eu-lírico, desiludido com a perda do relacionamento com a mulher que tanto gostava. Mas e se eu lhes contar que a música foi feita em homenagem a uma filha do Tim que morreu ainda criança? As palavras mantêm o seu sentido? Continuando vemos essa letra da mesma forma que víamos?

Não sei se essa história é verdadeira ou se é mais uma das tantas lendas propagadas em meio virtual (pelo que eu pesquisei, é lenda; mas vai que a lenda é que seja a lenda!), mas o fato é que, pela interposição de um único fator extrínseco, modificamos completamente o sentido que é aplicado ao referente em questão, e confirmamos que a linguagem é submissa ao contexto em que é utilizada – a ocasião histórica, a situação emocional, os costumes vigentes, etc. Assim como o carbono pode virar diamante ou carvão, as variáveis transformam a linguagem em razão ou emoção, em conotação ou denotação, em mentira ou verdade.

Desta forma, verificamos que o problema semântico permanece e os filósofos contemporâneos continuam debruçados sobre a questão, mas é o suficiente para provar que, no quotidiano, a linguagem – como toda a obra humana – tem suas virtudes e seus efeitos colaterais.

E o maior deles, na minha humílima opinião, é a solidão. Porque não há linguagem que sustente toda a gama de articulações mentais possíveis. Às vezes, um gesto diz mais do que um compêndio inteiro. E se temos a necessidade de colocar tudo aquilo que pensamos e sentimos para os demais componentes de nosso ambiente, veremos que nosso conjunto único de impressões fica restrito a nós mesmos. Nesse sentido, pode parecer um chavão romântico, mas é plenamente possível estar solitário em meio à multidão. E, também nesse sentido, seremos eternamente solitários.

A solidão pode ser entendida como incapacidade de tornar dos outros aquilo que é nosso, e que gostaríamos de disseminar. Isso vale não só para o conhecimento, mas para qualquer coisa que gostaríamos de compartilhar: nossos anseios, nossas fraquezas, nossas opiniões, com todos os seus porquês. E sentimos falta de uma completa identificação com o nosso meio, porque essa limitação é bilateral. Sempre haverá algo de inexprimível naquilo que eu digo, assim como sempre haverá algo de incompreensível para quem me ouve. Essa é a raiz da solidão.

A solidão é uma doença da linguagem. Infelizmente congênita e hereditária.

Recomendação de leitura:

A seguinte obra sintetiza bem o pensamento de Russell no quesito Lógica. Lembrando desde já da vastíssima obra deste importante pensador.

RUSSELL, Bertrand. Lógica e conhecimento. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

E a "aquarela" inserida no texto é uma brincadeira que fiz com a foto da Jéssica, a popular Jazz, mais uma afilhada minha, que tenho certeza que vai me autorizar o uso!!! Ela não é um exemplo bem acabado de solidão, mas achei que a imagem poderia dar outro exemplo de como a linguagem é falha em dar expressão real dos sentimentos.