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segunda-feira, 26 de maio de 2014

Diário de bordo de uma nau sem rumo – Epílogo

Olá!

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Vamos passar a régua e enfeixar as ideias. Vou ser menos filosófico desta vez, no sentido de que não procurarei referências externas. Também serei mais breve do que o habitual. São as minhas impressões finais da viagem da nau sem rumo, na verdade um carro um pouco mais do que popular tripulado por duas pessoas bastante curiosas (uma, em termos filosóficos; outra, com um viés mais comercial – digamos assim).

Antes de mais nada, e para quem estiver com paciência, indico os links dos textos, desde o primeiro, cronologicamente:

O que eu vi em comum em todas essas cidades?
Todas elas têm um potencial único para preservar uma identidade – ser testemunha construída de um tempo que não existe mais, mas que explica muita coisa do que somos. Se olharmos a cidade de São Paulo, veremos que o resgate do passado é uma missão quase que arqueológica, mesmo sendo tão jovem. Jovem? Sim, jovem. São Paulo tem 460 anos, o que é bem pouco, se a compararmos com algumas cidades da Europa, da China, do Oriente Médio, do norte da África e via discorrendo. Mas mesmo isso é exagero, porque São Paulo só começou a existir para valer a partir do final do século XVIII, quando passou a ter importância e crescer de verdade. Isso significa que, para iniciar a explicar a história de São Paulo, temos que recuar meros 150 anos. Nada que necessite de altas toneladas de carbono 14. Só que nos deparamos com o problema: em São Paulo, nós procuramos por vestígios, e encontramos uma casinha aqui, uma lojinha ali, uma plaquinha acolá, uma pracinha aquém e uma vilinha além e, em cima disto, tentamos remontar a memória. Aqui na capital, o progresso passou seu trator por cima do passado, e este se desenha por dedução. Talvez por isso mesmo seja tão comum a existência de livros de fotografias antigas (eu mesmo tenho dois, que vou indicar logo abaixo, nas recomendações), mas nós os comparamos com as novas estruturas dos locais aos quais retratam e não as reconhecemos em quase nada. A sanha pelo progresso e a especulação imobiliária são impiedosos, e só eles podem explicar (mas não justificar) a demolição de tantas construções belas e características de uma época para o erguimento de prédios e mais prédios, frios e opacos, sem o cuidado de uma renovação estética pelo menos interessante. São apenas prédios funcionais.

Ocorre que, por mais que tenhamos várias fontes de história (até mesmo os nomes de suas ruas, como descrevi aqui), há sempre algo que se perde. A preservação deve ser intencional; se não for, temos que contar com a sorte, o que nem sempre acontece.
É neste ponto em que as cidades do Vale Histórico podem e devem se valer. Se o “azar” das circunstâncias deteve seus progressos, por outro lado preservou muito mais do que vestígios de uma história que não é só delas, mas do Brasil inteiro (e, por extensão, de todo o mundo). Efetivamente, seus centros urbanos e suas fazendas têm tatuados em suas peles uma série imensa de fatos históricos não pouco importante. Por estas terras, como descrevi nos textos anteriores, passou a proclamação da independência, a revolução constitucionalista, a revolução liberal, a expansão cafeeira, as rotas do ouro, as ligações com a Europa, o ofício dos tropeiros, a luta e a acomodação do homem no meio ambiente. A história está em suas ruas, não em seus álbuns de fotografia. Estas cidades tem um tesouro em suas mãos. Espero que cada vez mais tenham sabedoria de utilizá-lo bem.

Outra coisa em comum da região é o relevo acidentado e disponibilidade de água, feliz combinação que gera um dos atrativos mais comuns hoje em dia – o ecoturismo. É muito fácil encontrar trilhas, quedas d’águas, rios, riachos, ribeirões, córregos, lagoas, mata virgem... Tudo isso em desníveis impressionantes, uma variação de altitudes bastante expressiva para uma área relativamente pequena. Só que tudo isso é muito oculto. De fato, há pouca indicação da presença destas belezas naturais... Paro para pensar: isso bom ou ruim? Não consigo definir com exatidão, mas quando me vejo deparado com a pobreza das pessoas, percebo que algo poderia ser feito utilizando estes recursos. É uma região de pessoas com muita cortesia, mas correndo risco. Fazer uma ampliação da renda através do turismo ecológico é algo muito tentador, desde que isso não signifique o habitual emporcalhamento e costumeira destruição do meio. Portanto, tudo deve ser feito com critérios claros no uso destas áreas. Não vou me estender muito nesse assunto, não é o tema deste texto. Mas é nosso dever refletir sobre.
Outro lado: apesar de suas semelhanças, evidentemente cada uma das cidades visitadas tem sua particularidade, o que é saudável para que não as identifiquemos como uma massa uniforme, em que uma coisa é qualquer coisa, e qualquer coisa é mais do mesmo. Desta forma, temos Queluz com suas ladeiras e ruas calçadas de pedras, Silveiras e sua ligação com o tropeirismo, Areias e a remontagem da passagem real e da presença dos nobres, Arapeí e as dificuldades de crescimento dos novos municípios, Bananal e a arquitetura neoclássica europeia e árabe, São José do Barreiro e o trekking e Lavrinhas com seus laços com o rio Paraíba do Sul. Sim, todas essas cidades têm mais coisas em comum do que divergências, principalmente a tentativa de se reencontrar no mundo, mas cada uma delas tem algo como uma pinta, uma cor de cabelo, um andar manco, uma cicatriz na perna ou uma voz metálica que as individualiza e que impede (felizmente) o visitante de dizer: “Quem viu uma, viu todas”. Não, meu amigo, é preciso ir uma a uma.

Mas o que eu tenho de mais importante a dizer neste breve texto de conclusão vem agora. Por mais que tenhamos andado por ruas e ruelas; por mais que tenhamos subido, descido e escorregado em ladeiras; por mais que tenhamos segurado a respiração nas estradas estreitas e sinuosas; por mais que tenhamos engordado em casas, restaurantes, quiosques e botecos; por mais que tenhamos amassado barro e molhado pés e traseiros; por mais que tenhamos ameaçado nos afogar em rios e cascatas, e por mais que tenhamos terminado nossas noites ao redor de uma garrafa de cerveja e de um acepipe qualquer, com mariposas e outros insetos na companhia, ainda que sem convite – em resumo, embora procurando por toda a parte o que as cidades tinham a nos dizer, nada supera a força que tem o depoimento. A palavra falada supera a formalidade que tem a palavra escrita, e esse testemunho só atinge seu ápice quando você percebe as nuances que seu interlocutor dá à sua fala, bem como todo seu jogo gestual e suas alternâncias no semblante – o brilho nos olhos, como diria um poeta. A palavra escrita, nesse sentido, só tem a vantagem da permanência. É preciso falar e ouvir: essa foi a grande chave que tivemos para abrir as portas da compreensão deste mundo, que, da cidade grande, temos dificuldade de absorver.
Assim, agradecemos a todas as pessoas que devolveram sua atenção à nossa curiosidade. Que nos receberam em suas casas, serviram seus cafés e bolachinhas, deram um pouco do seu tempo para dois transeuntes que ficavam fuçando e fotografando com avidez seu pequeno e belo mundo. Agradecemos a todos os que nos ajudaram a compreender seu modo de vida, aquilo que os move e os apaixona, e que com isso nos encantaram também. Agradecemos à paciência e contentamento que nos mostraram que a alegria pode ser gratuita, que pode ser ferramenta para a ampliação dos conhecimentos de quem aparentemente vem unicamente em busca de lazer e descanso. E agradecemos mesmo aos rapazes que não souberam nos dizer nada de Lavrinhas, pois acabaram por nos dizer alguma coisa: se a comunidade em que vivem não lhes desperta interesse, isso não é feito sem motivo, e também isso é objeto para a busca do entendimento.

Por fim, para que eu termine essa série e esse texto que já vai longe: tudo é melhor de fazer estando em boa companhia, mastigando toda a nossa experiência ao fim de cada noite, evidentemente assessorados por uma mesa farta e por nosso amor às novidades e a nós mesmos. Santé!
E assim se pratica a Filosofia: não é preciso grandes sistemas universais nem incógnitas indecifráveis. Tudo o que é necessário é olhar o mundo e perguntar os motivos pelos quais ele se apresenta a nós desta forma, e não de outra.
Recomendações:
A primeira e mais importante: o Vale Histórico é uma ótima opção de viagem, seja para quem quer paz e sossego, seja para quem goste de história, seja para quem queira conhecer uma geografia um tanto diferente. Procurem os atrativos turísticos, como os centros históricos e o meio natural, mas também procurem pelas pessoas, perguntem muito. Percebi que os moradores destes locais não têm medo de pessoas, muito pelo contrário. Eles são a verdadeira riqueza destes locais. Abaixo, as suas principais rotas de acesso:
Queluz – 225 Km de São Paulo pela BR-116 (Via Dutra)
Silveiras – 220 Km de São Paulo pela SP-068 (Rodovia dos Tropeiros)
Areias – 225 Km de São Paulo pela SP-068 (Rodovia dos Tropeiros)
Arapeí – 244 Km de São Paulo pela SP-068 (Rodovia dos Tropeiros)
Bananal – 296 Km de São Paulo pela SP-068 (Rodovia dos Tropeiros)
São José do Barreiro – 262 Km de São Paulo pela SP-068 (Rodovia dos Tropeiros)
Lavrinhas – 215 Km de São Paulo pela BR-116 (Via Dutra)

Nesta viagem, aproveitei para comprar um livro que conta a história de algumas destas cidades, com fotos e depoimentos de cidadãos ilustres. Não esgota o assunto, mas traz algumas informações bastante interessantes.
LUZ, Rogério Ribeiro da. Cinco cidades paulistas: uma pequena viagem. São Paulo: KMK, 2002.

Já os livros de fotos que mencionei são os seguintes (ambos excelentes):

IACOCCA, Angelo. Retratos da imigração italiana no Brasil. São Paulo: Editora Brasileira, 2012.

PONTES, José Alfredo Vidigal. São Paulo de Piratininga: de pouso de tropas a metrópole. Rio de Janeiro: Terceiro Nome, 2010.

sábado, 10 de maio de 2014

Diário de bordo de uma nau sem rumo – 7º porto: Lavrinhas e a crise de identidade

Olá!

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Digamos que esta é uma espécie de faixa-bônus. Passamos em Queluz, passamos em Silveiras, passamos em Areias, passamos em Arapeí, em Bananal e finalizamos nossa turnê em São José de Barreiro. Finalizamos? Bem, quase. Pegando o rumo de casa, fazendo praticamente o exato retorno do caminho de ida, passamos ao lado da placa do município de Lavrinhas, já na Via Dutra. Parafraseando o Renato Russo, eu dizia: ainda é cedo. Legal, vamos passar em Lavrinhas, quem sabe tomar um sorvete.

Devo confessar que fiquei um pouco, digamos, decepcionado. Ao contrário de todas as cidades que visitamos, não encontrei em Lavrinhas o mesmo potencial histórico nem o mesmo cuidado com o patrimônio. Tudo bem, foi uma passagem rápida, período de poucas horas mesmo, e preciso dar o devido desconto, mas a primeira impressão não foi tão interessante. Fiquei sabendo da existência de alguns riachos e de algumas fazendas onde é possível passar uns momentos bacanas, mas achei que as pessoas da cidade não são muito engajadas com sua pequena territorialidade.

Vou dar um exemplo: vejam a imagem de São Benedito, que se encontra em uma pequena praça da cidade.

Pois bem. Achei curiosa a capelinha onde repousa o santo e resolvi fotografá-la. Tinha lá alguns rapazes, e me dirigi a um deles para perguntar se São Benedito é o padroeiro de Lavrinhas (não é: pesquisei na internet e fiquei sabendo que São Sebastião é o cara). Não soube me dizer.
O patrimônio histórico – pouco – não é nada bem cuidado, como já disse. Um exemplo gritante é a antiga estação de trem, hoje ocupada pela Prefeitura e por outros órgãos.  

Está bem estragadinha, inclusive com muitas pichações e garatujas várias:

Não consegui encontrar, pelo menos pelo centro, uma sequência de casinhas que desenhassem os antigos projetos arquitetônicos da cidade, o feitio de suas ruas, ou alguma glória antiga. Vi, isso sim, algumas edificações em destroços:

E também não vi aqui a consagrada e costumeira igrejona com sua praça e seu coreto. A igreja que encontrei foi essa abaixo, discreta como a rua em que se localiza:

O que nos diz um pouco mais são duas coisas: o rio e a estrada de ferro. Lavrinhas, da mesma maneira que Queluz, tem contato direto com o Rio Paraíba do Sul. Só que, ao contrário desta, temos aqui muitas pessoas que procuram tirar algum sustento de suas águas precárias. Vimos vários pescadores em suas margens.

A cidade tem uma interessante ponte feira em arco de concreto, de vão bem estreito, mas que me parece suficiente para o seu movimento, já que aqui não temos o intenso vai e vem de caminhões de sua vizinha.

Outro fator marcante da cidade é a presença da linha férrea, que nos propicia, além da estação já mencionada, algumas outras obras de arte de engenharia, como é o caso da ponte que cruza o rio...

... e do túnel em arco que passa por baixo dela...
... muito embora possamos aqui também ver alguns destroços, como esses estranhos pedaços de concreto enfiados no rio, ao lado da ponte férrea.

O que eu vi de mais curioso e belo é uma imagem de Nossa Senhora inserida no meio do rio, posta em pé em um pilar que emerge das águas.

Algumas pessoas podem achar a imagem e sua inusitada inserção meio kitsch, mas extraio outro significado: é a população dando ao rio que lhe dá sustento um aspecto sagrado, além de uma proteção para a continuidade no fornecimento de seus essenciais.

O modo como a cidade se organizou é um rolo só. O nome Lavrinhas vem do fato de terem sido encontrados alguns veios de ouro na região. A esperança de que as lavras fossem abundantes eram grandes, mas não chegou a produzir como em Minas Gerais. De início, a povoação formada ao redor dessa mineração pertencia ao município de Queluz. Foi emancipada para a condição de Distrito, mas dessa vez passou a ser administrada pelo município de Pinheiros. Mais um tempo se passou e nossa querida Lavrinhas ganhou o estatuto de município, englobando sua antiga administração, a cidade de Pinheiros, agora distrito. Não me perguntem o porquê dessas idas e vindas, mas há uma certa animosidade entre o centro e o bairro rebaixado, tipo Brasil X Argentina.
Temos um município dividido em quatro porções: a Lavrinhas original que constitui o atual centro, o mencionado Pinheiros, o bairro chamado de Capela do Jacu e, ao norte, o maciço constituído pela Serra da Mantiqueira. Este pedaço é praticamente formado apenas por mata virgem, e é objeto de uma interessante proposta de tombamento! Seria excelente, para garantir a manutenção e a preservação do Parque Nacional da Mantiqueira, mas, por outro lado, dificultaria o desenvolvimento da cidade. E, da mesma forma que o município é dividido em núcleos multiformes, também temos aqui alguma dificuldade em estabelecer uma chave comum que unifique a cidade, que lhe dê um registro único. Todos os motivos históricos, aliados às condições geográficas já citadas, fazem, aos meus olhos, com que Lavrinhas viva uma crise de identidade.

Mas isso tudo é uma questão de opinião, pois é essa a forma com a qual absorvi, através da minha consciência, esse novo conhecimento, que é a cidade de Lavrinhas. Para distinguir o que é logos e doxa (conhecimento e opinião, crianças), é preciso sentar sob uma árvore, acompanhado de um copo de café e fazer epoché.
Epo... quê!?!?!?!?!?!?!?!?! Que p... é essa?

Epoché é mais um termo grego do jargão filosófico, nascido com os antigos céticos e retomado no século XX pelo filósofo tcheco Edmund Husserl, pai da Fenomenologia como método de investigação filosófica. A palavra epoché significa a suspensão do juízo que fazemos diante da impossibilidade de conhecer, ou seja, se não podemos apreender uma qualquer coisa, devemos parar de dar “chutes” a respeito dela. Essa era a visão dos céticos, como é o caso do filósofo Pirro, para quem era absolutamente impossível chegar a qualquer verdade.
Só que Husserl tinha um uso alternativo para a epoché. Tudo começa com a concordância dele com a assertiva kantiana de que é impossível conhecer a coisa-em-si – a essência das coisas – mas apenas as suas manifestações concretas, sua existência efetiva, denominadas fenômenos. Exemplo: enquanto redijo este texto, sorvo um café. Como sei que é um café? Ora, ele contém todas as características essenciais do que definimos como tal – preto, sabor bem marcado, estado líquido, aroma típico, etc. Mas, se eu tenho a percepção de todas estas características, é porque eu tenho um café existente diante de mim, concreto, real, palpável, que se encaixa no gabarito de café que reside em minha mente, e que foi formado pelo que me contaram sobre ele e sobre as inúmeras experiências de engoli-lo que tive em toda a minha vida. É o café que se manifesta à minha consciência, um café como fenômeno, que pode ter características próprias – mais quente ou mais frio, mais forte ou mais fraco, mais ralo ou mais encorpado, frutado, com notas de chocolate e banana, essas frescuras todas – mas que tem algo em comum com todos os outros cafés do mundo, e que me fazem reconhecê-lo como tal.

Tá. O que aconteceria se me fosse servido o seguinte produto: uma água aquecida, com flavorizante saber café, um pouquinho de espessante para dar consistência, um edulcorante para adoçar, um corante para pretejar, colocado em uma xícara com estampa quadriculada em vermelho e branco, tudo isso em cima de um pires para evitar desastres? Terei um café?
Certamente não. Trata-se de uma mezinha química embusteira que procura me iludir. Quando muito, pode ser denominada de “bebida artificial com sabor imitação de café”. Mas o que é essa bebida para mim, sem saber da presepada que me arrumaram? Ora, é café!!! Pode parecer meio Matrix, mas esse líquido que bebi manifesta-se à minha consciência como café, minha experiência prévia faz com que eu creia que é café. Para que eu possa me precaver do engano, para assegurar essa manifestação como uma certeza, é preciso colocá-la em dúvida, é preciso fazer epoché.

É um exemplo claramente esdrúxulo, ninguém precisa olhar com desconfiança para o próprio cafezinho que fumega à sua frente. O que Husserl preconiza é a tentativa de transformação da Filosofia em Ciência, através de uma aplicação metodológica. Isso porque apreendemos os objetos do mundo em uma consciência crivada de uma massa de experiências que influem na maneira que os enxergamos. Tudo influencia nossa percepção: nossos sonhos, fantasias, frustrações, convicções, preferências, lembranças, cultura. E é preciso isolar todas essas variáveis se quisermos conhecimento seguro.
A grande sacada da Fenomenologia é que ela não é um sistema filosófico fechado, mas um método aplicável a qualquer área do conhecimento. A colocação de teses entre parênteses (figura criada pelo próprio Husserl) dá uma total liberdade ao pesquisador (aí entendido até mesmo quem queira duvidar que seu café seja café) de duvidar de absolutamente tudo, sem a necessidade destrutiva do cogito cartesiano de duvidar do mundo que nos rodeia, como se fosse possível sua inexistência, porque esse ceticismo exacerbado acaba por impossibilitar a própria Ciência. O mundo não nos desaparece quando pensamos nele, ou quando queremos entender algo de seu funcionamento. Um besouro não deixa de voar se não entendemos como uma aerodinâmica tão improvável possa permiti-lo fazer (tem um besouro voando perto do meu café). É por isso que a Fenomenologia de Husserl não é negativa como o gênio do mal de Descartes. A dúvida não é e não deve ser universal, mas limitada àquilo que coloco entre parênteses.

Então é preciso pensar Lavrinhas fenomenologicamente, para que eu não tire conclusões tão ruins apressadamente. Havemos sempre de compreender um objeto não somente pelo que é apresentado aos nossos sentidos, mas também tudo o que há por trás dele. Prometo voltar a Lavrinhas, para ser justo com ela.
Recomendação de leitura:
Cuidado, compradores. Como a fenomenologia tem alcance amplo, há um belo bando de picaretas que a utiliza com propósitos esotéricos. Nada contra, mas não é esse o método husserliano. É melhor beber direto da fonte:

HUSSERL, Edmund. Ideias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenológica. Aparecida: Ideias e Letras, 2006.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Diário de bordo de uma nau sem rumo – 6º porto: São José do Barreiro em diálogo com o meio ambiente

Olá!
Viajante vai, viajante vem. Começamos o movimento de retorno a São Paulo a partir de Bananal (veja o relato aqui), mas com uma cidade ainda por visitar: São José do Barreiro. Depois de Queluz, Silveiras, Areias, Arapeí e da precitada, fizemos nosso pouso último nesta também pequena e também interessante cidade, que tem, a se distinguir das demais, um diálogo mais bem resolvido com a natureza que a cerca. É a cidade onde melhor se pratica o trekking na redondeza.


Começamos passando por uma povoação chamada Formoso, um vilarejo perdido na mata, cuja principal atração é um clube de campo chamado de “Clube dos 200”, transformado em hotel-fazenda. Esse mesmo clube é mantenedor de boa parte de Formoso, inclusive das escadarias que dão acesso à igreja local...

... que vem a ser esta aqui, dedicada a Sant’Ana:

Sim, também aqui temos o mesmo tipo de arquitetura de todas as cidades visitadas e analisadas anteriormente, como o casario tipicamente feito de taipa.

São José do Barreiro, no entanto, está um dedinho à frente de suas vizinhas. É um dos poucos lugares onde encontramos culinária mais típica, com muitos doces e produtos extraídos de suas abundantes águas. Para dar um exemplo, encontramos um peixe de comer rezando no restaurante abaixo, muito simples e bem servido.

Mais uma vez, a igreja principal da cidade tem o estilo barroco tão característico da região e da época, muito parecida, aliás, com várias das que podemos encontrar no centro de São Paulo...

... e com a consequente praça em extensão ao seu adro. Adivinha o que tem lá? Isso, um coreto. E muitas, muitas flores.

Algumas obras arquitetônicas são exclusivas do lugar. Um dos casos é o Cine Teatro São José, bastante diferente de tudo o que vimos por aquelas bandas. Infelizmente, o equipamento não está sendo utilizado, mas dá uma mostra de que também por lá foram vividos tempos de esplendor.

Outra exclusividade é o Cemitério dos Escravos, coisa muito atípica. Tentando fazer uma transposição no tempo, é possível supor o quanto a área era retirada em relação à área urbana. O primeiro obstáculo é uma pouco convidativa escadaria...

... acompanhada pelo abandono, infelizmente. Todos os túmulos estão em péssimo estado de conservação, devidamente profanados, completamente tomado pelo mato, e não vi nenhum sinal de recuperação.

Lá conheci a Nicole, uma menina de seus 12 ou 13 anos que se apresenta como guia da cidade, com o intuito de obter alguns trocados. Ela foi esperta o suficiente para coletar alguns dados sobre o cemitério, e nos informou que o local foi palco de algumas batalhas da Revolução Constitucionalista de 1932. Mais tarde, pude verificar a veracidade da história. Ligeira, a menina.
Mas, de um modo geral, tivemos uma certa frustração ao constatar que, apesar de possuir um aparelhamento mais robusto em termos de apoio ao turista, eles não estão, digamos assim, trabalhando como devem. Exemplo peremptório: a casa de Turismo (belo prédio), lá no fundo à esquerda, estava fechada, tanto na sexta-feira quanto no sábado!


Estranho isso. Tenho falado neste espaço tão insistentemente da necessidade de estruturação do turismo como alternativa válida para a recuperação da região, e, quando o órgão existe, não funciona. Fica a dica para os administradores de São José do Barreiro que por ventura venham a ler este texto.

A Cleuza, dona da Pousada dos Guimarães, onde ficamos hospedados por lá, contou-nos um pouco deste tipo de deficiência: que o poder público quer, mas os guias informais são um pouco avessos à regulamentação. E a discussão continua. De qualquer forma, observei um sopro de alento. Bem ao lado da Câmara Municipal, está em fase final de acabamento a construção de um corredor cultural e de uma casa de artesanato. Espero que o turismo esteja na pauta de implantações.
Ok. Eu já disse que São José do Barreiro (mesmo com as observações anteriores) lida melhor com seus atributos naturais que a circunvizinhança. Não à toa, foi recentemente atribuído a ela o estatuto de estância turística, o que dá uma dimensão um pouco melhor de suas características geográficas. A cidade é repleta de trilhas e cursos d’água.

Como sói acontecer quando há um entrecruzamento de recursos hídricos e relevo acidentado, há muitas cascatas perdidas pelo meio das matas. Abaixo, a trilha que conduz ao Cachoeirão do Formoso, bastante íngreme e escorregadia:

Outra cachoeira na qual molhamos pés e bundas é a Cachoeira da Mata, uma graça de lugar, bem típico da região, com a habitual água gelada e leito recoberto de pedras (onde, inclusive, a cara-metade fez a mais importante escoriação da viagem, uma bela torção no pé, que rendeu uma visita ao pronto-socorro, já em Sampa).

Em todas estas cachoeiras, vemos a beleza do trabalho da natureza. A erosão produzida pelas quedas d’água é responsável pela lenta formação de piscinas naturais, mais ou menos profundas, de forma que a água represada pode se prestar confortavelmente ao nado. São remansos tão calmos que é possível levar crianças (com os devidos cuidados, evidentemente).

A abundância de água permitiu ao homem trabalhar a natureza em seu proveito, e a represa do Funil é fonte de renda e subsistência para uma significativa parte da população local, além do óbvio abastecimento à área urbana.

Mesmo em casos singelos é possível notar o privilégio natural e a maneira de lidar com ele. Vejam que interessante arco feito de árvores e bambus localizado na rodovia dos Tropeiros, principal via de acesso da cidade:

E também é legal a quantidade de libélulas e sapos no pedaço, como o nosso cidadão noturno aí debaixo:

Mas a grande atração é o Parque Nacional da Serra da Bocaina. Já falei, em meu texto sobre a cidade de Areias, sobre a sensação de exiguidade do homem colocado diante do mundo, mas essa sensação é muito maior no sobe e desce do acesso a ele. Li na internet que o pico do Tira Chapéu, em suas proximidades, é o ponto mais alto do estado de São Paulo (sem considerar as formações compartilhadas com Minas Gerais e Rio de Janeiro). Tudo o que eu falei até agora sobre São José do Barreiro é visto em dobro nessa região: cachoeiras, trilhas, rios. Tudo isso cercado por despenhadeiros admiráveis, e serpenteados por uma estrada em processo de pavimentação.
Ao falar sobre o encontro entre homem e natureza, penso imediatamente em Filosofia Ambiental, ramo recente, que tem o norueguês Arne Naess como principal protagonista.
Protagonista, no caso, é a palavra exata. Naess foi um ativista ecológico dos mais engajados, chegando, inclusive, a se acorrentar ao Mardalfossen, uma cachoeira norueguesa que se encontrava ameaçada pela construção de uma represa, além de ter sido aclamado presidente do Greenpeace na década de 80.

Arne Naess deu ao mundo o conceito de ecologia profunda, que ele desenvolveu a partir da leitura de uma obra do escritor, naturalista e ex-guarda florestal estadunidense Aldo Leopold. No livro Pensar como uma montanha, Naess encontrou sua inspiração em uma passagem em que é descrita a caça a uma loba nas montanhas, onde Leopold conta que, após atirar na mesma e correr ao seu encontro, teve uma experiência inédita: ao encontrar o animal agonizante, ainda conseguiu captar em seu olhar moribundo toda uma ligação entre si mesmo, o ambiente e todos os seres que o compartilham. É como se ele, montanha e loba estivessem ligados por um único laço, desmanchado agora, neste momento em que sua intervenção desarma o equilíbrio antes existente e só posteriormente captado, já tarde demais. É o que chamamos modernamente de insight.
Naess sentiu todo o drama de Leopold em si mesmo, e passou a conjecturar qual deveria ser o papel do homem em sua interação com a natureza. O princípio básico de uma relação salutar para o planeta seria uma mudança de paradigma – o homem não mais deveria dominar a natureza, mas reconhecer-se como parte integrante dela. O homem deveria buscar incessantemente a harmonia com seu ambiente. Franciscanamente, o homem deveria chamar o lobo, a montanha e tudo o mais que há sobre a terra de seus irmãos. Para tanto, seria absolutamente necessário que a humanidade reconhecesse a natureza como possuidora de valor em si mesma, não superável pelo seu valor como recurso de exploração. Afinal, o homem é mais dependente da natureza do que o inverso.

Mas isso não significa que o homem seja um mal para o mundo. A partir do momento em que se der o reconhecimento de sua igualdade com todos os demais seres no direito de existir, o próprio homem ganha esse mesmo estatuto. E como se deve reconhecer isso? A partir do convencimento de que o planeta tem recursos limitados e vive em delicado equilíbrio, e que somente a partir de uma atitude responsável será possível a sobrevida. Naess propõe o conceito do “eu ecológico”, ou seja, uma sintonia e uma percepção de que pertencemos à biosfera. E isso engloba o que tantos filósofos anteriores chamavam de “consciência de si”, aquela percepção imediata de tudo o que se passa ao nosso redor. Essa consciência engloba o reconhecimento da finitude e da propensão natural em buscar sua própria preservação e de sua espécie. Esses fatores são poderosos aliados para que a defesa do meio ambiente se transforme em força ativa: somente cuidando do mundo, cuidamos de nós mesmos.
Arne Naess, aos olhos desprotegidos do consumismo, pode parecer o que se convencionou chamar de “ecochato”. Não, ele não é um ecochato. Ele foi um homem que soube encontrar na defesa da natureza uma porta ativa para a ética e, no final das contas, para a Filosofia como um todo. Hoje há milhares de organizações que buscam a defesa do ambiente. Naess foi um de seus pioneiros. Se gostamos de visitar lugares bonitos como São José do Barreiro, precisamos, obrigatoriamente, aprender algumas dessas lições.

Recomendação de leitura:
Ainda quero falar melhor sobre Aldo Leopold. Por esse motivo, vou recomendar sua obra em momento oportuno. Quanto a Arne Naess, podemos apontar como leitura gratificante a seguinte obra (infelizmente não achei edições em português – a que segue está em italiano, mas há várias em inglês):

NAESS, Arne. Ecosofia. Milão: Red Edizioni, 1994.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Diário de bordo de uma nau sem rumo – 5º porto: Bananal, as trilhas e os trilhos

Olá!

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Quinta estação: Bananal tem mais a ver com trens do que todos os outros lugares por onde andamos. É bem verdade que Queluz (devidamente romanceada aqui) tem uma linha férrea ativa, mas o trem diz muito mais neste recanto. Chegaremos lá.
Primeiramente, alguns pontos sobre a continuidade de nossa viagem. Começamos pela precitada Queluz, pendemos para a direita em Silveiras, para a esquerda em Areias e daí para Arapeí. A continuação lógica seria São José do Barreiro, mas a minha cabeça nem sempre funciona em uma lógica canônica. Desta forma, seguimos para a última cidade do destino, a agora narrada Bananal, para depois voltar à dita cuja.

De todas as cidades visitadas, Bananal é a maior, tanto territorialmente quanto demograficamente, e tem lá seus 13.000 habitantes. É uma cidade de passado glorioso, um dos principais centros produtores do 1º ciclo do café, no momento em que essa era a principal cultura agrícola do Brasil. Por lá, existem várias fazendas que retratam essa época de apogeu.
Uma das provas da antiga situação do município é a maneira como está estruturado o centro da cidade. Em geral, encontramos uma grande praça onde está instalada a igreja matriz da cidade. Algumas outras capelas são encontradas em outros lugarejos. Mas, no caso de Bananal, encontramos três igrejas de bom porte, todas bastante próximas. Temos, obviamente, a tal da Matriz (Senhor Bom Jesus do Livramento)...

... com sua respectiva praça e coreto...


... a igreja do Rosário, com a praça fazendo as vezes de adro...


... e a igreja da Boa Morte, colocada em um morro. Na foto abaixo, temos uma imagem de Nossa Senhora da Boa Morte, instalada ao lado do edifício da igreja.


Sem dúvida, Bananal tem um diferencial muito legal. A ocupação de seus espaços públicos é abundante. As pessoas encontram-se aos montes nos locais públicos, principalmente nas praças, deixando um pouco a TV e a internet de lado. O resultado, na praça da Matriz, é esse:
E na praça do fórum também. Informo que fotografei ambas com pouca diferença de tempo. Percebam que não só os tradicionais velhinhos, mas muitos jovens estudantes também.


Em termos arquitetônicos, a cidade conserva muita história. A quantidade de belos prédios é muito significativa. Predominam os sobradões e outras edificações de bela feitura e marcantes da época de seu auge...


... a maioria em bom estado de conservação, ou em processo de recuperação, como é o caso do hotel abaixo:

Uma observação interessante: mesmo nas casas mais simples, havia o costume de se armar de maneira diferente as janelas com relação ao que estamos acostumados hoje em dia. A vidraçaria das janelas ficava exposta para a rua, enquanto as venezianas ficavam voltadas para o lado de dentro, para onde eram pivotadas.


As construções típicas eram feitas em taipa de mão ou de pilão, ou então com adobe, um tipo de tijolo rudimentar em que era colocada palha na composição, para torná-lo mais leve. Encontramos uma construção em pleno processo de troca destes últimos. Estão sendo substituídos por tijolos baianos. Dá para compreender bem a diferença entre ambos.


A cidade era tida como a “capital” daquela região. Para lá acorriam as mercadorias a serem despachadas para o Rio de Janeiro, e também de lá havia alguma facilidade em chegar ao porto de Paraty, por onde eram escoadas as mercadorias vindas de Minas Gerais. Isso tudo fez com que Bananal dispusesse de uma série de benesses públicas, como o fato de ser sede de comarca (ainda o é, mas hoje em dia isso tem um significado muito menor). Abaixo, o belíssimo prédio do fórum:


Mas é ao observar os resquícios de sua antiga condição de rota ferroviária que percebemos o quanto Bananal perdeu de sua pujança. As composições, outrora utilizadas para o transporte das sacas de café, não foram substituídas em sua utilidade para outros fins. O resultado final é este estranho réquiem, uma placa “comemorativa” do encerramento das atividades da linha férrea.


Locomotivas como esta abaixo, bem conservada, eram utilizadas em profusão. Mas não foi só a decadência do café que as levou deste lugar. Também a estranha substituição dos trilhos pelas rodovias contribuiu para a extinção deste ramal. No caso, a Via Dutra. Além disso, os trens tinham a bitola mais estreita do que a linha da Central, o que obrigava a transferência de toda a carga para outros trens. Depois a gente fala mal dos portugueses...

A gare permanece lá, um pouco judiada pelos pichadores, mas estruturalmente perfeita. Ela é feita em placas de metal (deve ser quente à beça lá dentro), facilmente desmontáveis, e foi trazida da Bélgica. É um tanto incomum, principalmente se comparada a outras estações espalhadas pelo país afora. Mas o próprio fato de que uma estrutura removível, que poderia facilmente ser transportada e utilizada em outro local, ter ficado estocada como bugiganga inútil (posteriormente transformado, graças a Deus, em patrimônio histórico), dá a devida dimensão de como o transporte ferroviário foi deixado de lado no Brasil.


Com a decadência econômica, veio o consequente empobrecimento dos munícipes. Conversamos com a Lia, proprietária da Pousada Trilha do Ouro, onde ficamos hospedados, e ela nos contou que já há algum tempo a cidade vem enfrentando problemas com tráfico de drogas, coisa incomum nas cidades da região, vindo principalmente de Barra Mansa, e que acabam por ocupar os jovens que não têm muitos caminhos para obter renda. Triste. Já vimos essa história.
Para tentar evitar o pior, os bananalenses procuram alternativas para a sobrevivência da cidade. Uma das opções foi o comércio de artesanato, como nas demais cidades da região. Aqui, encontramos algumas novidades, como a confecção de peças em barbante e linha, além dos artigos de madeira e de palha. Também existem as negras namoradeiras em profusão. Quase toda casa tem pelo menos uma delas (nós agora também temos a nossa).

Outro caminho é a preservação do patrimônio histórico. Uma das edificações mais antigas e bem conservadas é a Pharmacia Popular. Infelizmente, estava fechada quando de nossa visita, e não pudemos conhecer seu interior, mas guarda um dos mais importantes acervos farmacêuticos do Brasil, com material de embalagens, instrumentos e movelaria do século XIX.


Mas é no turismo ecológico que residem as melhores chances de reavivamento da cidade. Como é comum em todo esse espaço, há uma natureza privilegiada, com água em abundância e capacidade ociosa nas várias fazendas existentes. História e biologia unidas. Conhecemos o Recanto da Cachoeira, que fica próxima às nascentes do Rio do Turvo, área bem cuidada e equipada pelo Luiz Carlos, um ex-operário da CSN, em Volta Redonda. Ele resolveu instalar algumas benfeitorias sem adulterar a paisagem local.


O resultado é um bom modelo a seguir. A água é limpa e gelada, o ambiente é suficientemente seguro e garante um passeio bem bacana.


Na flor d’água, ficamos só com o pescoço para fora. Mas há um remanso para as crianças menores. O fundo do terreno é meio irregular e cheio de pedras. Ao se subir pelo leito, o Luiz Carlos nos contou que é possível chegar a trilhas por dentro da mata que, com muito fôlego e equipamento, permite ao andarilho chegar a Angra dos Reis. Claro que é uma caminhada de dias, e meu ânimo não estava para tanto. Mas não deixa de ser uma possibilidade.


Se os proprietários e o poder público tiverem o devido cuidado, entendo ser possível explorar o ambiente sem violentá-lo. Segundo o Luiz Carlos, é preciso conscientizar os visitantes de que tudo o que é encontrado nesse meio faz parte integrante dele, e que não é preciso retirar “lembranças” e não ter nenhum tipo de medo de bichinhos que tem sua função natural, como esse simpático lagarto, comedor de insetos e regulador da fauna.


Podemos dizer que Bananal decaiu porque quis? Não. Podemos dizer que foi vítima das circunstâncias? Sim.
Eu sou eu e minhas circunstâncias. A frase é de José Ortega y Gasset, filósofo existencialista espanhol. Em seus pensamentos, o indivíduo nunca pode se dissociar de sua história e de tudo o que o cerca, ou seja, de suas circunstâncias. Para Gasset, há imprecisão no modo de ver o mundo que tinham os realistas, para quem o principal responsável pelo conhecimento é o objeto; e também o problema é o mesmo para os idealistas, que viam o sujeito como a principal instância do saber. Então Gasset conclui que a razão humana (sujeito) é um operador que dá formato ao objeto que é por ela apropriado. Não se pode impor um isolamento entre ambos, porque eles “doam” características um para o outro, simbioticamente.

Nesse sentido, pode-se afirmar que Ortega y Gasset é um racionalista, mas de um gênero diferente do convencional. Por exemplo, há uma discordância entre o modo como ele e Descartes propõem o conhecimento. Descartes indica com o cogito que não há como duvidar da própria existência e nem da existência de um mundo exterior. Gasset não acha possível o conhecimento se fizermos esse isolamento. A realidade objetiva é a capacidade humana de sincronizar sua razão com os fatos históricos. Não há como olhar o homem unicamente como um ponto solitário, é preciso compreender que cada exemplar da espécie possui circunstâncias diferentes, que moldam seu ser e o inserem dentro de determinados limites. Como temos nós mesmos nossas próprias circunstâncias, temos maior ou menor dificuldade de alcançar os fundamentos que estão no objeto que queremos analisar, em especial se for outra coisa dotada de vida.
Ortega y Gasset cria uma escola que ficaria conhecida como raciovitalismo. Do racionalismo, traz a capacidade da mente humana em buscar e adquirir o conhecimento. Do vitalismo, não traz as limitações impostas pelas leis orgânicas, mas a própria questão de que as circunstâncias e acontecimentos são desdobramentos da própria vida. Desta forma, a razão vital busca alcançar o conhecimento quando há algum estranhamento voltado a algo que acontece na vida, que clama por compreensão. Estes problemas são característicos das culturas e das civilizações, estão sempre a colocar questionamentos filosóficos.

As circunstâncias, assim como os homens, são históricas e mutáveis, e modificam o sujeito que está no centro de sua órbita. Lembramos que as cidades são compostas de homens, são também sujeitos e objetos, as viradas de suas circunstâncias também as moldam e estão no substrato do que elas são. Bananal teve mexidas muito grandes em suas circunstâncias. Deixou de ser o que era, vanguardista, pujante. Passou a ser uma cidade lenta, parou de crescer e de ter relevância. Colidiu com o seu futuro, como diria Gasset. Com certeza, todos os projetos que Bananal poderia ter tido em seu passado glorioso vislumbravam um crescimento ainda maior. Mas estava lá ela, a História, prontinha para engolir seus sonhos. A vida obriga hoje Bananal a se reescrever, como acontece com tudo o que vive nesse universo. Não pode parar, novos sonhos vêm e novas circunstâncias vão voltar a se misturar e se modificar. Tem que continuar carregando sua energia vital, até porque não foi vítima de nenhum cataclismo, e possui recursos suficientes para se manter tão bela quanto ainda é.
Recomendação de leitura:
Ortega y Gasset reergueu a Filosofia na Espanha. Absorveu influências da fenomenologia, mas as utilizou de maneira original. Recomendo o livro abaixo para quem queira se aprofundar em seu pensamento.

ORTEGA Y GASSET, José. Meditações de Quixote. Rio de Janeiro: Ibero Americana, 1967.