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quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Apontamentos para uma nova metafísica

Olá!

Nossos caros socráticos ainda vivem, e o fazem plenamente nas aulas de Filosofia do ensino médio. Digo isso constatando o que vi em meu estágio e nas dúvidas que os alunos desta fase costumam ter, em especial minha costumeira afilhada Renata, cliente preferencial deste espaço. Há coisa de uns dois meses atrás, ela me trouxe dois questionamentos sobre nosso caríssimo estagirita Aristóteles, no que diz respeito à sua filosofia política e ao seu fundamental estudo sobre o Ser. Lembro que fiz um injusto comentário: por que os professores ainda insistem em se debater tanto em um filósofo ultrapassado? Bem, tenho direito a ter meus momentos de fraqueza, ser humano que sou, mas o fato é que minha pergunta é de uma besteira sem tamanho. É absolutamente essencial conhecer (e bem) o pensamento do dono do Liceu, bem como de seus ilustres conterrâneos Sócrates e Platão. Sem eles, não há como compreender o nascimento do pensamento ocidental.
Talvez meu amargor tenha se baseado em uma concordância com o que dizia Kant, ou com uma tendência em querer procurar novos caminhos para a Filosofia, mas vou tentar trocar um pouco em miúdos para ser mais bem compreendido, e logo em seguida fazer o devido voto de desagravo aos nossos heróis do Peloponeso.

Aristóteles tratou da questão do Ser em livros que foram denominados “Metafísica”, ou, numa tradução meio cambaia, “Os livros que estão além da física”. Isso porque, ao compilar as obras aristotélicas, um cidadão chamado Andrônico de Rhodes colocou os livros em questão logo em seguida àqueles que tratavam de questões cosmológicas e físicas, daí o nome. Mas se pensarmos no sentido de Metafísica como o estudo das coisas que estão além da visão humana, perceberemos que o termo é também apropriado, talvez até mais. Resumidamente, Aristóteles queria chegar à essência de todas as coisas, descrevendo seus aspectos mais abrangentes e universais, descobrir o que estava por trás do que os sentidos permitiam alcançar. Fazia suas elucubrações baseado em rigorosos procedimentos mentais, e chegou a conclusões brilhantes, como os conceitos de ato e potência, de substância, das causas, das categorias, do motor imóvel, etc, pá e bola.
Acontece que, a partir daí, a Metafísica tornou-se cada vez mais especulativa e distante do mundo observável. Discutia-se por décadas sobre o sexo dos anjos e esquecia-se de olhar para o mundo, gerando intermináveis punhetações intelectivas. Até que o nefando (para os metafísicos, bem entendido) Immanuel Kant resolveu botar ponto final na frase. Ele sacou que de nada adiantava ficar dando voltas e mais voltas em torno de temas ligados à essência ou ao Ser-em-si (que ele chamou de noumeno) se tudo o que temos ao nosso dispor são fenômenos, ou seja, manifestações reais e palpáveis e observáveis e mensuráveis e experienciáveis. Esse era o sono que ele chamou de dogmático, e do qual foi desperto pelo empirista e quase-cético David Hume. Se o que temos é aquilo que existe no tempo e no espaço, não adianta tentar fugir deste espectro. Dessa forma, a Metafísica toma uma porrada que a deixa tonta, pelo menos da forma como vinha sendo desenvolvida até aqueles tempos.

Mas há uma ocorrência importante de se destacar. Com todo esse caráter de inobservabilidade que lhe foi atribuída, a Metafísica, a partir de sua pressuposta destruição, ganhou um estatuto indesejável: é algo que mui se assemelha à Religião. Nada disso.
Esta confusão se dá porque tanto Metafísica quanto Religião tratam de temáticas intangíveis, inalcançáveis pelo empirismo tão caro às Ciências em geral. Afinal, sem a experimentação não há Ciência. No entanto, a Metafísica está na raiz de todo o conhecimento, porque antes de ser algo concrescível, a Ciência foi teoria, ou seja, percorreu lépida e faceira os neurônios dos egrégios cientistas.

Ora, direis, mas as teorias científicas se baseiam em experiências anteriores e em conhecimento acumulado. Onde entra a Metafísica nesse caso? Bem, direi, no passo adiante, na abstração que o pesquisador necessita para fazer a suposição seguinte. Essas “viajadas” ainda podem ser observadas nas conjecturas modernas, da mesma forma que já ocorria nas priscas eras da Filosofia pré-socrática, que nada mais era do que uma física, preocupada que era em decifrar os constituintes fundamentais do universo. Quando a Ciência busca o mais ínfimo, o mais distante ou o mais antigo, nada mais faz do que adotar os mesmos princípios, ou seja, alcançar o que vai para além da phisys. Vou colocar um exemplinho na pedra para podermos continuar.
Uma das teorias mais difundidas na cosmologia contemporânea para tentar dar explicações e consequências aos buracos negros chama-se “buraco de minhoca”. Vamos tentar entender como funcionaria um bicho desses.

As estrelas são como os seres vivos: nascem, passam por inúmeras transformações e morrem. Basicamente, elas duram enquanto houver combustível para queimar em seu interior. Não vou aqui descrever em minudentes pormenores o intrincado processo que leva ao fim o ciclo de vida de uma dessas, mas a astronomia já sabe que este depende da massa do astro em questão. Se a estrela for pequena, queimará todo o combustível em seu interior, até se apagar lentamente. A força da gravidade compactará sua massa até o limite de compressibilidade dos átomos, e teremos um objeto sideral semelhante a um planeta, sem luz própria, e è finito. Sendo a estrela original um pouco maior, a gravidade faz com quem os átomos fiquem tão comprimidos que os elétrons não conseguem mais se manter em suas órbitas, e o que temos é um pesadíssimo porém estável caldo chamado “gás de Fermi”. Uma colherinha de açúcar deste composto contém toda a massa do Pão de Açúcar, por exemplo. Se a massa da estrela for maior ainda, o limite de compressão será novamente rompido, fazendo com que prótons e elétrons se fundam e anulem suas cargas elétricas, formando o que é conhecido por Estrela de Nêutrons, ainda mais pesada, mas novamente estável. No caso das estrelas gigantes, este último limite de compressibilidade é novamente transposto, gerando um dos mais intrigantes objetos do universo, o buraco negro. Dele, nada pode sair, nem mesmo a luz. Ele é observável meramente pelo seu horizonte de eventos, uma região onde é possível captar desvios de radiação e a aceleração dos astros que são por ele literalmente engolidos. Toda a física perde o sentido no interior destes impressionantes portentos cósmicos, e tudo o que pode ser pensado de sua mecânica e funcionamento são especulações.
O que será um buraco negro? Um portal de passagem? Talvez. Muito se diz que, caso o universo seja curvo, os buracos negros podem constituir em túneis de atravessamento de um ponto do espaço para outro, da mesma forma que ocorre quando um bichinho de maçã perfura a fruta e a atravessa em linha reta, sem a necessidade de percorrer toda a sua parte externa. A Ciência especula que não seria de estranhar se estes buracos fizessem com que o contribuinte voltasse ao passado ou avançasse ao futuro ao ser tolhido por um desses estranhos objetos. Não é muito louco?


Outro exemplo bacana de citar é a Teoria do Caos, cujo aforismo mais célebre é aquele que diz que o bater das asas de uma borboleta em Tóquio pode causar um furacão em Nova Iorque. Na verdade, esta é uma metáfora para ilustrar a dificuldade que existe para se estabelecer um sistema que objetive fazer previsões, como é o caso da meteorologia. É que os estudiosos somente conseguem precisão em sistemas lineares e sob condições ideais. O diabo é que a realidade é um todo muito mais complexo, com fatores de influência inimaginável. Vejam só: os cientistas podem medir a temperatura do sol incidindo por uma vasta porém metrificável área do oceano, calculando o tempo necessário para a formação de nuvens. Podem medir a pressão do ar e a influência das marés, para prever a espessura destas nuvens, bem como podem calcular no que a curvatura do planeta e a densidade e umidade atmosférica serão obstáculos ou benesses para a precipitação vindoura. Só não podem calcular ou prever o que o maroto ruflar de asas de uma diáfana borboleta pode causar de torvelinhos em todo esse majestoso ciclo. O que essa teoria nos diz não é somente que é absolutamente impossível prever todas as variáveis que influenciam os diferentes eventos, mas que talvez nem conheçamos todas. Se, no caso de nossa borboleta danadinha, todos os nossos movimentos são passíveis de previsibilidade, temos uma estrutura determinista da realidade. Se, por outro lado, temos a livre escolha do inseto em questão, nada é possível de vislumbrar. E essa é uma questão da Metafísica.
Descrever as características das coisas, o que há por trás de sua aparência, sua formação e transformação no tempo é estudar o Ser da coisa. Por isso, é possível dizer que todo o conhecimento tem base metafísica. E esse é o caminho em que a metafísica pode ser colocada sem perder sua atualidade.

E aí podemos voltar ao problema que coloquei no começo deste texto. Quando falamos em Metafísica nos dias de hoje, logo nos vem à mente a figura de um profeta errando pelo deserto, de um guru indiano sentado em uma cama de pregos, de um monge que ora voltado para o sol no cume de uma montanha, de uma entidade toda vestida de branco e de cujas mãos emana uma luminosidade que varia de um diáfano púrpura a um etéreo azul. Isso porque se vincula automaticamente o sobrenatural à esfera do esotérico, o que não é verdade, mas que também não é necessariamente falso, já que o fato de estar se tratando de Religião não é excludente do campo da Filosofia.
Se a especulação se basear em princípios racionais, tentando usar a lógica para fundear suas teorias, teremos Metafísica; se for baseada em princípios esotéricos, utilizando-se de explicações místicas, o produto é Religião. Nada contra uma nem contra a outra, absolutamente nada; só que “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”, na sábia assertiva do poeta. A Metafísica lança mão das leis gerais do raciocínio lógico, como a universalidade e a necessidade; a religiosidade prescinde delas. O que não é justo, nem para uma, nem para a outra, é jogá-las na mesma panela. Isso porque, se ao equiparar a Metafísica à Religião comete-se o erro de considerá-la imprecisa e desatrelada do racional, ao comparar-se a Religião à Metafísica arranca-se-lhe toda a carga de subjetividade inerente à ela, limitando-a drasticamente. Mas eu também disse que o simples fato de um argumento estar inserido na esfera da Teologia não o remove da Filosofia. Quer ver só?

Santo Agostinho foi um dos mais famosos filósofos da religião cristã, ao fazer uma releitura de Platão sob o olhar teológico. Já falei algo sobre ele neste texto. Observem a maneira (simplificada) de como ele desenvolve um raciocínio sobre relação entre a presença do mal no mundo e a percepção de que Deus é bom, conhecido como Teodicéia. O bom velhinho parte da premissa de que o homem é um ser racional, capaz de se defrontar com problemas e propor soluções para eles. Se o homem é capaz de fazer essas ilações, tem a liberdade de fazer escolhas, porque pode deduzir o que é bom e o que é ruim, o que é belo e o que é feio, o que é justo e o que é injusto. Tendo essa liberdade de escolha, tem também o homem a liberdade de ação, o que configura plenamente o livre-arbítrio. Ao ser titular desta característica, é possível ao homem praticar o bem ou o mal. Dessa forma, Santo Agostinho conclui que o mal não parte de Deus, mas do próprio homem, e não poderia ser diferente em um ser dotado de livre-arbítrio. Perceba-se que o desenvolvimento desta tese se faz no âmbito da Teologia, pois descreve o modo como transcendência (Deus) e imanência (ser humano) são colocadas à frente de uma questão moral fundamental, mas que não deixa de ser filosófica, porque não recorre a definições dogmáticas (do tipo “está escrito na Bíblia que Deus não é responsável pelo mal no mundo”), mas a raciocínios lógicos bem construídos, com características de universalidade e necessidade. Neste sentido, metafísica e religião podem conviver confortavelmente, porque estão uma a serviço da outra.
Titulei este texto prometendo apontar novos caminhos para a Metafísica, mas no final das contas não fiz isso, porque entendi que é desnecessário. Bergson já o fez em seu estudo sobre o tempo (leia aqui). Scheler também, ao tentar situar o homem no cosmos (veja este texto), assim como Heidegger, que nos manda voltar os olhos para nós mesmos se quisermos encontrar o Ser, o que ele chama de Dasein (deste, eu ainda vou falar). Onde houver a necessidade de se transcender o visível para abrir um caminho novo, ali ela estará.

Recomendações de leitura:
Existem inúmeros manuais de Filosofia que podem trazer boa base para se compreender um dos mais importantes tópicos filosóficos, mas o ideal é beber diretamente das fontes. Portanto, menciono as obras fundamentais dos dois pensadores que mencionei neste texto.

ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Edipro, 2012.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Vozes, 2012.