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sábado, 27 de julho de 2013

Ser estoico é ser heroico

Olá!

Desculpem todos os que estão lendo estas mal traçadas, mas não resisti à tentação da frasezinha ruim que nomina este texto. Também digo que essas novas regras gramaticais estão deixando o conjunto da frase algo absolutamente feio. Mas isso é bobagem, vamos ao que interessa.
Tenho um colega de trabalho chamado João Roberto (que é um cara legal, mas não tinha dezesseis – quem é dos 80 sabe do que estou falando), um tanto voluntarioso, e que gosta de defender com certo grau de propriedade as suas posições. Bem, esse modo de ser pode valer a pena em certas ocasiões, mas em outras é absolutamente problemático. Vez dessas, disse a ele: “Roberto, você precisa reagir estoicamente. Ser estoico é ser heroico”. Diante da sua cara de espanto e desconfiança, resolvi tratar ligeiramente sobre o assunto.
Uma hora aqui, outra hora ali, escuto alguém utilizando esse termo, com o sentido geral de ser resiliente, de aguentar porrada sem mover músculo, de manter a calma mesmo nas situações mais adversas. Mas ele designa um conjunto relativamente amplo de pensamentos filosóficos, muito maior do que a conotação moderna pode fazer supor. Isso tudo tem origem com um cidadão chamado Zenon, da cidade de Cítio, um lugarejo situado na ilha de Chipre, que naqueles tempos era possessão grega. Sua origem era semítica, o que lhe impedia de adquirir propriedades (e, em consequência, ser considerado cidadão grego). Por conta disso, não pode fundar uma escola na acepção da palavra, como a Academia de Platão, o Liceu de Aristóteles ou o Jardim de Epicuro (este último, contemporâneo seu). Para solucionar este problema, reunia seus alunos em um pórtico coberto. Como a palavra pórtico se diz Stoá em grego, seus seguidores ficaram conhecidos como estoicos, e sua corrente passou a ser denominada de estoicismo.
Ao contrário de outras doutrinas filosóficas, o estoicismo não possui um cânon fechado de princípios. Zenon foi um inaugurador, e não um mentor de pensamento inamovível. Além do mais, os escritos destes pensadores foram quase todos perdidos em sua raiz grega, restando apenas referências indiretas e comentadores, além da vertente definida pelo filósofo Crísipo (parcial, portanto) e pelos estoicos romanos, estes sim com bastantes manuscritos preservados. Desta forma, nunca é confortável estabelecer com rigor todos os fundamentos que nortearam esta escola. Mas vamos tentar.
O estoicismo tem um tripé a sustentar seu edifício, ou melhor dizendo, seu pomar (no dizer dos próprios). A Lógica é o muro que rodeia e dá guarida à plantação. A Cosmologia (Física) pode ser comparada às árvores, que, por sua vez, sustentam e dão possibilidade de existência aos frutos da Ética, seu objetivo último.
Falando sobre a lógica, o estoico entende-a como um crivo para a verdade, e que esta somente pode ser apreendida através dos sentidos, como já haviam proclamado alguns pré-socráticos e seria consagrado mais tarde, através dos empiristas. Há uma novidade, porém. Essa apreensão pressupõe uma aceitação por parte do sujeito que conhece, ela não se dá de maneira passiva. O processo de ver e ouvir pode ou não ser aceito como conhecimento, é preciso que eu esteja convencido do que me dizem os sentidos  para que eu estabeleça sua veracidade. É a lógica que é o critério regulador dos sentidos, porque sabemos o quanto eles podem distorcer a realidade. E o que temos é que, ao admitir algo como verdadeiro, esse balanceamento lógico e essa admissibilidade do objeto colocado defronte a si induz em nós uma representação, que os estoicos chamarão de katálepsis.
Pois bem. Essa forma de conceituar o conhecimento faz duas remissões, bem mais modernas: a do sujeito como participante do processo de conhecimento e a da importância da consciência na formação dos juízos, tão ao gosto da filosofia fenomenológica.  Nossos fragmentados gregos eram antigos, mas não antiquados...
Bom. Poderíamos dizer: “Oh! Que lindo! Sou partícipe de meu próprio saber. As coisas não são nada sem minha representação”. De fato, é muito poético. A lógica assegura a veracidade da representação, mas o que assegura a veracidade da concatenação lógica? Para sabermos, precisamos compreender como funciona a physis estoica, ou seja, quais as engrenagens que giram para manter o universo em funcionamento.
As correntes predominantes do estoicismo veem a Física de uma maneira inédita até então. Para começo, eles eram materialistas. Achavam que o Ser, para ser considerado como tal, deveria ser capaz da ação e do sofrimento. Ora, estas são características dos corpos, portanto o Ser coincide com o corpo, sem transcendê-lo. Isso quer dizer que o estoicismo é monista: não há nada além dos corpos, nem alma, nem espírito, nem nada que não seja imanente.
Neste sentido, podemos imediatamente concluir que os estoicos são ateus, correto? Tsc, tsc, tsc... muito pelo contrário. Vamos ver.
Vamos escalar nosso estagirita Aristóteles para nos ensinar sobre o Ser. Para ele, o Ser se explicava em causas, sendo que duas delas, a eficiente e a final, serviam para explicar o dinamismo das essências, traduzindo a origem e a finalidade do Ser. Mas, para designá-lo com exatidão, era preciso observá-lo estaticamente, verificando sua matéria e sua forma. A matéria explica o Ser em sua constituição física, daquilo que é feito. Já a forma dá razão de existir para a matéria, explica o Ser para além de sua matéria. A união entre matéria e forma era aquilo que Aristóteles chamava de sínolo, e apenas nele o Ser se tornava possível e tangível, já que a matéria isolada é meramente física e a forma isolada é puramente mental. Para que um cavalo seja um cavalo, é preciso que haja sua carne e seus ossos, e que saibamos que esse conjunto de células constitui um equino.
Os estoicos concordam com o sínolo de Aristóteles, mas com uma diferença fundamental. Enquanto para o dono do Liceu a forma é o aspecto do Ser que lhe define e dá expressão à matéria, para Zenon e seus asseclas a forma é um princípio ativo regido pelo Logos divino. Ou seja, Deus está presente em tudo e tudo tem Deus em sua constituição fundamental. Deus é corpo e faz parte dos corpos através da forma. O estoicismo é, pois, panteísta.
Além disso, a teologia estoica é uma ontologia, é o que podemos concluir. Podemos dizer que tudo o que existe é Deus? Sim, ao menos na forma. E o nada (não-ser), existe? Sim também. Deus coincide com todo o universo, mas, como os estoicos são materialistas, onde a matéria não existe, não há nada; nem Ser, nem alma, nem entes, nem Deus. Assim, as descontinuidades cósmicas estão desprovidas de Ser, porque são incorpóreas, principalmente se lembrarmos de que aquilo que define a corporeidade (e consequentemente o Ser) é a sua capacidade de agir e sofrer.


Este universo permeado pelo Logos divino é a expressão máxima da perfeição da divindade, já que ela está presente em tudo, inclusive em todo agir e sofrer. Todas as ocorrências são necessárias e eficazes, ainda que não seja possível perceber isso à primeira vista. As coisas singulares podem parecer defeituosas, mas isso é aparência; no complexo cósmico, cada coisa se justifica, cada ato se explica, cada sofrimento tem seu motivo. Mesmo sendo a matéria corruptível e os corpos destrutíveis, a perfeição permanece. Um belo dia, o cosmos tal qual conhecemos entrará em colapso e será destruído, para logo em seguida ressurgir, tal qual era nos primórdios, e sua nova existência se desenrolará de maneira idêntica à anterior, porque continua a ser a expressão de uma perfeição, e, se há perfeição, ela não pode ser diferente da outra; cada mar, cada ilha, cada casa, cada pessoa, cada inseto, cada história, cada doença, cada decepção, tudo se repetirá, idêntica e indefinidamente, até uma nova destruição e novo renascimento; e isso acontecerá mais uma vez, e outra, e mais outra, infinitamente...
Meus leitores, vocês devem estar pensando: “Ah, mas agora esse louco está falando do Eterno Retorno de Nietszche”. Não, errado! Nietszche é que se reportou aos estoicos ao inseri-lo em sua Filosofia. Só o sentido é diferente. Enquanto o bigodudo utiliza o eterno retorno simbolicamente para expressar os motivos pelos quais a vida deve valer a pena, Zenon e amigos concluem que a vida é fado, é sina, é destino, e é nisso que eles calcam sua famosa doutrina ética: a apatia.
Em primeiro lugar, cumpre fazer algumas observações sobre a palavra em si. Apatia vem da junção dos termos gregos A, que significa Não, e pathos, que significa paixão, catástrofe, sofrimento. Apatia, portanto, significa, não-paixão, não-dor. Perceba que o termo pathos está na raiz de palavras utilizadas tanto para designar o amor ardoroso dos amantes quanto a grandes dores, como é a Paixão de Cristo, por exemplo, ou é utilizado para designar doenças, como na palavra patologia, ou para designar pessoas dignas de pena, os patetas. De uma forma ou de outra, pathos está ligado a sentimentos intensos, exatamente o oposto do que pretende a apatia.
Andemos. Da mesma forma que a Eudaimonia aristotélica e o hedonismo epicureu, a ética estoica se baseia na busca da felicidade. E ser feliz significa viver harmonicamente com a natureza. A natureza humana é calcada na razão, no Logos, e como este é Deus na natureza, o homem tem “mais” Deus que as demais criaturas. Isso o obriga a ter ações moralmente mais aperfeiçoadas. Em nossa visão judaico-cristã, imaginamos que uma boa dose de orações fará com que tenhamos forças para encarar essas dificuldades sob o auxílio de Deus. Mas há uma diferença decisiva para os estoicos: Deus não possui uma ligação afetiva com sua criação. A divindade estoica não é pessoal, não sente misericórdia, não possui a relação paternal dos cristãos. Para resumir de um modo meio tosco: Deus existe, criou tudo e pulou fora, para cuidar do equilíbrio do universo; está se cagando para o homem, que tem de se virar sozinho com suas agruras. O destino já está dado, o fardo será carregado, seja ele qual for, e o sábio estoico sabe que a vida tem mais a ser suportado do que gozado; a verdadeira sabedoria está na apatia, no não sofrer. Isso significa se afastar e resistir a qualquer tipo de paixão ou de sentimentos, que são tidos como desviantes da razão. O caminho para a obtenção da apatia é o autocontrole e o costume em seu uso, o que hoje chamamos pelo pernóstico nome de resiliência.
Era isso. Poderia falar mais (por exemplo, que os estoicos formaram a primeira filosofia libertária, contrária à escravatura, já que, sendo panteísta, não achava digno que se escravizasse alguém que é parte de Deus), mas para explicar o uso contemporâneo do termo já me parece o suficiente.
Recomendação de leitura:
Infelizmente, não sobraram escritos originais dos primeiros estoicos, principalmente de Zenon. O melhor a fazer, nesse caso, é pegar um bom comentador e lê-lo. O livro abaixo é interessante:
BRUN, Jean. O estoicismo. Lisboa: Edições 70, 1986.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Do espelho quebrado ao genocídio armênio: as amarrações entre tradição e preconceito

Olá!

Faz muito pouco tempo atrás, escrevi um texto sobre as ideias de Antonio Gramschi (este). Dei bastante ênfase à oposição que nosso pequeno filósofo (na altura, bem entendido) dá entre a natureza e a cultura, e apenas pincelei muito superficialmente a questão da influência das tradições no conhecimento de uma determinada nação. Nestes tempos de pastores-deputados, Marcos Feliciano e seu apoio a uma pretensa cura gay, achei oportuno falar do tema com mais cuidado, sem esquecer o pensamento de outra grande filósofa, Hannah Arendt.


Então vamos lá. Gramsci, antes de mais nada, era um pensador de matriz marxista, o que implica em dizer que sua relação com a metafísica era materialista, ou seja, ele a negava. Desta forma, é possível compreender porque o bambino dizia que a visão folclorizada do conhecimento era falsa. A tradição não podia explicar as causas e consequências que fazem com que o mundo que nos rodeia seja o que é, mas apenas aceitá-lo da maneira como nos é apresentado. Essa posição tinha o mesmo valor de um dogma, uma verdade entregue pronta, monolítica, sem levar em conta critérios de filtragem de exageros, de exceções, de desvios, enfim, perdendo a referência entre a situação concreta que gerou uma tradição e seu desenrolar histórico. Nesta posição, esquecemos as origens simbólicas do folclore e o colocamos como algo real. É bem diferente de quando conscientemente descrevemos uma lenda ou um costume, porque desta forma temos uma ferramenta importante para compreender a formação física e ética de um povo. Neste caso, temos cultura, não é uma mera assunção da verdade.
O folclore e a tradição surgem espontaneamente, a partir da vivência das comunidades. São transmitidos oralmente de geração a geração e carecem de registro. Podem retratar um determinado aspecto social, uma condição política, um retrato dos medos, etc., e em geral tentam acomodar uma explicação a um fato ou fenômeno de difícil elucidação.  Como são acríticos (na concepção gramsciana), podem ter caráter mágico, carregados de sortilégios e maldições, que os distancia de uma visão calcada em critérios lógicos, como o quase inepto caso abaixo:
Um belo dia, um rapaz barbeia-se tranquilamente, quando ocorre um fato inusitado. Por conta do sabão existente em suas mãos, a navalha escorrega e cai. Num gesto instintivo, nosso distraído amigo tenta pegar o objeto cadente, esquecendo-se do seu poderio cortante. Ao talhar sua mão, faz um gesto de compressão e se abaixa, resvalando fortemente o seu espelho com a cabeça, o suficiente para quebrá-lo e levá-lo ao chão. Pronto, mil estilhaços para todo o lado, inclusive alguns cravados no pé do infeliz. Não é o que podemos chamar de bom começo de dia. O pior vem depois. Em um período relativamente curto de tempo, o mesmo azarado perde o emprego, a namorada, seu time não ganha mais nada, sua banda favorita desmanchou... Que tipo de desgraça aconteceu, meu Deus? Tudo se deu desde aquele dia do espelho... Aaaaaaaaaaaaaah, o espelho! Todo o revés começa ali!
E eis que mais uma lenda nasce: quebrar espelho dá sete anos de azar.
Lógico que esse é um exemplo prá lá de banal. O número sete aparece por uma questão mística, já que este é um número tido como esotérico (Epa! Outro folclore!). Nem sei se a historinha é assim mesmo ou se inventei um monte de coisa, mas o fato é que as coisas funcionam mesmo assim, e só a coloquei para começar a descrever como funciona o fenômeno. As coisas podem ser mais complicadas, querem ver só?
Vamos para outra história. Os antigos judeus eram povos errantes, que, como tantos outros, viviam em busca de territórios para estabelecer um espaço vital. Nos arredores de onde hoje fica situada a cidade de Jerusalém, existe um vale, chamado Geena, onde os povos que lá habitavam anteriormente praticavam sacrifícios humanos. Como esta era uma prática proibida entre os judeus, o lugar foi considerado maldito, e passou a ser aproveitado unicamente como depósito de lixo. Estranhamente, o lugar pegava fogo sem parar, aumentando seu aspecto aterrorizante, e os judeus passaram a considerar o lugar como o portal do inferno, local de castigo eterno. Vejam vocês, duas tradições em uma: o lugar amaldiçoado e o inferno como um lugar quente, próprio para castigo, ambos vinculados. Ninguém pensou no fato de que, ao transformar o lugar em lixão a céu aberto, seria produzida uma quantidade imensa de gás, que queimaria incessantemente, porque era permanentemente alimentada pelos despejos da cidade, e até hoje essa tradição é mantida – não o vale como lugar maldito, mas o inferno como lugar em constante ardência e destinado à pena eterna dos pecadores. Ainda em nossos dias Geena é sinônimo de inferno. Então temos uma explicação para um fenômeno em que não existiam meios de aferição científica, nos melhores moldes de toda a mitologia universal.
Mas este ainda é um exemplo circunscrito à esfera religiosa. A coisa pode ir para campos em que não só a verdade, mas também as pessoas passam a correr riscos. Vamos ver.
Que nome você dá para um serviço mal feito?
Imagine a seguinte situação: você é morador de um local onde seus ancestrais já viviam há anos, muitos anos. Lá, você conhece o clima, a vegetação, o solo. Desenvolve técnicas e ferramentas que permitem extrair o melhor possível deste ambiente. Sua relação com seu trabalho transcende seu aspecto pragmático, e passar a valer como obra de arte. Seus instrumentos passam a possuir referências às suas divindades e à sua história: há desenhos e inscrições em seus punhais, suas enxadas, suas pás, suas brocas; em suma, você desenvolve uma arte utilitária e sacralizada. Você aperfeiçoa ainda mais os insumos de seu ofício, lançando mão da metalurgia e de outras técnicas. No entanto, ao redor do local onde você mora, há outras comunidades, que desejam estender seus domínios. Entram em guerra com você, capturam-no, e vendem-no como escravo. Você é extraditado para uma terra longínqua, onde é obrigado a trabalhar, sob pena de sofrer torturas. Nesta terra, onde tudo é diferente do que você conhecia, sua tecnologia é inútil: o solo é diferente, as plantações são diferentes, o clima é diferente. As ferramentas que lhe são disponibilizadas nada tem a ver com aquelas que você criou, tão bem adaptadas às suas condições de trabalho anteriores. Também nada lhe é ensinado, é preciso compreender por si só todo o comportamento desse ambiente e como reage à sua intervenção. Tendo em vista todas estas condições, o resultado do seu trabalho é trôpego, insatisfatório, muitas vezes desastroso; e o seu senhor é intolerante, já que há dinheiro em jogo, e você precisa entregar seus frutos antes de qualquer adaptação ou aprendizado.
Seu serviço é mal feito. Você é negro. Você faz um serviço de preto.
Não adianta ocultar. É fato que todo mundo, pelo menos em nossas terras, sente um frio na espinha ao contratar um funcionário negro. Podemos apresentar um milhão de justificativas, mas isso já está escrito no nosso substrato. Já faz parte da nossa tradição mais arraigada, e é algo difícil de se desvencilhar. É esse tipo de efeito daninho que o folclore, compreendido como definição acrítica da realidade, que Gramsci entendia ser algo a ser eliminado.
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Certo, então. Podemos chegar à conclusão que a tradição, observada a partir de um ponto onde apenas e tão somente ela própria é focada, é uma grande geradora de preconceitos, e é exatamente aí que entra o pensamento da precitada Hannah Arendt.
Ela afirma que todo preconceito tem uma raiz histórica, ou seja, os preconceitos não nascem do vazio, mas de situações e circunstâncias que aconteceram em um determinado momento e que serviram para estabelecer um conceito inamovível sobre uma pessoa, ou uma etnia, ou um gênero. Este delineamento histórico ganha caráter de verdade absoluta, sendo aceito de maneira acrítica, e sendo agregado ao bojo intelectivo de uma maneira mais grudenta que visgo de jaca mole (quem já se melecou com jaca mole sabe do que estou falando). A frase de Einstein é muito famosa: “Época triste a nossa; é mais fácil quebrar um átomo que um preconceito”.
As pessoas se estabelecem em uma zona de conforto para não ter de vasculhar as origens dos conflitos de todo o tipo. Por isso mesmo, o preconceito tem uma característica mais sorrateira, mas que explica ainda melhor porque é tão difícil se desvencilhar dele. Livra o homem da necessidade de se expor a cada realidade e ter de compreendê-la antes da formação de um juízo. Por isso, as ideologias são tão eficazes: já trazem prontos os modelos de pensamento a serem compartilhados entre os indivíduos. As pessoas tem a tendência de encontrar uma justificativa para as coisas que não conseguem compreender, e, uma vez formado um determinado estereótipo, os encaixes a ele vão sendo cada vez mais utilizados. Acontece que há uma dinâmica na história que faz com que as transformações ocorridas no mecanismo ético, social e político sobrepujem os contextos em que estes estereótipos são engendrados, e eles acabam restando como uma herança perniciosa. Esta é a chave que tranca as nossas convicções.
Para compreender ainda melhor essa mecânica, vou partir para mais um exemplo. Peço perdão, mas este texto acabou ficando meio longo mesmo, mas o assunto é intrincado. Fazer o que?
Quando falamos em genocídio, logo pensamos no holocausto judeu da Segunda Guerra, ou nos massacres de Kosovo, bem mais recente. Acontece que houve um evento histórico menos conhecido, conhecido como Holocausto Armênio, em que uma etnia quase inteira foi exterminada. O fato se deu no início do século passado, mas suas raízes históricas são tremendamente mais distantes.
Os armênios são pouco conhecidos. Aqui em São Paulo, há uma comunidade importante na região da Ponte Pequena, entre o Pari e o Bom Retiro, que inclusive dá nome à estação de metrô lá existente. Seus sobrenomes costumam terminar em “ian”, característica única: Pedrossian, Balabanian, Karamitidjian, Poladian, Malghosian. Mas eles caem no pacote genérico dos “turcos”, assim como os sírios, libaneses et altrui. São chamados assim porque o império otomano dominava toda aquela região do Oriente Médio, e as certidões e passaportes eram emitidos, naturalmente, com os timbres e carimbos da Turquia. Como veremos adiante, isso era um motivo a mais para a dor e a raiva. Vieram em busca de uma terra que os acolhessem, assim como tantos outros imigrantes.
Os armênios habitam a região montanhosa do Cáucaso, famosa pelo monte Ararat (eles se consideram descendentes diretos de Noé) e por se constituir em espaço estratégico, na passagem da Europa para a Ásia e vice-versa. Sua formação se deu através de uma mistura de persas, sumérios, hititas e outros povos que por lá passaram. A característica de ser uma importante rota de ligação fez com que a posse da região nunca fosse tranquila. Dessa forma, o povo que lá habitava foi se tornando mais arredio e avesso aos estrangeiros, gerando uma cultura própria, muito endêmica, com costumes próprios e uma língua isolada, que constitui um desafio para os filólogos. É quase impossível encaixá-la em um dos troncos linguísticos habituais. Agravou muito o fato a disseminação do islamismo pelo local, em oposição ao cristianismo armênio, o que ocasionou forte colisão entre esses povos. Quando o império otomano dominou a região, por um bom tempo os armênios se mantiveram submetidos, porém relativamente autônomos. Esta autonomia, somada às diferenças culturais entre um povo da montanha e cristão e um povo planaltino e muçulmano, fez com que houvesse forte distinção entre ambos. Os armênios eram chamados de zhimmis, um tipo de subcidadão com menos direitos que os turcos típicos. Ao longo da história, os períodos em que os armênios gozavam de maior liberdade coincidiam com as suas maiores reivindicações por independência (em especial nas proximidades da Primeira Guerra Mundial), o que levou o império otomano a concluir que os armênios eram escorpiões que eles carregavam às suas costas. Até que chegou ao poder o grupo Ittihad, que, ao invés de conceder a independência requerida, achou melhor resolver o problema de outra forma: extinguindo o povo armênio. Fizeram isso porque pensavam que todas as gerações de armênios eram amaldiçoadas; um povo que viveria à espreita dos vacilos turcos para retomar territórios anteriormente conquistados.
O genocídio armênio teve proporções que fariam Hitler se sentir humilhado diante de sua pouca eficiência. O seu primeiro ato foi o massacre de 600 intelectuais armênios. A intenção é clara: desarmar a capacidade de articulação dos demais caucasianos. Em seguida, a partir de 1915, começa o verdadeiro extermínio. Os otomanos agiram principalmente de duas maneiras – assassinatos diretos e deportações para regiões desérticas. Algumas cidades, como Zeitun, foram totalmente dizimadas. Outras, como a cidade de Van, que tinha 197.000 habitantes e passou a ter 500 (sim, menos de meio por cento), tiveram como sobreviventes apenas velhos e meninas. Os armênios só não foram totalmente extintos porque uma pequena parte conseguiu fugir para o exterior, principalmente “comprando” a passagem para outros países através de soldados corruptos. Chegando aos seus destinos, passaram a ser chamados pelo gentílico de seus maiores inimigos, que tomaram suas casas, mataram seus pais e filhos, arrancaram-nos de suas terras, destruíram sua história. Não há um número preciso, mas é consenso que mais de 1,5 milhão de armênios morreram entre 1915 e 1922. Serem chamados de turcos era (e ainda é) mais ofensivo do que serem chamados de cachorros.
A recusa da Turquia em reconhecer o genocídio até hoje faz com que o preconceito se retroalimente. Para o armênio contemporâneo, os turcos ainda representam a maldade, a invasão e a morte. Vejam o que escreve o poeta Charles Apovian a respeito:
“Às vezes me perguntam: ‘Isso aconteceu há tanto tempo. Você nunca vai perdoar?’. Realmente é muito difícil perdoar o assassinato da minha avó paterna, dos meus dois avôs e de meus três tios. Mas como perdoar alguém que não pede perdão?”.
Dessa forma, podemos concluir que os pensamentos de Gramsci e Hannah Arendt se engendram, e é nisso que chegamos ao nosso ilustríssimo deputado Marco Feliciano, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados da República Federativa do Brasil. Nosso caríssimo é um poço de preconceitos porque baseia seu ideário em uma visão fundamentalista da religião que defende.
É preciso lembrar que o retro mencionado parlamentar foi defendido pela ex-senadora e candidata a presidência da república, Marina Silva. Ela disse que o deputado é atacado por preconceito contra sua religião.
Isso me parece uma belíssima falácia, mas então precisamos levar em conta um monte de coisas, se não quisermos nós mesmos ser preconceituosos também. Marcos Feliciano é pastor protestante neopentecostal, ramo religioso que prospera no Brasil. Um de seus dogmas é o sola scriptura, que consiste em ter na Bíblia sua única fonte teológica. Essa posição é única entre as religiões cristãs, já que o catolicismo romano e o ortodoxo creem em fontes externas, como o magistério e a tradição litúrgica, além do espiritismo kardecista, que acredita na constante intervenção dos círculos espirituais na construção das fontes teológicas.
Acontece que há uma dificuldade muito grande em se seguir a Bíblia. Não digo isso no sentido da abnegação que o cristão deve ter para seguir as regras lá descritas, mas na dificuldade que se encontra diante de suas contradições históricas e na aporia das traduções. Marcos Feliciano disse que os negros são descendentes de uma raça amaldiçoada, e por isso sofrem. Ele não está errado, na Bíblia está realmente descrito isso. O que acontece é que o nobilíssimo esquece (ou parece esquecer) que há contextos que devem ser levados em consideração, em especial se nos recordarmos que a Bíblia foi escrita a partir da tradição oral, por centenas de autores e em período muito longo, com precários meios de registro. Além disso, as línguas em que foram escritos estes textos já estão mortas ou muitíssimo alteradas. Por isso, essa maldição proferida por um raivoso patriarca talvez tenha de ser revista, afinal de contas muitas das regras e tradições descritas já foram revisitadas e reformadas, haja vista, por exemplo, que os sacrifícios de animais estão lá claramente preconizados. Devemos voltar a praticá-los? Também a Bíblia manda colocar os leprosos para fora da cidade. Por que não o fazemos mais? Porque hoje sabemos que a lepra não é uma maldição divina, mas uma doença causada por um bacilo, com antibióticos que permitem sua cura. Ah, mas a realidade hoje é outra, havia outro contexto... Exatamente, deputado. Havia outra realidade e contexto, tanto para os leprosos, quanto para os negros.
Isso explica muita coisa do que vivenciamos nos dias de hoje. Apegar-se a tradições fundamentalistas e não revistas é algo extremamente perigoso. Se não temos capacidade para lidar com nossos próprios preconceitos, melhor seria não tentar difundi-los aos outros. Não vejo muita diferença entre o holocausto armênio e as tentativas de modificar os costumes de grupos sociais que não prejudiquem a ninguém. Os turcos não tentaram eliminar somente o povo armênio, mas também sua cultura, seu modo de pensar. Fazer isso com qualquer grupo, ainda que de modo dissimulado, é igualmente violento.
Em tempo: não tenho rigorosamente nada contra o povo turco. Acho até mesmo injusto que tanta gente tenha que conviver com o peso de uma decisão governamental de não reconhecer os erros do passado. Por isso, procurei me ater em fatos. Não estou aqui procurando fazer nenhum ataque contra os mesmos.
Recomendações de leitura:
Sobre Gramsci, eu já falei e recomendei, conforme pode ser visto no post citado. Quanto à Hannah Arendt, filósofa das mais geniais, recomendo a seguinte obra:
ARENDT, Hannah. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009

Para conhecer mais sobre o Genocídio Armênio, o texto a seguir é bastante conciso e esclarecedor:
SUMMA, Renata de Figueiredo. Vozes armênias: memória de um genocídio. In: Revista Ética e Filosofia Política. Volume 10, nº 1. Juiz de Fora: UFJF, 2007. Disponível em: <http://www.ufjf.br/eticaefilosofia/files/2010/01/10_1_renata.pdf>