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quinta-feira, 16 de maio de 2013

Apontamentos sobre a (im)possibilidade de mensurar a boa arte

Olá!

Em fins do ano passado, meu amigo Vithor teceu, neste mesmo espaço, uma série de considerações com relação à concepção de boa arte, em um texto denominado (oh!) “A concepção da boa arte”. Em seus argumentos, maciçamente focados nas teses de Pierre Bourdieu, chegou à conclusão de que é impossível estabelecer uma barreira digna entre o que pode ser considerado como arte verdadeira e produto de consumo. Leiam e depois voltem aqui.
Vou tentar refutar estas teses, lançando mão de outros pensadores da Estética, em especial os alemães, aqueles que sistematizaram o estudo do conhecimento sensível. Iniciarei com um cara um pouco mais longínquo e com uma visão mais romântica da Filosofia. Trata-se de Friedrich Schlegel.

Esse alemão pensa a arte em termos de transcendência. A seu ver, há uma clara intenção do homem em buscar e atingir o infinito, mas, evidentemente, só possui meios finitos para tanto. Não é possível saltar o arco-íris, viver no reino das águas, regressar no tempo, rever antepassados mortos: tudo é marcado por limites físicos, temporais, espaciais. Daí que há um império da contingência; não conseguimos estabelecer a universalidade das coisas. Também estamos presos na imanência, sendo-nos defeso conhecer como se forma e que leis regem o metafísico espaço transcendental.
Não há nada a fazer, então? Há, sim. Segundo Schlegel, o gênio artístico é o único capaz de produzir uma síntese entre o finito e o infinito. A arte é ferramenta capaz de conectar os mundos do finito-infinito, contingente-necessário, particular-universal, imanente-transcendente, porque, apesar de se prender a ferramentas tangíveis (pincéis, instrumentos musicais, papel, pedras), consegue ir além destes materiais, ressignificando-os em pintura, música, literatura, escultura.


Ok. Mas é qualquer obra de arte que consegue produzir essa síntese? Não, evidentemente. É preciso que se consiga transcender, que se migre o significado, que se consiga intuir que aqueles materiais empregados tenham sido suficientes para produzir uma catarse semelhante àquela preconizada por Aristóteles. Só que essa catarse não é coletiva. A arte é apreendida individualmente. Então, haverá pessoas que conseguirão ser ligadas ao infinito, outras não. Para as primeiras, teremos a boa arte; para as demais, não.
Qual é a linha que define isso? Nenhuma. A cada um, as sensações serão disparadas em momentos distintos (ou mesmo nunca disparadas), conforme sua envergadura intelectual e sua intuição sensível. Dessa forma, chegamos à conclusão que a capacidade de efetuar a ligação com a transcendência (base da estética de Schlegel) não pode ser utilizada para diferenciar boa e má arte.

Pois é. Schlegel não serviu para derrubar a tese do Vitor. Vamos tentar Baumgarten.
Para Baumgarten, a Filosofia ocupou-se muito pouco em investigar os sentidos, ao contrário do que fez com a razão através da lógica e da vontade através da ética. Isso porque os sentidos apreendem o mundo de maneira dúbia e pessoal, ou seja, com imprecisão. No entanto, o conhecimento sensível tem a possibilidade de perceber a perfeição, e isso acontece quando é captada a perfeição do belo. Assim nasce a Estética, e a sua plenitude é a apreciação da obra de arte.

A arte, em seu entender, tem a possibilidade de operar uma transmutação: pode transformar um objeto feio em uma obra bela, e isso se dá pela perfeição do conhecimento sensível. O sentimento que denota essa característica é o prazer, pedra basilar da apreciação estética. É através dele que se opera o milagre da percepção intelectiva da genialidade do artista. Simplificando, a boa obra de arte é aquela que ocasiona prazer a quem dela obtém a contemplação.
Parece que de fato só podemos considerar uma obra de arte como tal se dela extraímos uma sensação de prazer. Mas vamos analisar o quadro Guernica, de Pablo Picasso:

Em um primeiro instante, podemos falar em prazer em sua apreciação? Certamente não. Trata-se de um retrato cru e distorcido de uma cena de guerra: o bombardeio da cidade de Guernica pela aviação nazista alemã, em plena guerra civil espanhola. Não se trata de um objeto feio modificado em cena bela. A feiúra, a destruição, a desgraça, todos permanecem. E, no entanto, sabemos se tratar de uma exuberante obra de arte, plena de significados. Sua beleza reside na ideia que transmite, não na beleza plástica. O fato de expressar o feio pela feiúra não a diminui em nada. Como essa ideia de comunicação não se destina à beleza, a concepção de boa arte de Baumgarten não se aplica ao caso, e a teoria do Vithor permanece.

Vamos tentar com Johann Winckelmann, então. Para este filósofo da Estética Clássica Alemã, a arte extrai sua beleza das proporções observadas na natureza, mas a transcende. Da arte, podemos obter o ideal. Isso é conseguido porque o artista não é só hábil em sua técnica, mas é sábio; consegue realizar aquilo que não é obtido diretamente da contemplação natural, mas aperfeiçoá-la de maneiras impensadas anteriormente. Desta forma, vincula os sentidos à razão. A beleza é mensurável, é passível de comparação, porque é possível estender uma régua entre o quanto duas obras contêm de idealização e perfeição.
Será mesmo? Vamos tentar comparar dois pintores contemporâneos: René Magritte e Henry Matisse.





Na primeira tela, observamos uma composição abstrata baseada em proporções naturais, ainda que inteiramente surreal. A noção de ideal está aqui, há rigor tanto no retrato das pernas femininas quanto na cabeça de peixe – uma sereia invertida. O hábitat é plausível e bem proporcionado, e a coloração é bastante sóbria.
Quanto à tela de Matisse, pintor fauvista, a abstração não está na concepção da figura mítica retratada, mas na cor, extraída pura das bisnagas de tinta a óleo. O retrato é de mulher, mas o jogo de cores amareladas e o traço verde em seu rosto, aliado às diferenças de precisão e distorção no contorno invisível a tornam impossível.

Como é possível estabelecer uma divisão entre ambas que identifique qual é mais bela. Esbarramos na subjetividade e constatamos que, se Winckelmann for levado plenamente em conta, toda a arte moderna deve ser descartada. Aqui também não deu.
Aproximemo-nos de Friedrich Hölderlin agora. Vamos ver o que é possível fazer com suas idéias. Para ele, que analisou profundamente a tragédia grega, a natureza é aórgica, ligada ilimitada e universalmente ao transcendente, enquanto a arte é orgânica, passível de compreensão e racionalização. A natureza aórgica é origem e fim, a arte é meio que atua neste espaço. A arte é princípio de harmonia entre o real palpável e o Absoluto divino. A boa arte aproxima o mundo da infinitude do universo sem, no entanto, tocá-lo. É através da intuição intelectual que essa aproximação se dá. A tragédia consiste exatamente nessa impossibilidade de preencher o espaço que há entre finito e infinito, ou seja, a transcendência absoluta é inalcançável em termos humanos e só se dá através da morte. Esse é o destino inexorável do herói trágico.


Então vamos pensar no concretismo, que, como o próprio nome induz, trata do material. A tela abaixo é de Piet Mondrian:


Quanta simplicidade, não? Se a compararmos com uma obra do Barroco, ela parecerá até mesmo ingênua. Dá a impressão de se tratar de uma maneira menor de se expressar. Nada há que denuncie uma aproximação transcendental, ou uma ocupação do espaço que nos é permitido pela imanência, servindo de ponte ao infinito, do modo que disciplinou Hölderlin (e Schlegel também). No entanto, este holandês fundou uma nova escola, capaz de conduzir à abstração com pouquíssima linguagem. Já volto a falar dele, mas, por enquanto, ponto para o Vithor.
Poderia continuar tratando da questão e trazendo pensadores ad infinitum, ou mesmo me aprofundar mais nos estetas aqui cuidados, mas sempre vamos esbarrar na questão da subjetividade. E, a bem da verdade, o problema do desvio dos sentidos foi tratado à exaustão na Filosofia, desde a Grécia antiga. Se a Estética é exatamente o estudo do conhecimento sensível, tentar colocá-la em termos objetivos é uma grande armadilha. A solução, a meu ver, é conceituar a boa arte como algo subjetivo. E como fazê-lo?

Imagino que a boa arte deve ser pensada em termos de experiência cultural, ou seja, quanto mais a contemplação estética me traz conhecimento, melhor ela será para mim. Assim, a boa arte é boa arte PARA MIM.

A arte, para ser considerada boa para mim, não pode se limitar unicamente ao prazer proporcionado, mas deve ser indissociável do conhecimento, sob pena de se tornar vazia. Só posso compreendê-la adequadamente se eu procurar me aprofundar nos motivos e circunstâncias que levaram o artista a se expressar daquela forma. Retomando Mondrian, pergunto-me porque ele resolveu elaborar telas tão simples. Mondrian era um pintor convencional, que pintava retratos e paisagens de modo semelhante a tantos outros...


... mas com o passar do tempo, percebeu que alguns dos elementos que queria retratar eram mais significativos que os outros, e passou a enfatizá-los em suas composições...


... e acabou percebendo que em poucas linhas e cores era perfeitamente possível dar luz ao ambiente que gostaria de expressar...


... até chegar à conclusão que os elementos verdadeiramente essenciais podiam ser totalmente reinventados, através da sua desconstrução, do endireitamento das curvas, do espessamento dos contornos e da decomposição das cores, chegando aos seus elementos mais primitivos.
Pois aí está. Temos, a partir de agora, uma visão completamente diferente  da arte de Mondrian. Tivemos uma experiência cultural, que nos agregou conhecimentos e ampliou nosso próprio olhar sobre o mundo. A partir de agora, podemos deixar de ver Mondrian como um fazedor de rabiscos que as pessoas adquirem apenas para parecer diferentes e passar a entendê-lo em sua genialidade – ou não, a arte não pode ser tirânica.
Isso quer dizer que devemos considerar os le-leque-leque-leques da vida como autênticas obras de arte? Depende de cada um. Para mim, individualmente, não. Isso porque ela não me agrega nada. Trata-se da repetição de fórmulas condicionantes que os pensadores da Escola de Frankfurt tão bem delinearam. 

Mas se eu já passei dessa fase, não quer dizer que um garoto qualquer não lhe considere útil e prazerosa. A partir dessa “música”, o jovem em questão pode tentar descobrir o que é funk de verdade, sofrer uma sensação de estranhamento, gostar. Pode procurar autores melhores, mais elaborados, ampliando seus horizontes. Pode conhecer novas linhas melódicas, harmonias cada vez mais complexas. Pode tentar supor como seria se estas melodias fossem executadas por instrumentos cada vez mais incomuns, apreciando os novos timbres e sonoridades, em uma escala propedêutica ilimitada. E, não mais do que de repente, se veja em uma sala de concertos, em atenta audição de uma sinfonia de Dvorák. Isso tudo se souber o quanto a mídia é massificante e resistir ao seu ataque. Nesse sentido, a arte não é apenas ferramenta do conhecimento, mas é ferramenta da liberdade.

Resumo final: concordo com as teses bourdieunianas do Vithor, assino-as embaixo e acrescento que é muito despótico de nossa parte querer estabelecer uma linha divisória entre boa e má arte para além de nós mesmos.
Recomendações de leitura:
Para saber mais sobre Schlegel (que não tem obras traduzidas para o português):
BECKENKAMP, Joãozinho. Entre Kant e Hegel. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

Obra-prima de Baumgarten:
BAUMGARTEN, Alexander. Estética: a lógica da arte e do poema. Petrópolis: Vozes, 1993.

Obra-prima de Winckelmann:


WINCKELMANN, Johann J. História da arte antiga. Porto Alegre: Movimento, 1975.

Obra-prima de Hölderlin, que também era poeta:


HÖLDERLIN, Friedrich. A morte de Empédocles. São Paulo: Iluminuras, 2008.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

A alegria e a exclusão na obra de Toulouse-Lautrec

Olá!

Já falei bastante sobre obras de arte neste espaço, mas nunca me referi à pintura, não é mesmo? Pois vou fazê-lo agora.

No sábado retrasado, estava fazendo uma costumeira escavação em um sebo perto de casa, e acabei encontrando alguns livros de arte a preços honestos. Como o dinheiro é pouco mas a vontade é imperiosa, acabei por adquirir um catálogo de pranchas da coleção Taschen, com algumas obras de meu pintor favorito: Henry de Toulouse-Lautrec. Acabei encontrando também uma pequena biografia, e aumentei o rombo do orçamento.

Lautrec talvez não seja o máximo de talento técnico que conheço. Caras como Velásquez, Renoir, Caravaggio, Monet e outros podem até ser mais hábeis no trato com as tintas. Mas há dois grandes encantos na obra de nosso querido anão: a capacidade de transformar anúncios em obras de arte e a visão social sem preconceitos de um submundo que, se ainda hoje é um dos mais excluídos, tanto mais não era em fins do século XIX: a prostituição.

É preciso contar algumas coisas da vida do baixinho. Ele nasceu de família muito rica, mas tinha uma compleição frágil. Dois tombos na puberdade fizeram com que suas pernas parassem de crescer e se deformassem. Como isso o impediu de se lançar em aventuras mais ousadas, passou a se dedicar mais profundamente aos seus dois maiores talentos: a pintura e a vida noturna, com suas consequentes bebedeiras (sua aristocrática família nunca apreciou muito este segundo dom).
Lautrec praticamente armou acampamento (e barracas!) nos cabarés da região boêmia de Paris, um bairro chamado Montmartre. Lá, não apenas fruiu, mas conviveu com as prostitutas, dançarinas, beberrões, frequentadores e outros personagens deste mundo alternativo. O seu olhar agudo e sua sensibilidade mostrou o quanto de humano existia não só no lado colorido dos cabarés, suas danças e luzes, mulheres exuberantes e homens divertidos, mas exibiu também o dia-a-dia comum dos bastidores.

Lautrec só se colocou um limite, que no final das contas é a prova maior de sua consciência social: não retratou aquilo que mais caracteriza a prostituição em si mesma, que é o ato sexual. Suas telas retratam esse mundo e seus respectivos bastidores em sua plenitude, demonstrando a humanidade contida em seus personagens, incluindo alegria e decepção, performance e cansaço, realidade e ilusão, esbanjamento e mazela, tornando sua obra dialética e social.

É difícil enquadrar seu estilo. Certamente recebeu influências do impressionismo, grande admirador que era de Monet, Renoir, Degas e companhia bela. Também trafegou pelo expressionismo e fez uso das técnicas orientais de contorno e cor. Suas telas reproduzem a luz viva dos ambientes fechados, não se importando muito com técnicas de claro-escuro ou com nuances ambientais. Seu interesse é mostrar os rostos da forma que efetivamente são, sem disfarces. Empregou largamente a litografia, de onde extraía seus famosos cartazes, e deu à publicidade um significado novo, misturando a idéia a ser transmitida com arte.
Lautrec, apesar de sua origem aristocrática, cuidou de espelhar uma Paris que, apesar de seus encantos, tinha também suas periferias e excluídos. Vamos analisar brevemente alguns de seus trabalhos, iniciando pela extraordinária tela La Blanchisseuse, de 1887:

Nesta obra, de traço eminentemente impressionista, Lautrec retrata uma engomadeira no transcurso de seu trabalho. Pela sua posição, não conseguimos focar diretamente o rosto da moça em questão, mas é possível perceber sua beleza. No entanto, notamos toda a sua exaustão, derivada de um trabalho extenuante a que eram submetidas as classes mais humildes. Seu olhar se volta para a luminosidade vinda da janela, mas suas mãos desgastadas e sua roupa em flagrante desalinho denunciam que essa luz não lhe traz esperança, mas apenas a consciência de sua pouca liberdade. Os móveis toscos e o aspecto de caverna que possui o cômodo onde exerce seu ofício emolduram esse aspecto pobre e seus parcos recursos. Os cabelos da engomadeira velam seu rosto. Há uma intenção em demonstrar um muro entre a menina retratada e a pessoa que a observa. Esse muro é social e psicológico; não há possibilidade de desvelar seus pensamentos nem de decifrar o quanto sua pobreza afeta seu caráter, mas percebe-se com evidência o exaurimento de sua vontade.

Partamos agora para o cabaré. Vamos analisar a cena retratada em Au Bal du Moulin de la Galette, de 1889:

Aqui vemos um Lautrec amadurecido em sua técnica de dupla perspectiva. A direção em que foi observado o balcão e as linhas do assoalho constituem na tela dois pontos de fuga, que delineiam a multidão dançante no fundo do cenário, gerando um enquadramento compacto. No primeiro plano, logo atrás do balcão, podemos focar o rosto das personagens que optaram por beber ou repousar. Em cada um deles, uma história diferente para contar. Alguns dirigem sua atenção para o baile, enquanto uma mulher lança seu olhar para fora da cena principal, ou mesmo do quadro. Estão claramente na posição de observadores, e formam a primeira fila de quem aprecia a obra em questão, propondo uma interação com quem está do lado de fora – no caso, nós.

Vamos agora para o lado de trás da cena. Vamos observar a tela Rue des Moulins, L’inspection médicale, de 1894:

Aqui podemos analisar uma cena comum que insere firmemente as prostitutas em um submundo.  As visitas de inspeção sanitária eram tremendamente comuns e invasivas, e o principal objetivo desta rotina era mais verificar a saúde genital das prostitutas do que propriamente as instalações físicas dos estabelecimentos. Desta forma, flagrantemente vemos as mulheres colocadas na condição de objetos. Lautrec toma partido desta condição ao retratar a situação humilhante a que eram submetidas essas pessoas, ao verem suas intimidades devassadas. Perceba-se como a tela é estruturada a denunciar uma cena que se assemelha à uma operação de fiscalização de rebanho, com as meretrizes alinhadas em filas, de saias já devidamente erguidas. Apesar disso, seus rostos transparecem um certa altivez, como que já endurecidas pelo hábito. Esta é a prova do lado cínico da sociedade (que eu já havia observado neste post). A inspeção não levava em conta as necessidades das meretrizes, mas apenas garantir a boa saúde de seus frequentadores, em geral membros da classe média.

Por fim, vamos observar as técnicas publicitárias de nosso pequeno gênio. Vamos ver o que o cartaz Moulin Rouge – La Goulue, de 1891, tem a nos dizer:

Em um primeiro olhar, é uma composição aparentemente simples, onde vemos três elementos básicos: a jovem vedete Louise Weber, conhecida como La Goulue (jovem mesmo – tinha 16 anos à época!), está no centro do cartaz, em pleno desenvolvimento de sua performance. Em papel coadjuvante, temos em primeiro plano a figura quase fantasmagórica de Valentin, le Désossé, um dos melhores bailarinos de Montmartre. Ao fundo, a turba de anônimos representados pelas suas silhuetas, assistindo atentamente o desenrolar da apresentação. Lautrec usa e abusa das técnicas de contorno oriental e da luz chapada. O cartaz foi desenvolvido em suporte litográfico, de modo a permitir várias reimpressões (vejam os pulos que o artista precisava dar para levar a cabo seu trabalho naqueles tempos). Essa simplicidade de composição ocultava uma nova teoria publicitária, que é utilizada largamente nos dias de hoje: uma imagem fala mais do que mil palavras.

Toulouse-Lautrec tem uma rara capacidade de constituir imagens mentais e de conseguir reproduzi-las em seus trabalhos. Um pequeno flash é suficiente para que o artista consiga transpor-nos para o centro da cena. Somos partícipes do desenrolar da performance, também nós estamos no palco, e com isso conseguimos deduzir precisamente o clima daquele ambiente. Ao contrário da práxis publicitária de então, constatamos que as palavras são poucas, limitando-se ao nome do cabaré e da atração. Elas são desnecessárias, não podem informar mais do que já está exposto.
O que mais me causa admiração em nosso pequeno francês é seu talento para retratar a alegria sem esquecer das misérias, ou, invertendo a lógica, ser testemunha das mazelas sociais que compõem um mundo exuberante. Nesse sentido, Lautrec consegue constituir uma sociologia dos bordéis, onde um universo de aparências é exibido em todos os seus estratos , a forma como é construído com tijolos moldados na dor de cada um.

O baixinho, ao mesmo tempo, denuncia e celebra a vida. A sensibilidade dos artistas geralmente constitui armadilha contra si mesmos, por conta do inconformismo e ausência de sentimento de pertença e lugar no mundo. Van Gogh se matou, e Gauguin só não fez o mesmo porque a quantidade de veneno que ingeriu foi tanta que o fez vomitar. Lautrec preferiu viver intensamente a vida, o que ajudou em seu fim precoce aos 34 anos, mas, mesmo tendo problemas físicos reais, que o fizeram andar apoiado a uma bengala desde sua juventude e o impôs grandes limitações de acesso, resolveu que a existência vale a pena, o que foi francamente demonstrado em sua obra.
Recomendações:
O MASP possui algumas obras de Toulouse-Lautrec. É um programa que vale muito a pena, pela riqueza estética que se pode presenciar em um dos cartões postais de nossa cidade. O endereço é o seguinte:
MASP – Museu de Arte de São Paulo. Avenida Paulista, 1578 – Bela Vista –São Paulo/SP

A coleção Taschen é um primor de capricho. Além das belas pranchas reproduzidas em alta qualidade, os textos que as acompanham são muito esclarecedores.
NERET, Gilles. Toulouse-Lautrec. Rio de Janeiro: Taschen, 1990.

Também existe uma pequena biografia contendo algumas pranchas em menor formato:
HENRI DE TOULOUSE-LAUTREC. Coleção Mestres da Pintura. São Paulo: Abril, 1977.