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segunda-feira, 29 de abril de 2013

Sobre a oposição entre cultura e natureza

Olá!

Em uma recomendação de artigo que vi em um debate entre alunos (um deles é afilhada minha), revi alguma coisa sobre um filósofo que há algum tempo não repassava meus olhos, o italiano Antonio Gramsci. No artigo, havia uma pergunta-desafio que questiona sobre a pertinência da afirmação de que a cultura distancia o homem da natureza. Achei bacana fazer algumas considerações a respeito, que seguem abaixo.

Iniciando, devemos colocar que Gramsci diferenciava claramente o folclore do conhecimento. Ele entendia o folclore de uma maneira diferente de nossa atual concepção. Para ele, não representa o conjunto de saberes populares, eminentemente empíricos, mas um conjunto de tradições que perderam a ligação com sua própria origem. É um conhecimento que escapa de qualquer juízo crítico, e nem mesmo é digno deste nome, porque perde seus laços com a realidade. Nessa visão, o folclore é um costume arraigado que já não sabemos dizer porque o temos. O folclore não representa cultura, mas mistificação. Só que é o folclore que tem ligações mais fortes com a natureza.
Gramsci entende que a cultura afasta o homem da natureza porque coloca ambos em oposição. Quanto mais o homem adquire saberes, mais se afasta de seu estado bruto, de sua condição animal. A cultura só é possível se colocarmos nela um sentido abstrato. Esse sentido pode ser artístico, religioso, metafísico, mas é, de uma forma ou de outra, algo que vai além da materialidade do concreto, do tangível. Partamos para alguns exemplos: quando observamos uma tela, não nos atemos unicamente ao material utilizado, como as tintas, os vernizes, as colagens, bem como não nos fechamos exclusivamente na figura fisicamente retratada, mas temos a capacidade de lidar metaforicamente com a forma expressa. Uma mulher não é apenas o retrato de um ser humano do sexo feminino, mas um símbolo da beleza, da sensualidade; o cais de um porto não é o local onde atracam e de onde partem os navios, mas é um distintivo da despedida e das saudades; um trem correndo nos trilhos não representa unicamente um meio de transporte, é também símbolo do destino inexorável, da força que nada pode deter. O homem é o único ser capaz de articular com símbolos, e este é um dos seus principais distintivos. Quanto mais o homem se aprofunda na cultura, tanto mais desenvolve sua capacidade de trabalhar com dimensões abstratas, e a cada vez que isso ocorre, amplifica-se seu distanciamento de um estado bruto, ou seja, de sua natureza como animal e, por extensão, destaca-se da natureza como um todo.
Quando pensamos na humanidade como o conjunto de seres físicos dotados de articulação simbólica (como já falei neste e neste post) e abstração, e se concluirmos que o patrimônio cultural humano tem sua riqueza expressa pela transmissão e acumulação de conhecimento, teremos que o homem não é nada dissociado de seu sentido histórico. As transformações do ambiente, a relação do homem com a natureza, entre si e com os demais seres, estão todas escritas na história. Sua natureza exige historicidade e, no limite, cultura.
Em um primeiro momento,  pode parecer que o afastamento da natureza pela via da cultura fará com que o homem não tenha mais capacidade de se relacionar com o meio ambiente mais preservado. O sentido não é esse, e, até pelo contrário, é fator que tende a beneficiar esse contato, justamente por ampliar a bagagem de recursos que temos para conhecer o que é bom e o que é ruim no desenvolvimento destas relações, como é, por exemplo, o caso da ecologia e da engenharia ambiental.
Muitíssimo bem. Descrevemos o efeito, mas vamos tentar compreender a causa. Mas, para entender como Gramsci chegou a estas conclusões, precisamos dar uma bela volta.
Em primeiro lugar, é preciso saber que nosso herói foi o pioneiro do marxismo na Itália, que nos idos de 1920 tinha como filosofia preponderante o historicismo de Benedetto Croce (filósofo interessante, é bom conhecê-lo – entender não é concordar). Nessa linha de pensamento, a filosofia aproxima-se da História mas se mantém distante do fato histórico. Ela tem caráter especulativo, aproximando-a da metafísica. Para Gramsci, a filosofia deve partir de um princípio oposto, que é a ligação direta com os fatos. Não se pode utilizar métodos que não possam ser verificados no transcurso dos contextos históricos, sob a pena de não se chegar a lugar nenhum. Funda uma filosofia da práxis, que não assumirá possibilidades que não tem como aferir. Isso significa que as explicações dos fatos devem se ver livres de quaisquer resquícios de misticismo e transcendência, inclusive filosóficos, desprezando a especulação e focando-se no tempo e espaço em que a humanidade vive. Assim, cada teoria deve ser confrontada dialeticamente com a prática para conferir a validade de suas teses.
Com base nesses princípios, Gramsci elabora sua tese mais central, que é a teoria da hegemonia. De acordo com o marxismo clássico, a sociedade é estruturada em classes. Para que uma delas possa repassar seu ideário às demais, é necessário que tenha a propriedade de possuir autoconsciência e obter consenso dentro de si mesma, gerando uma noção clara de princípios e organização. Essa é a chave para que reúna condições de se tornar uma classe de vanguarda, em condições de liderar, ou seja, uma classe dirigente, ainda que não esteja no poder. O passo seguinte consiste na transmigração dessa autoconsciência para as demais classes componentes do organismo social, convencendo-as de sua capacidade de guiar seus caminhos. Essa capacidade se fundeia no confronto com a impossibilidade da classe dirigente no exercício do poder dar respostas às questões das classes que lhe são subalternas. Ao receber o consentimento da maioria social, a nova classe dirigente passa a ser classe dominante, estabelecendo uma hegemonia que lhe permite acessar os meios de exercício de poder. Essa transição nem sempre ocorre de maneira pacífica, podendo ocorrer a violência e a guerra.
Nesse ponto, as elucubrações de Gramsci começam a se distanciar do marxismo clássico, que preconiza motivos econômicos para a luta de classes. Nosso italianinho vê na educação o principal motor da revolução social.
Como já disse, uma classe que pretende dirigir deve possuir consciência de si mesma. Isso significa conhecer seu papel histórico, saber porque é oprimida e até onde pretende chegar. Para tanto, é necessário que todos os seus componentes tenham acesso à cultura geral. Isso ia de encontro às teses fascistas então em voga, que isolavam o saber das classes subalternas ao trabalho, enquanto a cultura em um sentido mais amplo era reservada à elite dominante. Não é possível  que um indivíduo possa compreender adequadamente sua posição no universo se a ele é destinada apenas uma parte do todo. O ensino deve ser completo, holístico, total, e só dessa forma a pessoa tem ferramentas de conscientização.
Com isso, a escola deve ser humanista, e não meramente tecnicista.  Os alunos precisam aprender as leis e mecanismos que regem sua vida. Não se trata de saber apenas que “Ivo viu a uva”, mas saber quem é Ivo, qual é sua origem e seu papel na mecânica social, de onde veio a uva que o Ivo viu, como foi cultivada, se custa caro ou barato e et cetera (Esse exemplo é de Paulo Freire, que obviamente bebeu em fontes gramscianas). Dando a ferramenta do conhecimento e da compreensão ao povo, quebra-se a alienação e forma-se um novo consenso e uma nova consciência, constituindo as necessidades de entendimento do lugar histórico e função social. Essa unidade é imprescindível para que a classe em questão consiga apontar caminhos para a solução dos conflitos de forma mais adequada que a classe politicamente dominante. Esta só consegue se manter no poder por conta da posse dos meios de coerção, mas que viverá ad aeternum na dependência de suas armas.
Com esses princípios, Gramsci pensa na necessidade da existência do intelectual ativo. Não basta que o pensador elabore suas teses acerca da cultura, é preciso que ele as coloque em prática, transmitindo seu conhecimento às massas e educando-as. Esses intelectuais são oriundos da própria classe, e deve devolver a ela o seu saber, em um processo de retroalimentação. Isolar os pensadores é um erro, que tem a tendência em colocá-los em uma nova classe, destacada daquela a quem deveriam dedicar seus esforços.
Gramsci é um intelectual interessante, que foi seminal para as teorias educacionais que se desenvolveram a partir da década de 1960, quando os seus escritos da prisão começaram a ter maior divulgação. Espero ter ajudado a jogar um pouquinho mais de luz sobre a questão levantada pelo artigo.
Recomendação de leitura:
A obra de Gramsci foi, em sua maior parte, escrita na prisão. Por isso mesmo, é bastante fragmentária, o que não a torna menos edificante.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

sábado, 27 de abril de 2013

Sobre os novos acompanhantes dos navios negreiros

Olá!

Olhem só que coisa curiosa. No último sábado, fui presenciar, pela primeira vez na minha vida, um casamento homoafetivo. Desde que recebi o convite, meu lado progressista começou a me dizer:
- Oba, novidades!!!
Já meu lado conservador me cochichava:
- Xi, novidades!!!
Trocando em miúdos – se por um lado eu achava interessante e curioso observar como se modifica a história e a sociedade diante dos meus olhos, por outro fiquei um pouco retraído por achar que um eventual “excesso” de modernidade viesse trazer o desconforto típico de quem vê suas convicções e seu modo de ser discutidos. É muito difícil para nós aceitar pacificamente que se contestem fatos que nos foram colocados, desde a infância, como axiomas incontestáveis. Lembram da famosa quadrinha?

Homem com homemMulher com mulher
Faca sem ponta

Galinha sem pé
Dessa forma, estava em uma posição um pouco estranha, ensanduichado entre minha necessidade de crer que qualquer maneira de amor vale a pena e meus preconceitos.

Acabou que foi tudo muito bonito. As noivas transpareciam uma felicidade sincera, muito mais do que nos megaeventos em que se transformaram os casamentos ditos convencionais, que parecem tentar condensar em um único dia todo o conto de fadas que se deseja ter na vida conjugal. É bem verdade que um certo ar de “não sei o que fazer agora” estava assentado à frente da juíza de paz, que também tinha diante de si a novidade do primeiro casamento homo ocorrido em seu cartório. Mas aos poucos o ambiente foi desanuviando (e nem temos a desculpa do álcool, ausente que estava), as pessoas se soltaram e se divertiam muito, em uma festa bastante singela – um café da manhã. O luxo do evento consistia basicamente na presença de um competente saxofonista, acompanhado de ótimo repertório. Tudo veio num crescendo até o clímax, quando o bolo foi cortado ao som de Carinhoso, do Pixinguinha. O clima já estava tão bom que a música foi cantada em uníssono.


Desejo às noivas muito boa sorte, e que a felicidade seja a tônica de seu convívio. Ambas saíram de casamentos convencionais frustrados, e vão encontrar uma sociedade ainda indisposta a reconhecê-las como senhoras de suas vidas. Não se modifica a estrutura social do dia para a noite.

A maneira como o mecanismo social enxerga o sexo se baseia na dicotomia reprodução e prazer, sendo que a primeira seria o objetivo precípuo da espécie, que é se preservar. Quanto ao segundo, além de secundário, tem todo um substrato de pecaminosidade, de erro, de disfunção. Toda prática sexual que divirja do modelo papai-mamãe, como o sexo oral e o sexo anal, são ainda enquadrados pelo viés do tabu. Neste sentido, nossa sociedade é cínica. Isso porque sabemos da facilidade de encontrar amantes e prostitutas, que realizam desejos ocultos que não são admissíveis para os impolutos cônjuges.

Pior ainda é a relação entre pessoas do mesmo sexo. É sabido que este é um mato do qual não sai coelho, e por isso mesmo não há como se falar em função procriatória da sexualidade, mas apenas e tão somente do prazer.
Ora, nossa sociedade não é calcada no hedonismo em todos os aspectos? Por que deveria ser diferente aqui? Os homoafetivos querem casar, viver juntos, compartilhar o plano de saúde, fazer declaração conjunta do imposto de renda, sem que nada disso tenha o peso de uma condenação.

Quando eu escrevi sobre a parada gay, meu amigo Vithor fez um comentário interessante. Serão os homoafetivos os novos negros do Brasil? Serão eles os recentíssimos ocupantes dos navio negreiros? Parece-me que há mais diferenças que semelhanças. Vamos analisar.
Em primeiro lugar, é importantíssimo dizer que sim, há seriíssimas analogias possíveis, porque há um fundamento comum: as pessoas são julgadas não pelo que são, mas pelo o que aparentam ser. Os negros sempre foram considerados preguiçosos, indolentes, criminosos e incapazes por conta de sua cor, que acabava por defini-los. Nunca foi observado com a atenção merecida a condição social em que foram alocados. O mesmo se aplica aos gays. São promíscuos, contrários à família tradicional, ineptos aos bons costumes. Sua condição sexual já os coloca em uma condição defensiva, excluída. Também já os define.

Qualquer condição generalizante já serve para colocar em tela nossos preconceitos, mesmo quando são, entre aspas, “positivos”. Veja o caso dos japoneses e seus descendentes. Sempre foram tidos como bons trabalhadores, estudiosos, ordeiros. Trata-se de costumes que foram bem recebidos por sua utilidade. Mas vejam só: nosso senso comum diz que os trabalhadores dedicados são puxa-sacos, que os alunos laboriosos são nerds (CDF’s, como se dizia em minha juventude), que respeitar a lei e a ordem é babaquice em uma sociedade que quer levar vantagem em tudo – lei de Gérson. Percebem como brota a semente do preconceito?
E dessa forma nossas “poronguinhas” (epa!) vão se enquadrando ao modelo e, não raramente, encontramos descendentes de nipônicos desidiosos, insolentes, arruaceiros...

Mas aqui há uma constatação que diferencia um pouco a situação: apesar do reconhecimento dos homoafetivos como minoria, os negros nunca foram retirados dos navios negreiros. As favelas são novas senzalas, como apregoa Lobão. E a sociedade resiste bravamente à sua ascensão, como podemos perceber na discussão, por vezes violenta, da concessão de quotas universitárias aos afrodescendentes, como já observei neste post. O máximo que podemos fazer é concluir que os gays agora remam junto aos negros nos navios.
Outra diferença importante está na própria aparência. Um homossexual pode, apesar da dor que isso causa, manter-se oculto por anos a fio, e mesmo pela vida inteira. Essa é uma condição injusta, mas é uma defesa possível. Aos negros, esta prerrogativa é negada. O pomo da discórdia está em sua pele, em seus traços, um negro não tem como esconder sua condição. A quem olha pelo prisma do preconceito, um único contato basta para erguer os muros, sem nem ao menos ser possível constatar qualquer outra qualidade. Já vi comentários horrorosos, como o fato de que a população carcerária é predominantemente negra. Ora, cara-pálida (epa!). Isso não é resultado de uma predisposição genética, mas de uma condição social na qual foram arremessados, desde que foram emigrados à força para o Brasil. A grande camada negra continua até os dias de hoje na classe mais rasteira da pirâmide social, e de lá encontra imensa resistência para se verem livres. Qualquer benefício que se conceda aos mais pobres vai atingi-los, evidentemente. Outra coisa nojenta que já vi são as fichas de cadastro para se candidatar à adoção de crianças. Este cadastro inclui as características desejadas da criança a receber um novo lar. Isso inclui dados como cor, sexo, idade, se são aceitas crianças com deficiência e etc. Existia, até bem pouco tempo atrás, um item que perquiria o candidato se este aceitava crianças com “traços negróides”. Traços negróides! Isso significa que não basta a criança não ser negra; ela também não pode ter nenhuma característica que a faça parecer negra. Ainda bem que removeram esta aberração do formulário – o que, a rigor, não quer dizer nada, porque o candidato pode perceber os tais “traços negróides” ao ver a criança, e recusá-la.

Quanto aos gays, estão mais espalhados pelos degraus econômicos. Ser homoafetivo não significa, de bate-pronto, ser pobre, como ocorre com a grande maioria dos afrodescendentes. Até mesmo por isso, eu não seria favorável a uma quota de ingresso para eles. O foco é diferente. Apesar de que, no exemplo citado da adoção, um casal hetero de negros teria menor dificuldade em atingir seu objetivo.
Voltemos às semelhanças. Um dos espaços mais difíceis que tanto negros quanto gays tem a penetrar é no exercício de sua religiosidade. Neste post, pude fazer observações relativas ao vilipêndio que as religiões negras, mais especificamente a umbanda e o candomblé, sofrem por parte de denominações de matriz ocidental. Coincidentemente, é justamente nelas que os homossexuais encontram melhor espaço, o que agrava o preconceito contra elas. Bastaria um simples cuidar da própria vida para que o convívio fosse garantido de maneira civilizada. Mas vou falar um pouquinho mais desta questão no final deste texto. 

O lado bom é que, ainda que a custo, estas minorias têm obtido conquistas. Pesquisa recente realizada nas universidades federais demonstrou que os temores dos detratores das quotas eram feitos de areia, e se desmancharam no ar ao ser constatado um desempenho de mesmo nível dos quotistas com relação aos alunos convencionais. Com isso, temos não só uma prova da eficiência das quotas, mas também a presença de um indicativo de boa vontade por parte da sociedade como um todo, não é mesmo? O mesmo pode ser dizer com relação à possibilidade cada vez maior de se obter uniões estáveis. Não somos moderninhos?
Sei não. Ao compararmos o pensamento de dois dos nossos mais importantes sociólogos, Gilberto Freyre e Florestan Fernandes, podemos perceber que nossa visão pode estar sendo turvada pelas convicções típicas de nossa categoria social. Senão vejamos.

Gilberto Freyre elaborou uma das mais pioneiras obras de constatação da formação do ethos brasileiro. Trata-se do livro “Casa Grande e Senzala”,  onde o autor defende uma tese denominada democracia racial.  De acordo com esse pensamento, o Brasil tem uma interpenetração social muito maior do que em outros países porque o mais significativo sistema social que imperou na formação de uma identidade propriamente brasileira foi aquele desenvolvido na relação entre os senhores de terras e seus subordinados, notadamente os escravos e os indígenas. Essa relação é intensa porque havia um intercâmbio sexual recorrente, que gerou ampla miscigenação. Esse fato serviu para diminuir o distanciamento racial entre as diferentes classes, diminuindo consideravelmente os antagonismos que puderam ser observados em outras nações, especialmente as europeias. Deste contato sexual, resultou um convívio que aproximou as etnias culturalmente, sempre guiado pela casa grande, ou seja, pela elite dominante, distribuidora de justiça e de benesses que era, exercendo o governo real do antigo Brasil. Temos então um cruzamento inter-racial benéfico porque permissor de um convívio menos conflituoso,  com uma construção social consequentemente mais sólida, porque amalgamada em um sentimento de pertença mútuo, ainda que guiado a partir da classe de cima.
A sociologia de Gilberto Freyre teve grande aceitação até meados do século XX, quando começou a ser contestada com mais veemência, até ser competentemente contraposta por Florestan Fernandes. Este pensador nasceu no Brás, bairro operário de São Paulo. Em comparação com Freyre, estava do seu lado oposto, ou seja, lançou um olhar a partir das camadas pobres da população, dos cortiços, das favelas, da periferia, da senzala. Por este ângulo, a questão é vista muito diferentemente. O preconceito não foi amenizado pela miscigenação, mas apenas varrido para baixo do tapete. A democracia racial seria uma explicação aceita como convincente por ter a capacidade de ocultar um complexo de culpa arraigado nas elites: o preconceito de não ter preconceito. Desta forma, a classe social a qual pertencia a elite teria uma justificativa para perpetuar confortavelmente sua posição. A verdadeira intensão que havia no cruzamento inter-racial abertamente praticado no Brasil consistia em obter um "branqueamento" dos negros e indígenas. Não só sua cor, mas sua cultura deveria se adequar aos paradigmas europeus, e a absorção de uma pequena parte de suas cultural ao ethos geral foi unicamente uma ferramenta de contenção de conflitos.

Pois bem. As teses sociológicas mencionadas são voltadas a aspectos raciais, mas podemos migrá-las facilmente para a questão da homoafetividade. De que maneira nossas convicções não ocultam os preconceitos? As concessões feitas a negros, gays e outros grupos minoritários são provas de nossa vontade de conceder equanimidade a camadas cada vez maiores da população? Ou são apenas mais uma oportunidade de nos colocarmos como imunes a preconceitos, para acariciar nossa autoestima? Para onde estamos apontando? Para o fim ou para a perpetuação da casa grande?
Tenho um grande medo, na verdade. Vi uma repórter questionando a um líder religioso sobre o que ele achava sobre o fato de que 338 homossexuais terem sido assassinados em 2012. O iluminadíssimo respondeu que mais de 40.000 heterossexuais foram mortos no mesmo período, o que torna o número insignificante. O que o ilustre representante se esqueceu foi de mencionar que nenhum deste 40.000 foram mortos pelo simples fato de serem heterossexuais. E também não mencionou que boa parte destes heterossexuais que foram mortos eram negros, jogados diante do muro de apedrejamento porque seus locais de culto são considerados “casa de encosto”, fonte do mal, em flagrante desrespeito à sua cultura. Ele, líder religioso que me recuso a mencionar o nome, põe seus dízimos e gritaria a serviço da anti-cidadania, sobre a discutível autoridade que exerce sobre milhares de pessoas, esquecendo da lição primordial do cristianismo, aquela que até mesmo os ateus tem de concordar: a lei do amor. E, se há amor, deve haver respeito, principalmente em coisas que não nos diz respeito.

Tenho um grande medo, porque a principal crise de nosso mundo não é de violência, mas de ignorância.

Recomendações de leitura

Aproveitando que estou assinando um libelo contra os preconceitos, apesar de lutar diariamente contra eles em mim mesmo, coloco as obras principais dos sociólogos que citei, para serem lidas da maneira mais imparcial possível:

FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966.
FERNANDES, Florestan. Fundamentos empíricos da explicação sociológica. São Paulo: T. A. Queiroz, 1980.

sábado, 20 de abril de 2013

Sobre a pressão de se tomar um rumo diante da encruzilhada da escolha da carreira

Olá!

Uma circunstância muito bacana na minha vida é a possibilidade de conviver com muitos jovens e crianças, pois deles temos uma visão de mundo que guarda ainda algo da pureza de sentimentos impossível de ver nos adultos. Em geral, são muito alegres e descontraídos, muito “de bem com a vida”, mas em minhas experiências extraídas deste convívio, tenho percebido que essa não é uma verdade absoluta, e observar um adolescente angustiado é muito mais doloroso do que fazê-lo com meus coetâneos, mais experientes e menos vulneráveis.


A juventude é retratada muitas vezes como uma fase áurea de nossas vidas, e é mesmo. Temos vigor, temos vontade, temos planos, temos projetos, acreditamos em valores que vão declinar no futuro, como o companheirismo, a confiança no grupo e que-tais. No entanto, e até mesmo pela quantidade tão significativa e profunda de inflexões, a juventude tem inevitavelmente esse viés de angústia e da incerteza que a gera. Um belíssimo retrato desta situação nos é dado na obra-prima de Jérome Salinger, O Apanhador no Campo de Centeio (tristemente célebre por conta do assassinato de John Lennon). Neste livro, o protagonista Holden Caulfield se vê diante dos impasses e traumas mal resolvidos da lenta transição da infância para a adolescência e de sua aproximação ao mundo adulto. Estranhamente, um de seus principais pontos de apoio não vem de algum mentor experiente ou de algum grande amigo, mas de sua irmã menor, Phoebe. Queria saber ler em inglês, dizem que há todo um lirismo na escrita que torna a leitura do livro ainda mais sedutora. Não vou ficar falando muito sobre a obra. Procurem e leiam, vale a pena (veja a citação mais abaixo).

Ok. Os conflitos nem sempre são visíveis a um primeiro olhar, mas é preciso ter consciência de que nós, como pais, devemos mais procurar evitá-los, pura e simplesmente, ou eles são inevitáveis? Quem sabe até mesmo desejáveis? Vamos tomar um exemplo prático.

Em tempos pretéritos, um jovem tinha um destino meio que traçado: seguir o ofício do pai, se menino. Ou ser dona de casa, quando menina. Isso tinha razões práticas. O descendente aproveitaria seu espaço e seu ferramental, herdaria seus conhecimentos e freguesia, perenizaria o nome e a fama da família, dando continuidade à sua obra. Quanto às meninas, estas eram preparadas para o casamento. Se isso era bom, não vem ao caso neste momento. Mas é inegável que a incerteza (fato gerador de angústia) era menos impactante. Veio a modernidade, fornecendo maior liberdade de escolha, com uma maior possibilidade de erro. A carreira do pai já não possui o mesmo significado. A manufatura foi substituída por processos industriais cada vez mais automatizados. O trabalho passa a ser mais intelectual que braçal. Isso permite às jovens mocinhas ingressar em um número cada vez maior na força de trabalho.

O modelo familiar também sofre modificações. O papel da mulher na sociedade tem uma reviravolta radical, ela não fica mais em casa cuidando de seus afazeres e de seus filhos. Procuram por universidades cada vez mais diversificadas e especializadas. As crianças são colocadas cada vez mais novas na escola, modificando o conceito de transmissão do conhecimento, que fica atribuído a terceiros.

Só que esse novo molde cobra seu preço. Como já pude comentar neste post, apesar de fazê-lo sob outro prisma, há um estreitamento na faixa etária daquilo que podemos chamar de juventude. Por força de lei, o jovem só pode começar a trabalhar a partir dos 16 anos, fazendo com que sua coleta de informações sobre o mundo das relações trabalhistas seja feita mais tardiamente. Por outro lado, o trabalhador com mais de 40 anos é considerado velho, em especial por conta da desenfreada necessidade de atualização exigida pelos ofícios modernos.

Essa condensação do tempo estabelecido socialmente (a infância estendida e a velhice antecipada) acaba por formar uma consequência cruel: colocamo-nos diante do dragão com uma única bala na agulha. Que dragão é esse, meu São Jorge? A incerteza da escolha, reforçada pela consciência de que poucas chances teremos de ter uma segunda oportunidade. Pensemos: conhecemos várias pessoas que cursaram uma segunda ou terceira faculdade. Fazem-nas para complementar conhecimentos necessários à sua atividade ou mesmo por puro prazer. Eu, pessoalmente, conheço poucos que o fizeram para dar uma guinada radical. Por isso mesmo, a pressão se torna muito maior.

As consequências óbvias são aquelas que já conhecemos. O jovem se vê deparado com uma enorme quantidade de opções disponíveis nas universidades para fazer suas escolhas, ao mesmo tempo em que possui ao seu alcance a gigantesca massa de informações fornecida pela internet e outras mídias. O jovem do passado ficava naquela alternativa: “só tem tu, vai tu mesmo”. Mas agora a chance de erro é muito maior. Repito: isso não é ruim. Mas o adolescente de hoje começa tarde a desvendar seus talentos, e sabe que uma carreira mal escolhida pode atar grilhões muito pesados em suas pernas, especialmente no campo da satisfação pessoal.

Os pais vêm de um mundo que trabalhava com outras engrenagens. Pertencemos a uma geração que teve seus filhos mais tarde (o que não é meu caso), já não temos oficinas para deixar de herança. Há uma tendência em fazer acelerar o ritmo da escolha dos filhos, já que há pouco a oferecer em apoio. Acham, em geral, que a indecisão é um malefício do mundo moderno, o que não deixa de ser verdade, mas o fazem por uma ótica que foi recebida por gerações anteriores, que é a imperiosidade de ajudar em casa a qualquer preço. Nossos pais eram operários, construtores, ferroviários, motoristas, batiam cartão, operavam com o corpo, viram-se diante de uma cidade em formação. Queriam para seus filhos oportunidades melhores, menos pesadas. Mas o mundo de hoje é outro.

Dessa forma, temos dois ângulos que enxergam a mesma questão: os pais, que exercem a pressão baseados na suposta desídia (que de fato ocorre às vezes; poucas, é verdade) e os filhos, que se angustiam diante da possibilidade de uma escolha mal feita.

De fato, como já disse, o interesse dos pais no futuro dos filhos é absolutamente legítimo. Será que há algo de errado em desejar sucesso à prole? Acontece que é preciso fazê-lo de maneira parcimoniosa. Essa pressão pode levar o jovem a fazer escolhas equivocadas só para que a veja diminuída, o que não é bom.

Só que os filhos também não devem deitar em berço esplêndido. Em última instância, é o seu interesse que está em jogo. É preciso que eles mesmos procurem detectar suas ambições, suas adequações e seus dons. O que é um fato preciso e bem acabado é que o modelo social é este mesmo, e os pais nada mais são que seus representantes. Não que devamos nos conformar pacificamente, e que não procuremos transformar a realidade ao nosso redor, mas não sabemos quanto tempo a roda levará para girar, e, para o bem e para o mal, a vida seguirá assim, é preciso encará-la.

Mas há algo que é absolutamente primordial nesta escolha. É preciso esquecer-se o fator monetário, tão considerado nos dias de hoje. Não é verdade que as pessoas que prosperam em determinada atividade amam-na por causa do dinheiro que a mesma proporciona. Antes disso, trabalham com afinco e fazem tudo bem feito porque gostam do que fazem, e isso acaba por lhes render qualidade na sua produção e consequente retorno financeiro. Também não é verdade que existam atividades em que há impossibilidade de boa remuneração. Vejam um exemplo: para que serve uma faculdade de Filosofia? Para dar aulas, na maioria das vezes. E sabemos que os professores são mal remunerados no Brasil.

Será mesmo? Perguntem aos filósofos brasileiros popstars, como Viviane Mosé, Luiz Felipe Pondé, Márcia Tiburi, Renato Janine, Marilena Chauí, Paulo Ghiraldelli, Mario Cortela, Denis Rosenfield e outros se estão passando por necessidades. Não há nenhuma conotação pejorativa em chamá-los de popstars. São professores que alcançaram sucesso em suas carreiras, fama, escreveram livros, artigos de jornais e revistas, cobram caro por suas palestras, tudo isso por uma razão simples e eficaz: amam o que fazem.

E é aí que a ajuda dos pais vale ouro: na detecção do talento dos filhos. Em maior ou menor medida, os pais convivem e prestam muita atenção nos filhos. Conhecem-nos até pelo andar. Sabem do que eles gostam, do que fazem melhor, do que mais lhe chamam a atenção. Sabem o quanto são questionadores, se gostam e o que gostam de ler, se tem propensões artísticas ou esportivas, se são comunicativos, se são contestadores; conhecem, enfim, suas habilidades, a não ser que uma crise de relacionamento muito profunda os impeçam de possuir uma visão minimamente saudável. Opiniões dadas com sinceridade e bom senso podem ser reconhecidas pelo jovem como um corrimão seguro na escada que necessita subir.

No entanto, os pais devem se lembrar que são adultos e fazer uso de sua razão. É preciso que tenham cuidado para não projetar suas frustrações nos filhos. Nem adianta ficar vendo em seus filhos eternas crianças. É preciso deixar isso no nível do sentimento. Houve, na época da última olimpíada, uma belíssima propaganda de banco que mostrava crianças competindo nas diversas modalidades enquanto seus pais as observavam das arquibancadas. As crianças representavam os atletas, já adultos; apenas os pais ainda os enxergavam como guris eternos. Na verdade, essa visão é linda como poesia, mas se você não consegue se desprender dela, não conseguirá exercer juízo crítico de modo a colaborar com as escolhas de seus filhos, e é melhor procurar ajuda com os professores do jovem, e mesmo seus amigos podem ser boa fonte de informação.

Insisto mais uma vez: não se foquem no dinheiro, que virá naturalmente se a escolha for acertada. Que os pais não se apeguem ao sucesso imediato proporcionado por profissões do momento, e que os filhos não subestimem suas capacidades de serem felizes, ainda que o status de sua carreira não seja algo que, a primeira vista, das mais atraentes.

Por fim, é preciso lembrar que, apesar de desagradável, toda essa incerteza permeada de um sentimento que flutua entre a afobação, o medo e a tristeza, não deixa de ser um aprendizado. É sempre necessário lembrarmo-nos que, a cada vez que nos aproximamos mais e mais da velhice (sim, velhice; “melhor idade” é um termo tão mequetrefe e falsificado quanto o “politicamente correto”), maiores serão nossas angústias (lembram deste post?). É um momento em que guardamos uma reserva de experiência para quando nossas possibilidades não estiverem mais limitadas pela pressão das escolhas, mas pelo pouco tempo que nos resta, e pelas provações de ordem natural. Sob este sentido, a escolha difícil é propedêutica: não adianta vivermos um sonho dourado, onde nossos caminhos nunca encontrarão encruzilhadas ou abismos.


Recomendação de leitura:

SALINGER, Jerome. O apanhador no campo de centeio. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1999.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Entre a realidade e a ficção, uma leitura possível do evento morte

“A vida é um sopro, um minuto. A gente nasce, morre. O ser humano é um ser completamente abandonado…” – Oscar Niemeyer

Olá!

Nossa, quanto tempo já fazia que eu não postava nada aqui! Bom, neste eterno retorno, vamos nós de novo...

Confrontar-se com a morte nunca foi algo simples para nós, humanos. No final de novembro do ano passado houve o falecimento da mãe de um colega de trabalho meu, o Paulinho, e percebi que já não reajo da mesma forma com que fazia antigamente. Como minha família era bastante grande, e a comunidade em que eu vivia tinha intercâmbios freqüentes, eu era uma espécie de “arroz de festa” dos velórios, e acostumei-me a não me impressionar tão facilmente com um evento estranho, ao mesmo tempo triste e inevitável. No entanto, confesso que saí deste último velório um pouco mais consternado do que o habitual, sei lá bem o porquê. Talvez eu esteja ficando velho, talvez tenha ficado tocado com a situação do meu amigo, que tem passado dificuldades outras. Estava isolado, chorando muito e facilmente, o momento do falecimento de sua mãe não poderia ser mais inadequado.

Já em dezembro, porém, a senhora da capa preta aproximou-se mais e lançou suas garras de maneira mais dolorida. Morreu meu compadre Plínio, jovem ainda, vítima de um impiedoso ataque cardíaco. Morreu um cara que era mais do que um irmão para mim. À consternação, juntou-se o sentimento de impotência causado por nossa infeliz máquina burocrática, que não se cansa de vilipendiar-nos com seus meandros injustos para um momento tão fragilizante.

Pois é, lidar com a morte não é algo simples para nós, brasileiros. Talvez outras culturas o façam melhor, como os mexicanos que celebram o dia de Finados nos cemitérios, junto de seus entes falecidos em um clima festivo, com as célebres caveiras de açúcar. Tentei já fazer algo semelhante com a molecada que convive comigo, espero que funcione:



A morte se torna especialmente fonte de pesar quando o falecido deixa para trás uma obra significativa. Por ocasião da morte da cantora Amy Winehouse, elaborei uma série de textos tratando do assunto (este, este e este). No entanto, o prisma agora é diferente: estou pensando em personalidades de carreira consolidada, de um conjunto de obras mais completo. E, neste sentido, é impossível deixar de falar em alguns dos mais especiais gênios que nos deixaram no ano passado.

Começando pelo passamento de Oscar Niemeyer, o homem que, em suas próprias palavras, traduziu as curvas das montanhas, dos rios e das mulheres brasileiras nos traços de sua arquitetura. Inúmeros projetos dele passam despercebidos aqui em São Paulo, como os edifícios Eiffel, Califórnia, Triângulo e Montreal, e poucas pessoas sabem que o edifício Copan, o Sambódromo e boa parte do Ibirapuera são obras de sua autoria.

2012 também foi o ano do falecimento de um dos mais subestimados escritores brasileiros: Autran Dourado. No meu entender, poucos conseguiram traduzir como ele as diversas variações de um ser entre sua pessoa e sua personagem, e de como ambas se confundem até se tornar uma coisa só, indefinível e indissociável. Dourado costurou com maestria o racional e o insano, o seguimento das regras socialmente aceitas e o desequilíbrio interior.

Quanto a Décio Pignatari, foi, ao lado dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, um dos papas de uma vanguarda que, pela primeira vez na história, teve brasileiros entre seus decanos: a poesia concreta. Para muitos, trata-se de amontoados de palavras ordenadas quase que aleatoriamente, sem nenhum sentido conceitual. Para mim, a poesia concreta foi a via de compreensão para a intrincadíssima teoria pictórica da frase, do genial e complexo Ludwig Wittgenstein. Ver as palavras dispostas na página de modo a construir uma visão além do seu alcance convencional fez-me entender que a linguagem das proposições é semelhante aos elementos de um quadro, que da sua colocação no todo depende o seu sentido.

No exterior, houve a morte de Jon Lord, tecladista da banda Deep Purple. Músico de formação, conseguiu, melhor do que muitos, fazer a conciliação entre música erudita e popular. Aliou sua técnica apurada a um feeling raro de encontrar.

Pois muito bem. Estes são apenas alguns casos que me trouxeram real incômodo. Mas, em termos de repercussão, mesmo Niemeyer esteve abaixo de uma outra morte mais relevante, mais significativa e, de certa forma, muito mais esperada. Refiro-me à morte de Max, o mesmo pilantra muito bem defendido pelo ator Marcelo Novaes, na novela Avenida Brasil. Já disse neste espaço que segui e gostei desta novela (olha só aqui e aqui), mas nada rendeu tantos jornais, revistas e informações da internet do que seu festejado assassinato e conseqüente enigma autoral. Nem mesmo as mortes do Chico Anísio e da Hebe Camargo suscitaram tantos debates. Por que a morte ficcional é mais significativa do que a morte do ídolo de carne e osso? Tenho uma tese.

A relação do homem com a morte é dual. O instinto de sobrevivência faz com que um ser humano aceite viver em condições tremendamente desfavoráveis, procurando um fio de esperança nas mais improváveis mezinhas, nos mais absurdos gurus, nas mais iniciais pesquisas, nos mais singulares tratamentos. É o medo do desconhecido, com uma dose cavalar de probabilidade de se encontrar diante do nada. As religiões procuram encher as pessoas de esperança em uma vida futura, mas como nosso mundo moderno se baseia no empirismo científico, essa fé se vê profundamente maculada por um processo reforçado em seus paradoxos.

Por exemplo, a religião cristã garante a existência do além, que premia aquele que segue os estatutos de sua divindade ou castiga quem deles se afasta. O problema é que não há balizas absolutas para estabelecer o que é pecaminoso ou não. Basta que se pense na questão dos santos. Para os católicos, estes são modelos a ser seguidos e venerados; para os ortodoxos, são praticamente a mesma coisa, com a diferença que seus templos não devem ter suas imagens esculpidas; para os espíritas, são almas elevadas, cheias de luz, e que já se livraram da passagem terrena; já para os protestantes, são ídolos que devem ser destruídos. E agora? Qual interpretação é a correta? Dessa forma, a religião pode deixar de ser reconfortante para aumentar ainda mais o medo da morte, por conta da angústia perante a materialização de todo o complexo de culpa: o castigo que nunca se encerra.

Há também a sensação de que sempre existe a possibilidade de oferecer mais de si mesmo ao mundo, uma espécie de paroxismo do egoísmo. Não se espantem, algum grau de narcisismo e de egocentrismo é natural e mesmo necessário à vida. Temos uma compulsão interior de transferir nosso desejo de eternidade àquilo que deixaremos de legado ao mundo, e evidentemente queremos que essa herança seja positiva. Sendo a morte a interrupção da cumulação deste pacote de benesses emanadas por nós ao universo, tem-se a tendência de achá-lo sempre insuficiente. O legado poderia ser maior, melhor, mais robusto, mais qualificado. Essa descontinuidade é outro fator a afligir-nos contra a morte.

Ok. Mas qual é o reverso da medalha? É que a morte também atrai.

Já falei nesta postagem sobre o Tânatos, a pulsão de morte imaginada por Freud. Não vou me repetir, mas apenas recordar que esta pulsão existe por conta da estabilidade que a morte propicia. Ela é livro fechado, obra acabada, ciclo completo. O pacote que mencionei anteriormente está entregue, nada mais há a acrescentar, nem para enriquecer, nem para angustiar. A situação estável, nesse sentido, é perfeitamente desejável, como seria a indiferença à dor (ataraxia) dos estóicos.

Há mais. Se a morte é medo do desconhecido, ela é também desejo do desconhecido. Os antigos navegantes tinham em si um profundo medo de se imiscuir em mares cada vez mais distantes, e lá se depararem com monstros e abismos. Ora, esse medo não foi suficiente para deter o binômio curiosidade + sede de conquista, e eles resolveram ir aos confins, para descobrir ou confirmar que o mundo é redondo. O homem sabe que o desconhecido é perigoso, mas também pode ser compensador, e muito.

Bem, qual a via mais segura para liberar o desafio da curiosidade com relação à morte, sem correr o risco de saltar o muro e cair no vazio? A resposta está na arte.

Por intermédio do personagem ficcional, podemos testar possibilidades que a mera observação nos impede. Não precisamos ter medo ou vergonha de desejar a morte alheia. Podemos experimentar uma sensação que vetamos a nós mesmos, porque não há culpa a carregar. E com isso aprendemos mais sobre si próprios.

Imbuídos deste conforto, podemos encarar a morte como evento real sem o terror que ela causa para nós e para nossos próximos. Não precisamos temer as punições divinas e nem o sentimento de saudades que teríamos ao presenciar o falecimento de alguém de nosso convívio. Sim, a morte alheia é um ato que encaramos com egoísmo, porque esta não se limita ao sofrimento do moribundo, mas é também um estopim para que seja deflagrada nossa própria dor. O que ocorre com o outro ocorrerá também comigo, estou colocado diante de uma premonição infalível. A morte ficcional quebra esta barreira. Isso é bom?

Entendo que não seja nem bom, nem ruim. Nada mais é que uma reação natural. Diante da inevitabilidade (olá, Tite!), é a melhor maneira possível que temos para experiênciá-la. Isso serve para provar que o impacto da morte na arte tem sua função em nossas vidas. O erro está, aí sim, em vislumbrá-la com mais importância que a morte real de pessoas que tem uma obra tangível a apresentar, e isso nós devemos em boa parte à mídia que produz seu encantamento em quantidades maiores das que dispõe para o registro da produção de cultura. Afinal, esse é seu negócio, mais para o mal que para o bem.

Abordei este tema porque, no dia de hoje, meu filho mais velho faria 22 anos. Quanto tempo já! Especular sobre o que podia ser, mas não foi, é um exercício filosófico que, no caso, torna-se muito doloroso. Por isso deixo apenas alguns versos de uma de minhas bandas favoritas. No final das contas, sei que o tema da música não é exatamente esse, mas é aplicável neste caso:

“How I wish
How I wish you were here
We're just two lost souls
Swimming in a fish bowl
Year after year
Running over the same old ground
What have we found?
The same old fears
Wish you were here”- Pink Floyd

Recomendações:

Muitas. Vamos na ordem em que foram apresentadas.

Oscar Niemeyer, do alto de seus lucidíssimos 104 anos deixou obra tremendamente vasta. Repasso os endereços das obras que mencionei neste post, para quem desejar ou tiver a oportunidade de dar uma olhadela, todos na cidade de São Paulo:

Edifício Eiffel - Praça da República, 177 - República
Edifício e Galeria Califórnia – Rua Barão de Itapetininga, 255 - República
Edifício Triângulo – Rua José Bonifácio, 24 - Sé
Edifício Montreal – Esquina das avenidas Ipiranga e Cásper Líbero – Santa Ifigênia
Edifício Copan – Avenida Ipiranga, 200 – República
Sambódromo – Polo Cultural e Esportivo Grande Otelo – Avenida Olavo Fontoura, 1209 – Anhembi
Parque do Ibirapuera – Avenida Pedro Álvares Cabral

A grande obra de Autran Dourado é a seguinte:

DOURADO, Autran. Ópera dos mortos. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

Com relação ao xará Décio Pignatari, podemos ler uma reunião de sua obra no seguinte livro:

PIGNATARI, Décio. Poesia pois é poesia. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.

Sobre Jon Lord, indico toda a discografia do Deep Purple, em especial os álbuns Concert for Group and Orchestra, In Rock e Machine Head.