Marcadores

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Sobre feriados sem grande sentido e sobre o que legitima uma celebração

Olá!

Bem recentemente, fiz aniversário de estadia no centro de São Paulo. Mais especificamente, faz quatro anos que me mudei (já!), no dia 15 de novembro de 2008, feriado da Proclamação da República, que naquela ocasião caiu em um sábado. Portanto, foi uma data marcante, fácil de lembrar. Curiosamente, não pelo feriado em si, mas pelos fatos que passo a relatar.

Combinei com o dono do caminhão que fez minha mudança que o aguardaria na porta do Poupatempo Sé, o que fiz logo às sete da manhã. Fiquei lá esperando por várias horas, já que o ilustre carreteiro foi me procurar na saída do precitado órgão público, na Rangel Pestana, enquanto eu dava milho aos pombos na rua do Carmo (ora, a entrada é lá). Pois muito bem. Enquanto eu aguardava em um misto de aflição e desolamento a chegada do meu transporte, dezenas e dezenas de contribuintes acorriam pressurosos ao Poupatempo para obter suas ferramentas da burocracia, sem se ater ao detalhe que a ingrata repartição encontrava-se de portões fechados, dia sem expediente que era. Os seus rostos denunciavam a estupefação, ao que eu, em uma prestação de serviço de valor inestimável e preço gratuito, informava dever-se ao feriado. Ao espanto, a seqüência de decepção e, em alguns casos, de indignação. Pois é, o significado do feriado é nulo, pude filosofar. Por que será que isso acontece?


Bom, começando pelo começo. O grosso de nossos feriados é cívico ou religioso. No primeiro caso, temos comemorações de fatos que foram relevantes para a vida de nosso país. O problema que temos aqui é que essas datas marcam acontecimentos derivados de decisões da elite e/ou conspirações palacianas, com pouca ou nenhuma participação popular. De fato, se pensarmos na Independência ou na Proclamação da República, perceberemos que sua origem não se dá na demanda de vastas camadas da população, ou em sangrentas batalhas (graças a Deus), mas de transformações que se deram no topo da pirâmide social. A Independência representa a troca de um rei por outro, o povo prosseguiu alijado de efetiva participação nos rumos do país. O mesmo se dá com a virada para a República, onde o voto era coisa para os qualificados, ou seja, para quem já detinha o poder.

A situação tornou-se particularmente mais expressiva nos períodos de governo militar, que encamparam as comemorações como objetos de justificação de seu poder. As celebrações cívicas eram cheias de gente porque a máquina governamental as tornavam assim coercitivamente. As escolas eram obrigadas a participar de desfiles e fanfarras, as repartições públicas eram obrigadas a se adornar de verde e amarelo. Quem não colocava fitinhas amarradas nos carros ou pregadas no peito era visto como subversivo. Deixaram Tiradentes barbudo para ficar pagando de Jesus Cristo, a concupiscente rede globo passava o manjadíssimo filme da independência, com o Tarcísio Meira, em toda sessão da tarde que caísse no 7 de setembro, entre outras bravatas ditas patrióticas. Quando a democracia plena chegou, as pessoas se deram conta do quanto eram objeto de manipulação, e do quanto o amor à pátria era utilizado para validar mortes e desaparecimentos de dissidentes, e passaram a apreciar os feriados apenas por sua significação prática: são dias sem trabalho e sem escola.

É certo, algumas atividades ainda subsistem. O desfile militar da Independência (em São Paulo, é realizado no Sambódromo) ainda atrai avós saudosos e netos curiosos, cada vez em menor quantidade. As centrais sindicais conseguem congregar muita gente no dia do Trabalho, mais por conta dos sorteios de carros e apartamentos e pelos shows sertanejos e pagodejos. Tirem-se estes componentes e vejam-se quantas pessoas vem ouvir comícios e discutir reivindicações. Também é certo que prezamos nossos símbolos nacionais e reagimos quando os mesmos são vilipendiados, como explicitei aqui e aqui, só que isso tem sido feito de maneira muito pontual e difusa. Isso prova, como falei neste e neste texto, o quanto o brasileiro anda despolitizado, em especial os jovens, e o quanto isso influi em nosso sentimento patriótico.

Do outro lado, temos os feriados religiosos. Estão intimamente ligados à doutrina católica, que possui um espaço celebrativo bastante rico, independentemente da fé que professemos. São cerimônias de cunho coletivo: se o padre vai à igreja e não há ninguém presente, fecha seu missal, recolhe suas alfaias e vai embora. Como o Catolicismo foi a religião oficial do Brasil até o final do século passado, parece-me natural que suas datas litúrgicas influenciassem o calendário civil, o que gerou uma série de feriados. Ok. Acontece que, desde quando esses feriados foram instituídos, muitas mudanças se deram no perfil do brasileiro. Segundo o mais recente censo do IBGE, as transformações no perfil religioso nacional mostram três tendências bastante importantes. A primeira é a diminuição do percentual de pessoas que se declaram católicas. Em 1970, este índice era de cerca de 90% da população; hoje, o mesmo caiu para algo em torno de 65%. A segunda é o crescimento de membros de denominações evangélicas. Em 1970, falávamos em meros 5%, hoje esse número saltou para algo como 22%, o que representa em uma quase quintuplicação. Já de cara percebemos que uma fatia bastante representativa não tem os feriados de Corpus Christi, da Padroeira, da Sexta-feira Santa e outros como relevantes para suas celebrações. Aqui, temos o mesmo fenômeno da perda de interesse no feriado cívico, ainda mais se levarmos em conta o caráter individual que o evangélico atribui à sua salvação. Afinal, diferentemente de católicos e espíritas, os evangélicos em geral creem que o acesso ao céu ou o ingresso no inferno dependem da vontade de Deus, e não das ações do cidadão. Mas tem mais.

Com esses números podemos concluir que o Brasil permanece como um país de grande religiosidade, mas que vai paulatinamente migrando do Catolicismo para o Protestantismo de cunho pentecostal, certo? Não, errado.

Há ainda um terceiro número a ser considerado: em 1970, tínhamos parcos 0,5% de pessoas que se declaravam sem filiação religiosa. No último censo, este número explodiu para 8%, o que significa um crescimento de 20 vezes neste número. O Brasil, assim como a Europa, é um país que ruma para a secularização.

E isso torna a questão ainda mais espantosa, porque nos traz à mente as peripécias intelectuais de um dos filósofos mais geniais e independentes de todos os tempos, o amado e odiado Friedrich Nietzsche. Esse moço, por exemplo, decretou a morte de Deus.

A Filosofia de Nietzsche é uma cruzada contra o poder dogmático da Religião. Segundo seu pensamento, os homens jamais abandonam sua condição de escravos ao se deixar levar pelos ditames imutáveis das diferentes crenças. Em seu livro Assim falou Zaratustra, por exemplo, nosso tedesco informa que a humanidade obrigatoriamente viverá três fases, representadas pela metáfora do camelo, do leão e da criança. Na fase do camelo, o homem carrega em suas costas todo o peso de suas convicções, que são oneradas pelo direcionamento acrítico de uma moralidade aprisionadora, voltada à justificação do mais fraco. O forte ganha estatuto de ruim, de mau, opondo ao que seria uma característica natural, observável nas relações em que não há interferência da moral de rebanho, como na seleção natural. Na tentativa de se libertar desta condição, o homem se desvencilha de seus mitos e se torna fera solitária: o leão. É o momento em que o homem se encontra no vazio, desacompanhado de suas convicções anteriores, que lhe serviam de lenitivo. Ele está isolado, precisa se fazer por si mesmo, o que é angustiante, mas libertador. A fase final seria a da criança, onde o homem busca aquilo que está além de si mesmo, e seu grande trunfo é a coragem para a renovação e para a criatividade. Já em seu livro A Gaia Ciência, temos a famosa e angustiante assertiva: “Deus está morto, e fomos nós que o matamos”. O homem já não depende de Deus, pode guiar seus próprios caminhos, mas isso deriva de um ato doloroso: a morte de seu Deus, seu guia, seu condutor. Poderíamos dizer que estamos entrando na fase do leão. O homem está só e não sabe muito bem para onde ir, tropeça em suas ações, já que não há mais um dedo divino que lhe aponte um caminho. Precisará se convencer de sua força para dar um passo à frente.

Pois bem. Não quero aqui concordar com Nietzsche no quesito de inutilidade ou de alienação religiosa. É preciso lembrar que ele, em suas próprias palavras, filosofava na base das marteladas, e que também ele nunca se colocou em oposição direta a Jesus, mas ao Cristianismo; mas parece indubitável que ele profetizou com precisão o processo de desvinculação do humano ao sagrado, haja vista o processo inegável de laicização dos Estados e da decadência da religião, ao menos no que se refere ao mundo ocidental. Talvez o maior desvio da doutrina nietzschiana seja o fato de que o homem não está abandonando Deus, mas trocando-o por outros deuses, como o prazer e o poder vinculados à posse e à imagem.

Só que há ainda outro desvio: não somos patriotas nem religiosos, mas não queremos abandonar nossos feriados, correto? Bom, há que se dizer que, em certos casos, há uma migração de sentido na comemoração. Vejam: o Natal e a Páscoa não se prendem mais ao sentido cristão; hoje, o Natal é dos presentes e a Páscoa é dos ovos, mas ainda há uma celebração. Já quanto ao Corpus Christi, os evangélicos o aproveitam para realizar a Marcha para Jesus, o que mantém ainda um significado religioso. E há também as comemorações locais que ainda são muito importantes, já que a secularização é bem menos visível nas pequenas cidades. As festas do Divino são grandiosas no interior de Minas Gerais e do Nordeste, as festas juninas são enormes no Nordeste, há históricas procissões de tapetes em Santana do Parnaíba e São Luiz do Paraitinga. Bom, já estou até fugindo um pouco do contexto dos feriados, mas a lógica prevalece: estas são celebrações que desapareceram das grandes cidades.

Só para concluir: não celebramos nada, portanto? Sim, há duas celebrações de caráter nacional que estabelecem o que podemos chamar de catarse: o Carnaval de todo ano (nem tanto aqui em São Paulo) e a quadrienal Copa do Mundo. Pegando esta última, podemos observar a mobilização completa da modalidade. Meses de preparativo, a pintura das ruas, a solidariedade nos gastos para os enfeites, a adoção de símbolos, a adoração dos jogadores, o cuidado na preparação de comidas e bebidas nos dias dos jogos, a apreensão e o derramamento no momento máximo do gol. Quanto ao Carnaval, tem caráter profano e foi combatidíssimo pela Igreja, mas é algo que brotou espontaneamente do meio do povo, por isso tem tanta força. Uma vez me perguntaram o que eu achava do Carnaval, e respondi que achei os desfiles lindos, e que torceria pela Vai-vai e pela Salgueiro como sempre. Quase me botaram na cruz. Há um bom tanto de preconceito nisso tudo, com toda certeza.

Vejam, ao final, que não se tratam de datas cívicas ou religiosas, apesar de manterem características de ambas: o envolvimento comunitário, o apuro nas preparações, a ritualização do momento celebrativo. Mas são comemorações que partem verdadeiramente da vontade popular, por isso vingam.

Eis então: o brasileiro sabe ritualizar, mas o faz muito pouco, porque não se sente verdadeiro participante de qualquer momento celebrativo, seja porque não acredita no civismo de quem escreveu sua história, seja porque já não dão mais a mesma importância às suas transcendências.

Em tempo: não mencionei o Reveillon, porque acho essa celebração muito esquisita. Saibam porque neste post.

Recomendações:

Nietzsche é um filósofo dos mais geniais de todos os tempos. Não se prendeu a nenhuma escola e não se importou com os reflexos do que dizia. Provocou a tudo e a todos, começando por seus próprios colegas filósofos. Isso não significa que ele esteja correto em tudo, mas sim que é desafiador em tudo. As obras que mencionei no texto são as que seguem:

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Mencionei também um filme que versa sobre a Independência do Brasil. Ele contém desvios históricos flagrantes, retratando Dom Pedro I como um homem que era quase um santo, ou um dos maiores heróis da humanidade. Mas é muito interessante para observar como os mecanismos de ideologia usavam os eventos históricos para produzir um patriotismo artificial e a seu próprio serviço:

COIMBRA, Carlos. Independência ou morte. Filme. Brasil, 1972. 108 min.

sábado, 24 de novembro de 2012

Sobre planos econômicos capitalistas com cara de marxismo (e o ódio na rede)

Olá!

Já tem quase um mês que ocorreu o segundo turno das eleições municipais aqui em São Paulo, e eu teria bastante coisa para falar sobre este assunto, mas deixarei isso para um momento mais oportuno. No entanto, algo me chamou deveras atenção com a divulgação do resultado final: a reação negativa de uma camada significativa da população nas redes sociais. São manifestações rancorosas, desproporcionais, preconceituosas, de ódio mesmo, tendo em vista a eleição de Fernando Haddad, membro do PT, um partido declaradamente de esquerda, mas que na prática está longe de ser socialista.

A principal acusação desse pessoal tem menos a ver com os recentes julgamentos referentes ao escândalo do mensalão do que seria possível supor. Na verdade, o que se diz é que os governos do PT estão formando uma classe social vagabunda, que se sustenta pelas benesses dos programas sociais como o Bolsa Família, por exemplo, e que por isso amealha os votos destes “ignorantes”. Ora, é preciso ser muito preconceituoso para imaginar que um cidadão se contente em viver com os aproximados duzentos reais recebidos assistencialmente do que com um salário que, em tese, tem no mínimo o triplo deste valor, apenas para não ter que trabalhar. Esse não é um bom argumento para atacar esse programa. Aliás, é burro, porque dá ares de socialismo a um dispositivo que, como veremos adiante, nasceu do próprio capitalismo. Se algum dos indignados dissesse que melhor seria utilizar esse dinheiro na execução de obras de infraestrutura necessárias à expansão econômica dos bolsões de pobreza, tornando-os sustentáveis, aí sim teríamos argumentos válidos. Mas esse tipo de idéia não é tão fácil de se desenvolver, porque é menos próxima do senso comum do que, por exemplo, aquela que ataquei no meu texto “Sobre Lula, SUS e autoritarismo”. É mais fácil jogar a culpa do meu bolso mais vazio em meu vizinho do que em mim mesmo. Nunca somos nós que não sabemos votar, é sempre o outro, esse ser dos infernos.

Bom... O grande problema é que esta reação, como eu já disse, é tão cega que não percebe que os mecanismos econômicos utilizados para manter a situação do país sob controle (enquanto a Europa se esvai em déficit e os EUA tem sua economia abalada) não são derivados puros e simples do ideário dos malvados comunistas comedores de criancinhas e pobres dinheirinhos, mas do próprio capitalismo. Para isso, preciso tocar em um tema inédito por estas plagas, que é o pensamento econômico. Vamos chamar John Maynard Keynes.


Os economistas liberais clássicos, que preponderaram entre o século XIX e o começo do século XX, sempre preconizaram que a participação do Estado na economia deveria ser a menor possível, sem sair de suas atividades típicas, como legislar, julgar e arrecadar. O próprio mercado teria o condão de se auto-equilibrar, através de suas leis gerais, para distribuir os recursos necessários e proporcionar um bem-estar à sociedade, dentro de uma margem aceitável. A presença do Estado seria prejudicial porque invadiria uma atribuição que não é sua, principalmente ao se colocar ele mesmo como um dos proprietários dos meios de produção. Qualquer empresa pública, neste sentido, seria um passo rumo à alternativa do comunismo.

Sob estes ditames, tudo funcionava às mil maravilhas e parecia que a charada econômica tinha sido desvendada no primeiro mundo, até chegar o crack da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929, e o castelinho liberal provar-se feito de areia. Isso porque as empresas começaram a quebrar aos borbotões, gerando um imenso contingente de desempregados que, desprovido de dólares, reduziram suas compras ao mínimo necessário, levando à bancarrota mais e mais negócios, em um círculo do caos que tinha tudo para conduzir a vaca estadunidense ao mais grudento dos brejos.

Keynes, um canadense radicado nos EUA, deu a solução. Segundo ele, não é possível que o governo fique de braços cruzados observando o mercado tentar restabelecer seu equilíbrio por si só. Ele precisa contribuir. Melhor ainda, ele DEVE intervir.

A lógica da circulação do mercado se baseia em um binômio consumo-investimento. Desta relação, é estabelecido o nível de ocupação dos trabalhadores, que, em última instância, constituem a grande massa de consumidores. Quando, por motivo X ou Y, há diminuição de um, há reflexo no outro. Assim: havendo diminuição do investimento, há diminuição do emprego e a conseqüente diminuição do consumo. Até aí, temos a regra liberal. Só que, quando essa diminuição se dá a níveis muito baixos, torna-se muito difícil e lenta a recuperação do mercado. E, neste meio tempo, a massa trabalhadora sofre, e muito.

Quando a economia dá sinais de que está entrando em um parafuso deste tipo, o governo deve promover aumentos tanto no consumo quanto no investimento, para fazer a roda do capital girar de maneira bem lubrificada. Ok, se o governo encampar empresas e participar diretamente do mercado, teremos uma tendência às profecias marxistas. Mas Keynes não queria que o governo fizesse algo semelhante. O que ele desejava é que o poder público lançasse mão dos mecanismos que lhe são típicos, e com isso resolvesse as crises sem ameaçar a propriedade privada dos meios de produção.

Ora, que mecanismos são esses? O governo tem o poder de controlar uma série de requisitos que permitem a sua efetiva participação na ciranda econômica, de modo legítimo (na visão capitalista). O governo, por exemplo, é a entidade que determina e coleta os impostos, e que estabelece o que se fará com eles. O governo também controla a taxa de juros, podendo fazê-la flutuar para cima ou para baixo em conformidade com as necessidades do mercado. Isso tudo pode modificar os níveis de investimento ou reativar as margens de consumo, na medida em que pode readequar a ocupação de pessoal, ou tornar atrativas as compras, ou remover o incentivo à poupança. A idéia básica é injetar dinheiro na economia e fazê-lo circular da melhor maneira possível. Keynes chegou a dizer que o governo estadunidense teria uma atitude inteligente se ocupasse desempregados para abrir e posteriormente tapar buracos, sem aparente propósito. O simples fato de pagar-lhes salários faria com que estes se tornassem novamente consumidores, com nova movimentação da economia.

O pessoal da velha guarda econômica estrilou muito com essas idéias tidas como radicais, mas tinham a história contra eles. Sorte dos primeiro-mundistas que Theodore Roosevelt botou fé nas teorias de Keynes e as encampou, aplicando-as no New Deal, o plano que recuperou a economia dos EUA, usando e abusando da intervenção do Estado na economia. Bom, abusando é um pouco de exagero.

Pois muito bem, então. Vamos pegar esse rápido mostruário e aplicá-lo à nossa realidade brasileira. O governo pode captar dinheiro de impostos e injetá-los na economia em forma de investimento. Isso inclui construção e recuperação de estradas, geração de energia, modernização de portos e aeroportos, etc. Isso tudo emprega gente, gera contratação de empresas e coloca dinheiro no mercado. Há um programa denominado PAC que faz exatamente isso: pega dinheiro do Fundo de Garantia e utiliza-o no investimento em estrutura.

O poder público pode fazer o inverso: deixa de arrecadar ou diminui a arrecadação de um determinado imposto. Isso barateia o preço do produto, deixa de retirar dinheiro da economia e incentiva diretamente o consumo. Neste momento, há isenção do IPI para a compra de veículos automotores e de eletrodomésticos, além de ter sido anunciada pelo governo estadual a redução do IPVA em 9,9% para 2013.

O governo ainda tem a atribuição de manipular a taxa básica de juros da economia. Quando ela é alta, há um incentivo para a poupança e um desestímulo ao investimento. A proposição inversa é verdadeira. Portanto, juros baixos representam menor custo de produção e, naturalmente, preços mais atraentes, além de crédito mais em conta. Paulatinamente, o Banco Central tem diminuído a taxa de juros. Hoje, ela é historicamente a mais baixa que já tivemos.

Há ainda outro fator. O governo pode injetar dinheiro em programas sociais. O Bolsa-família que mencionei anteriormente nada mais é do que a proposta de abre-fecha buracos de Keynes sem o gasto com materiais. O que se faz é injetar dinheiro na economia local dos bolsões de pobreza, sem ter que inventar motivos para isso. Aqui, isso é pejorativamente chamado de assistencialismo. Nos EUA, foi parte imprescindível de um programa de recuperação econômica ocorrido em um momento que guinou a História.

Quem lê tudo o que eu escrevi até agora acha que eu sou barbudo porque amo o PT, que devo usar cuecas vermelhas e ter fotos do Che Guevara devidamente instaladas em um oratório, onde são acesos diuturnamente velas e incensos. Nada disso. Estou apenas demonstrando que as ferramentas que são utilizadas pelo atual governo para conduzir a economia nada mais são do que instrumentos capitalistas, preconizados a quase um século por um economista que percebeu a importância do governo na manutenção da saúde econômica do país sem ter de apelar para doutrinas marxistas. Ninguém precisa concordar que os programas que mencionei são bons, mas é preciso fazê-lo de maneira crítica. Para quem acha que o Nordeste é habitado por uma cambada de sem-vergonhas que se alimenta de impostos gerados no sul maravilha, seria interessante assistir ao documentário Garapa, do diretor José Padilha, o mesmíssimo que foi tachado de ultradireitista por seu filme Tropa de Elite. O nível de miséria a que se expõe o brasileiro que mora nestes lugares não é possível de imaginar aqui em São Paulo, no Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina ou Rio Grande do Sul. Aqui há pobreza, é certo. Mas dificilmente alguém morrerá de fome.

O que eu sinto muita falta no universo atual é de inteligência. Falei em um exemplo de discordância consistente lá começo, falo de outro agora: o governo brasileiro pode brincar com impostos porque eles são excessivos. Não basta criar isenções temporárias; seria muito melhor dar firmeza ao mercado com a extinção dos impostos. Outra: as bases para utilização de fundos em programas como o PAC são titubeantes. Afinal, estes recursos têm uma destinação bastante específica. Será o governo capaz de responder adequadamente a uma demanda elevada de saques, se o dinheiro está investido em obras? Mais uma: uma economia que se baseia no consumo de bens automotivos certamente terá problemas para lidar com as questões ecológicas no futuro, assim como terá que se desdobrar para convencer a população das cidades a deixarem seus carros na garagem, tendo como opção um transporte público de pouca qualidade. ESTAS são dúvidas decentes, contraposições legítimas, divergências que dão gosto de debater. Não durmam no barulho do ataque livre e injustificado, a miséria é apenas e tão somente miséria. Dificilmente um miserável é responsável por sua própria condição, e mais dificilmente ainda encontra subsídios para sair de seu status.

Portanto, meus caros, tomem cuidado antes de encaixar suas opiniões a uma bazófia qualquer, ditas por alguém pretensamente conhecedor do assunto e prenhe até a orelha de maldade. Nunca é ridículo não saber; ridículo é tentar vender aos outros uma idéia sem base nos fatos, e mais ridículo ainda é aceitar essas idéias como verdadeiras.


Recomendações:

A principal obra de Keynes, onde são apontadas as saídas para os ciclos de estagnação do capitalismo é a seguinte:

KEYNES, John M. Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. São Paulo: Atlas, 1982.


Mencionei o documentário Garapa. É necessário assisti-lo antes de achar que podemos traçar um perfil da pobreza no Nordeste a partir das nossas observações feitas a distância.

PADILHA, José. Garapa. Filme. Brasil, 2009. 110 min.  

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A concepção de boa arte

Olá!

Deixem-me fazer um breve comentário antes de disponibilizar este espaço ao meu amigo Vitor, de quem já falei nestas mal digitadas linhas. É com muita alegria que recebo a primeira colaboração direta ao conteúdo deste blog. O Vitor é meu colega de trabalho, um jovem bastante interessado em assuntos ligados à Filosofia, embora possua mestrado na área de Ciências da Computação. Neste texto, ele faz interessantes observações sobre os limites existentes (ou não) entre "boa" e "má" arte. Sem mais delongas, demos voz e vez ao nobre escriba. Com vocês... Vitor Bertalan!





A concepção de boa arte


Dedicado à Erica Acevedo

Olá! Creio que poucos dos leitores deste blog me conheçam. Meu nome é Vitor Bertalan, colega de trabalho do Décio.

Há tempos, eu havia combinado com o dono do blog que eu escolheria um tema interessante para desenvolvê-lo com uma análise filosófica. Este tema apareceu em uma conversa realizada entre mim e a homenageada do post, na semana passada. Após intensos desvarios, o grande cerne da questão foi as habilidades musicais de Michel Teló e Beyoncé.

Uma curiosidade inocente: o prefixo “telo”, utilizando em palavras no português como as biológicas telófase e telômero, vem do grego telos, que significa “fim”, “final”. Mera coincidência, ou símbolo do apocalipse?

Voltando ao busílis: podemos considerar Michel Teló, Beyoncé e similar como bons artistas, na acepção formal do termo?

Para quem não os conhece, são brasileiro e estadunidense, respectivamente, e ambos fenômenos recentes da música pop internacional. Mantendo a tônica do pop das últimas décadas, os dois seguem fórmulas musicais bem parecidas: letras altamente repetitivas, batidas dançantes e músicas raramente ultrapassando os 3 minutos de tortura (digo, execução). Quando comparamos letras como Ai Se Eu Te Pego e Run the World, com letras de qualquer outro compositor que gasta um pouco mais de tempo em suas criações, a pergunta inevitável vem à tona: composições como estas podem ser colocadas no mesmo patamar da Nona Sinfonia, de Bohemian Rhapsody ou de Águas de Março?

Esta análise, por ser de cunho altamente polêmico, deve ser feita de forma livre de preconceitos. Meus únicos desvios foram o tortura/execução e a coincidência de prefixos dos parágrafos anterior, e prometo que não se repetirão. Logo, peço também ao leitor que por alguns minutos de leitura oculte suas concepções prévias do que é um bom artista ou de que é boa arte. Veremos, no seguimento da leitura, que este próprio conceito que temos pode ser uma armadilha.

Comecemos pelo começo. Antes de entendermos o que é boa arte, precisamos entender o que é arte. Para o filósofo grego Platão, a arte é mimesis, ou seja, mimese (imitação) da realidade. No entanto, Platão via a arte com ressalvas, pois considerava que a arte era antes de tudo uma forma de enganação, um meio pelo qual alguém poderia desviar outrem do que realmente era necessário saber. A arte então deveria ser substituída ou submetida às regras da filosofia, a forma mais efetiva de se alcançar o verdadeiro conhecimento.

Aristóteles segue a ideia mimética da arte derivada de seu orientador Platão, mas considera que a arte é a representação da pura verdade. Seu livro Poética ainda é hoje muito estudado em escolas artísticas ao redor do mundo. Para Aristóteles, o artista tem então a posse de uma ferramenta com a qual pode divulgar seu conhecimento para o público. O filósofo também defende a arte, especialmente a representação da tragédia (que viríamos mais tarde a conhecer como teatro), como forma de purificação da alma e de exaltação dos sentidos e emoções das pessoas: o conceito de katarsis.

Este conceito é facilmente reconhecível. Creio que todos já passaram por uma situação em que uma música, um capítulo de um livro ou uma cena de um filme nos provoca profundas sensações, frequentemente de forma inesperada. As catarses artísticas seriam então formas de aliviar ou extirpar sentimentos indesejados. É uma ideia diferente da platônica: se para Platão a arte era um desvio do racional, para Aristóteles, é um remédio para a alma.

Avancemos agora 23 séculos. Na França, no século XIX, começava a surgir o movimento do parnasianismo, que defendia a arte pela arte. Os parnasianos buscavam o retorno à Antiguidade Clássica de Platão e Aristóteles, mas apenas em sua forma estética. Ou seja: uma peça de arte deveria ser autossuficiente, não buscando impor valor morais ou filosóficos.

Este foi um conceito polêmico para a época, que acreditava piamente que as formas de arte eram mecanismos de divulgação pedagógica e política. Uma pintura, apesar da abertura filosófica da época, deveria ter cunho sacro, divulgando valores religiosos. Uma canção deveria exaltar os valores burgueses liberais. Um livro deveria instruir o leitor com os ideais iluministas. Cito um exemplo: um dos maiores livros (talvez o maior) do século XVIII é Do Contrato Social, de Rousseau, que versa sobre as teorias sociais de poder no estabelecimento de um Estado. Algo ferozmente repelido pelos parnasianos, que acreditavam que a arte não necessariamente precisava transmitir uma mensagem, tendo o objetivo somente de existir, distrair e elevar seu espectador.

Mais um pulo: estamos no século XX. O teórico de cinema italiano Ricciotto Canudo estende um trabalho feito por Hegel feito no século anterior, e escreve em 1912 o Manifesto das Sete Artes, que podemos ver abaixo:

1ª Arte - Arquitetura
2ª Arte - Escultura
3ª Arte - Pintura
4ª Arte - Música
5ª Arte - Dança
6ª Arte - Poesia
7ª Arte - Cinema

Atualmente, esta lista, via de regra, é analisada com algumas alterações: a Arquitetura sai para dar espaço ao Teatro, a Literatura engloba a Poesia na 6ª casa, e a Coreografia é unida à Dança.

Mas não paremos no tempo. Ainda no século XX, voltemo-nos à terras tupiniquins. Como bem lembrado pela homenageada do post, em 2012 completamos o nonagésimo aniversário do maior evento cultural da história deste país: a Semana da Arte Moderna de 1922.

Para que não se lembra, farei um resumo fácil da Semana de 22. Era uma vez cinco amigos, três homens e duas mulheres, trintanistas, de famílias da alta elite paulista: Mário, Oswald, Menotti, Anita e Tarsila. Eram todos aspirantes a artistas, com nenhuma ou poucas obras em circulação antes da Semana. Em um belo dia, como estavam se sentindo muito entediados, os cinco amigos decidem mudar completamente a forma como se escrevia, pintava, desenhava, cantava, tocava, compunha, esculpia (insira aqui o verbo artístico de sua preferência) no Brasil.

Ok, ok... a Semana não nasceu de um mero momento de tédio, foi muito bem planejada. Mas seu efeito foi duradouro e espetacular. Colocando-se de encontro às correntes anteriores, os modernistas da Semana abriram a arte brasileira para a experimentação e para o novo. Agora, no Brasil, não era mais necessária a adesão a um movimento ou a preceitos vigentes. Ela tanto poderia carregar mensagens implícitas (como muitas das poesias de Mário de Andrade ou das pinturas de Tarsila do Amaral), como existir sem uma razão pré-determinada.

Agora, ao foco do problema. O que é boa arte? Para nos ajudar a entender, usarei os trabalhos do sociólogo francês Pierre Bourdieu. Bourdieu construiu uma teoria extremamente interessante e versátil, a teoria dos campos sociais. Não satisfeito com a sociologia pura e teórica feita em seu tempo, seus livros são frequentemente povoados com exemplos da vida real, a fim de contextualizar suas propostas. Ao longo de sua vida, Bourdieu usou os campos sociais para estudar áreas tão díspares como a influência da religião, o sistema educacional, o mercado imobiliário, os jogos olímpicos e o mercado de alta-costura francês.

E, é claro, Bourdieu estudou a arte. Para começar a análise, o sociólogo repudia veementemente a noção do “dom” na arte – conceito pelo qual alguns seres humanos nascem com maior tendência a se direcionar para as artes que outros, criando obras de primeira linha somente por condições genotípicas. Bourdieu diz que um artista se forma por suas condições familiares, socioeconômicas e educacionais.

Um campo social, para Bourdieu, é um cenário antropomórfico em que os agentes constantemente buscam melhores posições através da utilização de seus capitais. Traduzindo do sociologiquês para o português: todos nós, não importando onde estivermos, sempre buscamos uma melhor condição. É importante mencionar que esta melhor condição não é necessariamente econômica – em um campo religioso, uma melhor condição seria uma vida com maior expiação dos pecados; em um campo educacional, uma melhor formação intelectual; em um campo profissional, uma posição com maior reconhecimento dentro de uma empresa. Há vários exemplos, mas o mais importante é entender que o ser humano está sempre tentando atingir um nível superior ao anterior em seus campos de atuação.

Bourdieu argumenta que as principais formas de alcançar estes níveis superiores são os capitais. Capital financeiro para adquirir mais bens e formações educacionais melhores, capital social para articular os contatos necessários para uma determinada posição, capital intelectual para saber se expressar e se comunicar com mais eficácia... Os exemplos são vários.

No campo artístico, o capital mais importante é o capital cultural. Sendo assim, um artista não é conceituado por seu dom, mas por uma utilização efetiva de seu capital cultural para atingir uma melhor posição no campo. O sociólogo também argumenta que o capital cultural é utilizado em praticamente todos os outros campos. Alguém com alto capital cultural não tem mais condições para brigar somente no campo artístico, mas como em qualquer outro que esteja disputando.

Em seu fantástico livro A Distinção, Bourdieu propõe que o capital cultural é transmitido entre gerações. Um filho de apaixonados por literatura, música ou escultura tenderá assim a nascer com mais capital cultural que seus amiguinhos, podendo atingir melhores posições no campo devido ao caráter atávico de sua vocação.

Mas a herança não é o fator preponderante: para o autor, há três outras formas de se adquirir capital cultural: pela socialização prolongada, em que o agente é colocado em situações artísticas em várias ocasiões (como pais ricos que levam seus filhos a óperas – uma criança pobre saberia se portar em tal situação? E se não souber, não se afastará de óperas em sua vida adulta?), por forma objetivada (a exposição a objetos artísticos, como pinturas, livros ou filmes), ou por forma institucionalizada (por cursos, aulas ou aquisição de títulos culturais).

Lembremos que o capital cultural, como dito por Bourdieu, é uma das principais armas que os agentes possuem para brigar por posições em seus campos. Uma das principais lições que o autor passa é que pais que não possuem o capital financeiro para dar a seus filhos uma educação de elite nos melhores colégios ou a formação em diversas línguas estrangeiras podem escolher as formas citadas no parágrafo anterior para fortalecer o capital cultural de seus rebentos, deixando-os em situações mais confortáveis em seus campos.

Entretanto, este mecanismo, por proporcionar uma alternativa a agentes que não tenham capital financeiro suficiente, obviamente não vai ao encontro das expectativas das elites. Os detentores do poder então estabelecem, na visão de Bourdieu, um uso estratégico e político da arte, estabelecendo distinções entre a “boa arte” e a “não tão boa arte”, ou entre o “bom gosto” e o “mau gosto”, conforme o gosto do freguês.

E é aqui que o discurso de Bourdieu se coaduna com a questão principal, e que a teoria se mescla com minha visão pessoal. Em que ponto, exatamente, foi decidido que a música pop, ou qualquer outro estilo aleatório de arte, seria classificada como mau gosto?

Sem percebermos, estamos estimulando uma rédea intelectual promulgada pelas elites. Apesar de parecer óbvio que a complexidade artística do mais novo hit tocado nas paradas internacionais é infinitamente menor que música erudita, que Cinquenta Tons de Cinza não é Madame Bovary, ou que grafites nunca serão pinturas impressionistas, não devemos nos esquecer que o mais importante é seu alcance massivo.

Artistas de alcance popular, como Michel Teló e Beyoncé, conseguem atingir um número bem maior de pessoas que outras formas de arte mais restritivas. E concluo que é sempre bom que a arte esteja presente na vida de todos, mesmo que seja através de formas estética e ideologicamente mais pobres. Quem sabe estas formas mais simples não possam até mesmo servir de porta de entrada para outras formas mais elaboradas de arte? A divisão de “boa arte” e “arte ruim” nada mais é que uma classificação instalada para ratificar uma segmentação social em que determinados grupos sociais se auto-afirmam por meio de seus gostos e hábitos. A verdadeira democratização dos meios culturais não se fará presente somente no dia em que elites fizerem uma feijoada com pagode, e que as classes baixas visitem a Pinacoteca? Cenário improvável, ou impossível?

Afinal, a catarse aristotélica, a estética parnasiana ou a ruptura modernista precisam ser instadas necessariamente por música barroca, quadros renascentistas ou pelos textos de Proust? Uma forma mais simples ou rudimentar de arte também não poderia servir para cumprir seus propósitos? Termino o texto pedindo desculpas pela minha nativa prolixidade, e citando novamente Aristóteles: “deixe que cada um exercite a arte que conhece”.

Sugestão de leitura:

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007.

Livro em que Bourdieu tenta analisar o que motiva as escolhas dos seres humanos – fatores econômicos, sociais, intelectuais, ou uma mistura de todos? Leitura interessantíssima para romper alguns preconceitos que nem percebemos que existem.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Sobre a ética da eutanásia

Olá!

Há uns dois meses atrás, a avó de uma amiga minha, a Natasha, veio a falecer. Foi vítima de um problema chato, que começou como uma aparente bobagem, mas que com uma cirurgia mal-sucedida, seguida de uma série de infecções, que acabaram por se transformar em uma septicemia, fizeram-na não resistir. Quando seu fim já estava evidente, a Rosi (mãe da Nash) já pedia a Deus para levá-la de uma vez, em desespero por ver sua situação. Pois é, a morte é um negócio incômodo, mas tem hora em que ela é tudo o que nos resta.



O que fazer quando a vida já não vale mais a pena? É-nos lícito decidir sobre a continuidade de nossa própria vida ou de pessoas próximas?

Não vou aqui caminhar novamente nas sendas do suicídio, como já fiz neste post. Vou tocar mais de perto a aporia da eutanásia.

A Filosofia enxerga a questão da eutanásia pelo foco da ética, ou, para utilizar um termo contemporâneo, da bioética. Está, de certa forma, relacionada à questão do suicídio, de quem pode ser considerado uma modalidade (especificamente quando é motivado pela necessidade de supressão do sofrimento físico insanável). Sendo assim, a eutanásia enquadra-se no contexto da máxima famosa de Albert Camus: "O suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo; decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma questão fundamental da Filosofia".

A extensão desta pergunta ética se dá na possibilidade de encarar a vida como uma condição disponível à nossa vontade. A vida é um direito, isto é certo. Mas será também um dever? Até que ponto é admissível abrir mão da responsabilidade pela própria existência? Colocando a questão da doença incurável e do sofrimento físico é possível mudar a forma de encarar o suicídio, tornando-o admissível e até mesmo desejado?

Muitos povos, dentre eles os hindus e os celtas, eram praticantes da eutanásia, especialmente para propiciar mortes rápidas aos velhos e deficientes. Com o advento do Cristianismo, a vida ganha um aspecto de santidade, o que a torna indisponível para a vontade de quem a possui: ela não pertence ao indivíduo, mas é uma concessão de Deus.

Esta visão fundada na religião se mantém de modo pouco mutável, e, curiosamente, só é colocada em polêmica pelo filósofo católico Thomas More, que afirma que "se a doença é incurável e faz-se acompanhar de dores agudas e contínuas angústias, os sacerdotes e magistrados devem ser os primeiros a exortar os infelizes a decidirem-se a morrer". More faz estas observações em seu livro Utopia, onde descreve uma comunidade que vive de forma ideal, sem jogos de prestígios e sem privilégios entre classes, que, aliás, não existem. Mesmo convencido de que tais práticas nunca seriam adotadas na Europa, More dá sua concepção de sociedade justa, muito próxima ao que foi posteriormente sistematizado com o nome de socialismo. Percebam portanto, jovens, que More inclui a eutanásia entre os mecanismos do que reputa como uma sociedade em perfeito funcionamento. A noção cristã de piedade muda de lado, e passa a observar uma condição de sofrimento inútil, que se torna um fardo impossível e desnecessário.

Essa visão ficou isolada ainda por um bom tempo, mas podemos aplicar as ideias de outros filósofos por correlação. Vamos então fazer um exercício. Kant não falou diretamente sobre o assunto, mas baseia sua ética no imperativo categórico, cujo principal axioma diz que devemos agir como se cada atitude pudesse ser tomada por uma lei universal. Pensando neste aspecto, Kant diria que a eutanásia é uma atitude ética? Parece-me que não. Vamos ver o porquê.

Lei universal, portanto, aplicável em qualquer tempo e em qualquer lugar. Sendo assim, se a atitude tomada diante da hipótese da eutanásia, seja ela favorável ou contrária, fosse tomada como verdadeira, anularia a validade de sua oposta. Assim, caso eu queira ser favorecido com uma morte digna em minha doença irreversível, não poderei considerar ética a atitude de quem quer continuar vivendo independentemente de seu sofrimento. Ora, isso não pode ser considerado verdadeiro. Essa preferência é individual, porque depende de uma série infindável de contingências: a capacidade de resistir à dor, as convicções religiosas, o tanto de sofrimento e incômodo causado às pessoas ao meu redor, a possibilidade de manter um tratamento que, no final das contas, não trará efeitos. Se esse exercício é individual, regido pelas circunstâncias, qualquer ação diante da eutanásia não pode ter valor universal, e não poderá ser considerada uma atitude ética, ao menos no sentido kantiano, em voga até o século XIX.

Hoje, permanecemos na mesma encruzilhada ética. A eutanásia, como é colocada modernamente, pressupõe uma ação que possui dois polos, um que requer e que deve receber os procedimentos, e outros que é requerido e que deve executar os procedimentos. Ou seja, o paciente é ativo no desejo e passivo na recepção da própria morte, enquanto o médico é passivo na esfera do desejo e ativo na efetiva realização da eutanásia. A relação é então bilateral, há dois lados a serem considerados. Se a eutanásia é socialmente aceita, então temos apenas um acordo entre duas partes, como se fosse um contrato de compra e venda; do contrário, a visão muda para um assassinato consentido: temos um suicida e um homicida, o que muda sensivelmente o modo com o qual devemos encarar questão. É necessário analisar, por conseguinte, não apenas o lado do paciente que sofre inesgotavelmente, mas também a da ética médica, quem tem por dever último a manutenção da vida.

A decisão é extremamente difícil, sempre. Principalmente quando a tomamos por outrem. Vejam só o caso da médica Geertruida Postma, que decidiu praticar a eutanásia em sua própria mãe, doente terminal, injetando-lhe morfina suficiente para ocasionar uma overdose. Para a lei, não havia que se falar em misericórdia, mas em homicídio, e ela ficou presa por um bom tempo. Mas sua atitude (tal fato se deu em 1973) disparou a discussão ética que levou o parlamento holandês a regulamentar as situações em que esta prática é admissível.

Alguns apontamentos, portanto, são necessários, para que o debate siga em uma estrada segura: quem pode decidir sobre a eutanásia, sob quais critérios e condições, sobre a segurança de que as condições são irreversíveis, e sobre a verdadeira capacidade das pessoas envolvidas em decidir. Essas premissas são absolutamente mínimas.

Recomendações:

Há dois filmes absolutamente indispensáveis para a discussão sobre a eutanásia. Vamos a eles:

AMENÁBAR, Alejandro. Mar adentro. Filme. Espanha, 2004. 125 min. Colorido.

EASTWOOD, Clint. Menina de Ouro. Filme. Estados Unidos, 2004. 137 min. Colorido.


A obra de Thomas More é essencial para que se conheçam as raízes do socialismo (já ouviram falar de socialismo utópico? Vem daí!), conciliando a vida ideal de uma sociedade justa com os ideais de igualdade do cristianismo.

MORE, Thomas. Utopia. Brasília: IPRI, 2004.


E já que citei Kant...

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. São Paulo: Martin Claret: 2004.