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terça-feira, 30 de outubro de 2012

Sobre couraças psicológicas e pênaltis mal batidos

Olá!

Ainda tratando da novela “Avenida Brasil” (da qual já falei em meu post anterior), outros aspectos, além daquele já tratado, foram bastante interessantes. Relembro, por exemplo, de um determinado momento em que não era possível definir com clareza quem era herói ou quem era vilão. Os sentimentos estavam tão misturados (o que foi repassado com habilidade ao público) que tivemos um reflexo bastante pertinente do que é a vida real. Ninguém (com a exceção do personagem Tufão e de sua irmã) conseguiu manter uma pureza que permitisse ao público um alinhamento confortável, como costuma acontecer nessas novelas. As armações da Nina e as reações ensandecidas da Carminha derrubaram muitas vezes os limites morais com os quais a sociedade é acostumada a lidar.

Mas queria neste momento recordar de outro momento que achei bastante relevante, apesar de efêmero: o término do capítulo final, quando o personagem Adauto se livra de seu trauma, conseguindo anotar o tão almejado pênalti. Sua história é simples: movido por uma frustração da puberdade, quando foi flagrado pelos colegas de escola fazendo uso de uma chupeta, viu ruir sua expectativa de se tornar um herói de sua comunidade, ao desperdiçar a cobrança de um pênalti da qual foi incumbido. O detalhe sórdido foi a insegurança causada no personagem ao ser admoestado por um adversário, que lhe sussurrou algo no ouvido. Mais tarde, soube-se que a maldade do rival foi chamá-lo pelo incômodo apelido de infância, “chupetinha”.


Talvez não surtiria efeito a outra pessoa, mas no jogador em tela foi disparada uma série de sentimentos conflitantes que acabaram por desmontar seus sustentáculos psicológicos. Criança pobre, criado por uma família que não era a dele, não conseguiu o descolamento de uma figura materna ausente, o que trazia algum desequilíbrio à sua personalidade. Dois momentos foram explorados com sagacidade pelo diretor (que parece mesmo ter feito alguma leitura em psicanálise): o vínculo à figura materna feito com a personagem Muricy, a quem ficava observando atentamente na feitura de bolos e outros doces, e que no final das contas acabou sendo a chave para sua nova paixão, a cabeleireira Olenka, que resolveu adotar conscientemente as mesmas armas; e o uso persistente da chupeta, o bico de seio tão ausente em sua infância.

Que será que aconteceu com nosso atrapalhado herói, para ter travado de tal forma e segurar um trauma tão grande por anos a fio? Para tentar encontrar algumas respostas, e concluir se o autor da novela conseguiu buscar algum respaldo na literatura psicanalítica, vamos buscar alguns subsídios em um dos mais polêmicos seguidores de Freud, o austríaco Wilhelm Reich.

Para Reich, mais do que para ninguém, o corpo fala. Freud já havia deduzido isso, ao concluir que a histeria era uma doença de quem não conseguia expressar suas angústias em forma de linguagem codificada formalmente. No entanto, Reich percebe que as teses de Freud acabam por se circunscrever muito intimamente ao psíquico, enquanto, no seu entender, os reflexos orgânicos são tremendamente mais significativos. Todo o gestual e postural do corpo possuem um sentido na definição do indivíduo que a psicanálise freudiana não consegue atingir. Por isso, sua análise é ampliada, não se limitando à audição típica deste modelo, estendendo-se à interpretação das reações corpóreas do paciente.

Reich entende que a formação do caráter se dá no nível da vazão de energias. Quando um indivíduo tem sua constituição feita de forma equilibrada entre suas pulsões naturais e as repressões de caráter moral, teremos um adulto bem resolvido, com sua energia fluindo adequadamente. No entanto, se esse mesmo indivíduo não pode se formar de modo a conseguir lidar com suas frustrações, encontrará um represamento de energias, que refletirão em seu corpo e em seu modo de ser. Segundo Reich, este processo se inicia já no útero da mãe, o que nos dá a dimensão do quanto a emotividade processa interações com o organismo.

Para explicar como funciona essa sinergia entre corpo e mente, Reich desenvolveu a teoria das couraças. De acordo com essa tese, o corpo reflete organicamente as frustrações mal resolvidas durante toda a vida, e ainda que a condição física não seja permanente, o seu registro o é, o que faz com que a patologia possa ser disparada instantaneamente diante de qualquer evento que a faça reaflorar, como a nova vivência de uma situação constrangedora. Ou seja, temos uma somatização, que nada mais é do que uma conseqüência corporal de um fenômeno psíquico.

Como funciona isso? Ao se ver diante de uma situação conflitante, o psicológico do contribuinte produz conexões mentais que lhe informam como agir. Em um caso de perfeito equilíbrio, o corpo articula essa informação e a traduz em ação, liberando a energia requerida para tanto. Caso a situação represente uma ameaça (que não precisa ser real nem imediata), a couraça age, armazenando essa energia e impedindo que o impulso ocorra. O objetivo dessa couraça é proteger o cidadão de um agravamento de sua frustração, o que inconscientemente o livraria de danos maiores. Essa ação da couraça pode desencadear um travamento, um freio, uma dor, ou seja, uma reação fisiológica.

É o caso de nosso desafortunado Adauto. Provavelmente, ele estava apto a bater o pênalti, com a tensão normal de quem tem a responsabilidade de definir um campeonato. Ao cochichar seu apelido de infância, seu adversário fez recrudescer toda a tensão, multiplicando-a a ponto de interferir no seu correto funcionamento orgânico. Reich diria que Adauto tentou combater sua couraça, mas esta teve seu efeito devastador: a cobrança foi mal feita, por um processo de travamento e desconcentração. Ao trauma preexistente, sucedeu-se outro ainda maior, que o impediu até mesmo de prosseguir na carreira. Somente com a mitigação de partes significativas de sua frustração (com a descoberta feita pela personagem Olenka, seguida de seu “tratamento” liberatório de energias) o restante do desequilíbrio pode ser resolvido, e o caráter do moço, ao menos neste aspecto, conseguiu atingir seu leito normal.

Esta é uma interpretação bastante simplista e reducionista de minha parte, mas serve para introduzir um pensamento que tem sido visto com mais seriedade nos últimos tempos, principalmente com o desenvolvimento da psicossomática, área afeita à psicologia que estuda as alterações físicas produzidas a partir de fenômenos psíquicos, como as alergias, taquicardias, suores e outros sintomas desencadeados por motivos não relacionados à esfera fisiológica. E lembrando ainda que Reich fez aproximações interessantes com algumas filosofias orientais. Ele dizia, por exemplo, que o represamento de energia se dava em sete pontos do organismo, correspondentes aos chakras do corpo sutil descritos pela Yoga, e que cada um destes segmentos regia uma determinada característica do complexo emocional. Também definia a sexualidade como válvula de descarga de toda forma de energia, que se acumulava na região pélvica. O orgasmo era a representação máxima da harmonia físico-psicológica humana. Em uma época onde a livre manifestação sexual era vista como deturpadora de valores, Reich sofreu grande oposição e perseguição, com a proibição total de suas obras (chegou mesmo a ser levado à prisão, onde terminou seus dias).

Portanto, reputo como feliz a escolha do final da novela pelo diretor, que conseguiu produzir um grand finale a partir de uma trama lateral, que poderia ser facilmente esquecida, mas que representa a resolução de um mal nem sempre fácil de se perceber: o quanto a infância e puberdade podem interferir na constituição do ser adulto, e de como a cabeça da pessoa influi muito mais do que podemos supor no funcionamento do organismo. A fisiologia, a psicologia e ciências biomédicas têm olhado com muito mais atenção alguns aspectos que eram pouco levados a sério em um passado relativamente recente.


Recomendação de leitura:

Como já disse, todo o ideário de Reich é extremamente polêmico, contando com grande número de opositores. Mas como a psicanálise é bastante cara à Filosofia, é importante verificar como se deu o desenvolvimento de um pensamento que tem encontrado mais eco nos dias de hoje do que no auge de seu surgimento.

REICH, Wilhelm. Análise do caráter. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Sobre o cuidado necessário para estabelecer diferenças entre vingança e justiça

“Não conheço vingança perfeita.
Não se vingar talvez seja a melhor vingança.
Fazer esperar uma resposta que nunca virá.”
Fabrício Carpinejar

Olá!

Fato curioso ocorrido na última sexta à noite. Estava eu com meu amor e meus amigos (Alex, Jano e Luizão) tomando um suco de cereais fermentados na padaria Santa Tereza, dissertando sobre aventuras e desventuras em animada tertúlia, quando de repente tudo parou. Sobre nossas cabeças, uma televisão LCD de mais de 40 polegadas anunciava o início do último capítulo da novela “Avenida Brasil”.

Agitação em alto grau seguida de silêncio sepulcral, entrecortado por alguns comentários e psius. Solitários reunidos em multidão... Sim, admito. Acompanhei a novela, pelo menos do meio para o fim.

Ora, direis: justo o senhor, crítico mordaz dos folhetins televisivos, corrosivo opositor dos meios de comunicação como ferramenta da alienação, prescindiu de tão sólidos princípios e da egrégia atenção de seus raros confrades para apreciar um produto por ti tão vilipendiado? Como explica tal paradoxo, tal ambigüidade, tal bivalência, tal antagonismo, tal disparate, tal contra-senso, tal incoerência? Será desequilíbrio ou mero cinismo?

É verdade. De fato, já falei mal das novelas, como pode ser observado neste texto. Acontece que esta, na minha opinião, foi boa. Suas qualidades superaram os defeitos típicos de um programa deste tipo.

Ela entra no raro panteão das obras de arte, como já havia acontecido com “O bem amado”, que fixou o bom humor como instrumento da crítica política em plena ditadura, e com “Saramandaia”, experiência única no campo do realismo fantástico, aproximando-a da literatura. Seu pulo do gato foi estabelecer a discussão sobre temas caros à Filosofia, como a questão da vingança.

Claro que a novela patinou em muitos momentos, porque precisava se estender por um período relativamente longo (por isso prefiro as minisséries, muito mais concisas). Claro que algumas pontas ficaram soltas, claro que alguns dei ex machina precisaram ser acionados, claro que algum excesso de publicidade foi utilizado e claro que muita incredulidade foi gerada (lembremos que se trata de uma obra de ficção), mas, como um todo, as rotinas foram executadas com competência, porque despertou um interessante questionamento sobre a pertinência e o alcance de uma vingança que levou anos para ser levada a cabo, um tema muito incômodo.

A grande questão aqui levantada é a seguinte: a vingança realmente vale a pena? Vingança é sinônimo de justiça?


O cerne da trama estava nas atitudes da personagem Nina, que se imiscuiu no seio da família de um jogador de futebol famoso e agora aposentado, casado com Carminha, que causou muito mal à tal Nina em sua infância. Bom, não preciso me deter em contar esta história, que se tornou muito popular. Em uma longa cadeia de armações, seu desejo de vingança foi sendo construído e executado, até chegar ao êxito, ainda que por vias muito mais tortas do que as desejadas de início.

Muitos pensadores já trataram desta aporia. Ela nasce de uma necessidade psicológica de reparação em um movimento pendular, ou de causa e efeito, ou de ação e reação. Quem se vinga, quer no mínimo infligir o mal recebido na mesma medida em quem o causou. Pode-se até mesmo extrapolar, procurando executar um mal muito maior, desproporcional, porque a psique humana tem a capacidade de se pouco satisfazer muito facilmente.

Mas a justiça estabelecida pela sociedade pode ser equiparada à vingança? Colocar um homem na cadeia não corresponde a uma vingança de toda a sociedade contra quem subverteu suas regras?

A um primeiro olhar, pode parecer que sim e concordo que boa parte das penas estabelecidas em um código penal tem em seu substrato uma boa parcela de sentimento de vingança, mas há alguns pontos em que, a meu ver, há diferenças:

  1. A lei é preestabelecida, ou seja, há conhecimento prévio de que uma reação será adotada e qual o seu tamanho. Em uma vingança pessoal, nunca é possível estabelecer qual a medida que a reação terá e mesmo se ela existirá;
  2. Uma reparação não é necessariamente uma vingança. Digamos que eu quebre o vidro de uma janela com uma bolada. Se o dono da janela quiser que eu lhe conserte a janela, não necessariamente quererá me punir, porque não temos aí um sentimento essencial na vingança, que é o ódio. Se não houver a reparação, aí sim brotará o desejo de vingança;
  3. A justiça institucionalizada proporciona aos mais fracos meios de reparação que uma vingança pessoal não conseguiria atingir. É o caso, por exemplo, das mulheres que são agredidas por seus maridos. Fisicamente, sempre haverá uma desvantagem, e se a vingança for baseada em uso de armamentos, a reação será despropositadamente maior que a ação;
  4. A justiça procura estabelecer penas que previnam o mal, desencorajando sua execução de modo coercitivo. Já a vingança pressupõe a existência de um mal já realizado;
  5. A vingança é muito mais subjetiva. Não é rigorosamente necessário que o mal objetivamente tenha ocorrido, mas apenas que um indivíduo tenha se sentido lesado de alguma forma. É como a destruição do bem público que mencionei neste texto;
  6. A vingança nem sempre utiliza o mesmo metro da ofensa recebida. Por vezes, além de se desejar que o ofensor sinta a mesma dor do ofendido, também se quer que aquele sofra ainda mais, como meio de punição.
Falar em vingança como meio de justiça remete, invariavelmente, à questão da pena de morte. E aqui temos uma exponenciação do problema. Lembremos que a personagem Nina, ao final, pede perdão à Carminha pela vingança levada a cabo, o que pressupõe arrependimento. Isso só aconteceu quando os motivos que levaram a vilã a se tornar tal como era foram clareados. Se há arrependimento, e se este é sincero, é-nos lícito imaginar que há um sofrimento adicional para Nina, que carregará consigo o peso de haver infligido uma dor maior à sua oponente (amenizado pelo perdão concedido e pelo reconhecimento dos erros por parte de Carminha). Como a pena de morte é cabal e irreversível, um posterior arrependimento não tem como ser amenizado. Antes de punir é preciso compreender as distorções de caráter de quem é titular da vileza.

Tenho um ótimo exemplo. Já fiz remissões aqui a um desenho animado do cineasta francês Michel Ocelot, chamado “Kirikou e a feiticeira” (neste post). É preciso voltar a citá-lo, porque proporciona uma visão alternativa à necessidade de justiça e, por extensão, de vingança. Atenção: vou fazer spoiler.

A aldeia onde Kirikou nasceu vive em miséria por conta das ações maldosas da feiticeira Karabá. Por suas obras e artes, a aldeia enfrenta uma seca que destrói suas plantações, e seus homens são seqüestrados e supostamente mortos, trazendo um sentimento de desesperança aos seus habitantes.

Em confronto com outro desenho ambientado na África, como “O Rei Leão”, percebemos que as soluções são diferentes, como já veremos. Na obra estadunidense, o mal é representado pelo leão Scar, que tem sede de poder e quer tomá-lo através da ação violenta. Aqui, o mal é extirpado; sua solução vem pela sua eliminação. Scar morre atacado pelas suas próprias seguidoras, as hienas. A maioria dos desenhos da Disney é assim, é uma visão maniqueísta em que somente existe o bem e o mal, e que ambos possuem as mesmíssimas ferramentas para a solução do conflito. Já em Kirikou, esta solução é tomada em outras bases. A primeira atitude do menino é filosófica: pergunta-se o que leva a feiticeira a ser má. E parte na investigação destas causas. Depois de uma longa caminhada para chegar ao templo de Karabá, onde foi buscar a história vivida por sua comunidade e os aconselhamentos de sua mãe e do velho sábio, Kirikou descobre que a feiticeira, em sua juventude, foi agredida e violentada, e para radicalização da maldade, um espinho foi encravado em suas costas, fazendo-a sentir dor incessantemente. Sem dúvida, temos aqui uma metáfora do sentimento de culpa carregado por Karabá desde então, ou a marca de um trauma a acompanhá-la por toda a vida. E então temos a explicação para a pesquisa de Kirikou: a feiticeira é má porque ela sofre.

O que isso explica? Que a feiticeira não tem a maldade em sua essência humana. Ela é tão vítima quanto os homens que robotiza. Isso não significa que ela não seja punida pelo mal que causou. Pelo contrário, seu isolamento, o medo que causa na aldeia, o ódio que existe contra ela, tudo isso é causa de uma punição que ela não sabe reconhecer. Ela imputa a todos as causas de suas dores e de seu envenenamento, e usa isso como arma. O medo que ela causa imobiliza as pessoas. No fim das contas, os aldeões não percebem que toda a maldade que caracteriza a feiticeira também está presente neles, é preciso que a maldade exista em seus interiores para que eles reconheçam a ação má. O mal causado pela feiticeira é maior para si mesma do que para todos os outros membros da tribo, porque ele se auto-alimenta e, em seu isolamento, não encontra quem possa ajudá-la, o que acaba por tornar sua vida um autêntico castigo.

Quando Kirikou consegue extrair o espinho das costas da feiticeira, quebra-se o encanto que a escravizava, e temos uma cena lindíssima: ao ser beijado por Karabá, em reconhecimento à sua libertação, imediatamente vemos o menino se transformar em homem. O efeito imediato da luta pelo bem é o crescimento do indivíduo como ser humano. Karabá ainda sentirá o peso de seus atos ao chegar à aldeia e enfrentar a desconfiança de suas pessoas em sua regeneração, mas ela agora tem outra visão do mundo, iniciando pelo reconhecimento de suas próprias culpas e das conseqüências de suas más ações.

Pois então. Quando pensamos na vingança, não estaremos esquecendo o fator humano? Que nem toda a maldade é produzida de forma espontânea e calculada? E, além disso, que a maldade pode ser considerada por alguns como algo natural, fruto do descaso com que são tratados? A sociedade precisa pensar até que ponto ela não produz seus próprios assassinos, seus próprios corruptos, o quanto ela mesma não aceita inquestionavelmente suas próprias mazelas. Basta que estudemos nosso sistema prisional para entender que nada de bom pode sair de uma cadeia.

Muitos argumentos podem ser usados a favor da adoção da pena de morte, e, mesmo que assumidamente seja por vingança, alguns deles são verdadeiramente bons. Mas, na essência, sou contra a pena de morte por um motivo bem mais simples: nosso judiciário não tem condições morais para lidar com a punição extrema. Por volta do século XI, surgiu uma heresia na Igreja Católica cujos seguidores eram chamados de cátaros. Essa seita apregoava que apenas os mais puros seriam portadores da verdadeira mensagem de Deus, e apenas a eles seriam reservado o lícito direito de administrar sacramentos. Ora, quem tem condições de estabelecer quem é detentor de uma pureza equiparada a de seu próprio Deus? Por isso, a própria heresia se mutilou, por impossibilidade de definir um estatuto essencial a si mesma (além, é claro, das espadas fieis à Igreja).

Vale o mesmo para o juiz. Pode um juiz corrupto distribuir justiça em casos de corrupção? Seria necessária uma neutralidade que sabemos não existir, e para funcionar a contento, as instituições do porte do judiciário necessitam de confiabilidade, o que não é o caso brasileiro, dadas as denúncias de desvios de verbas e condutas que têm se tornado tão abundantes em nossos noticiários. Por isso, prefiro ainda ter a garantia legal do direito à vida do que viver sob uma espada que ameaça cair constantemente sobre nossas cabeças.


Recomendações:

Já havia citado o desenho Kirikou aqui por estes lados, mas o faço novamente porque vale de fato a pena:

OCELOT, Michel. Kirikou e a feiticeira. Animação. França, 1998. 71 min.

Sobre a pena de morte, há livretinho bastante interessante que descreve uma série de processos de morte por enforcamento no Brasil. Perceba que a imensa maioria (quase a totalidade) dos casos se refere a escravos que reagiram contra seus senhores. É bastante difícil de encontrar.

BARROSO, Gustavo. O livro dos enforcados. Rio de Janeiro: Getúlio M. Costa, 1939.

sábado, 20 de outubro de 2012

Entre o adulto infantil e a criança erótica

Olá!

Estamos no mês das crianças. Engraçado como esse evento cresceu de uns vinte ou vinte e cinco anos para cá. Lembro que, em minha infância, as comemorações do dia das crianças eram menos importantes que as da padroeira, ocorridas concomitantemente, e qualquer porcariazinha de feira acompanhada de ki-suco jarrão eram o suficiente para alegrar a data. Era um dia mais de ir para a igreja do que para distribuir presentes. Hoje em dia, a coisa é um pouco mais cara, como bem sabemos.

A data me traz uma ponta de melancolia, porque me lembro de meu menino que se foi tão cedo. E aí, invariavelmente começo a refletir nas crianças que sofrem, naquelas que são pobres, doentes, vítimas de preconceito. Existia, no meu tempo de criança, um conceito educacional de segregação, chamado de “classe especial”, que servia para estocar as crianças com alguma disfunção mental em um canto reservado na escola. Ninguém via essas crianças entrar nem sair, não havia horário de recreio para eles. Ficavam confinados naquela estranha sala, que só tinha janelas para o lado do estacionamento dos professores. Bom, sobre isso falarei oportunamente.

Falar no sofrimento infantil, nos dias de hoje, remete a outra questão, ainda mais delicada. É com freqüência que vemos, nos dias de hoje, uma série de reportagens sobre crimes de pedofilia, o que se agravou consideravelmente a partir do advento da popularização da internet, que permitiu o tráfego de bilhões e mais bilhões de bytes agrupados em imagens, filmes e etc., sob um escudo de anonimato razoavelmente bem estruturado. Há uma reação generalizada em toda a comunidade virtual, com uma quantidade bastante expressiva de campanhas visando minimizar e, se possível, extinguir o problema. Só que, se dermos um olhar mais aprofundado para a questão, teremos a triste notícia de que há muito cinismo nessas ações.

Vamos ao busílis. Tempos atrás, fui convidado por uma aluna a abordar o tema em classe, principalmente por conta de constatação da existência de muitos casos de pedofilia no interior dos seminários e conventos. Para isso, fiz uma pequena pesquisa que me levaram a concluir que, na maioria dos casos, o ato se dá por persuasão, e não por violência, o que já seria hediondo por si só. Isso nos leva a crer que o ato em si é cercado de extremo individualismo e desequilíbrio, e não propriamente de destrutividade. O que me chamou a atenção é que havia uma alegação de amor e desejo descontrolados nas alegações dos delinqüentes. Há alguma razão em se violar aquilo que se ama?

Pois bem. Começarei pela conclusão: O que temos é que, se há tantos pedófilos, é porque a própria sociedade é pedófila.

Não há como fugir da questão dos excessos da sociedade de consumo. Para produzir um máximo de expectativa de desejos, os estratagemas utilizados pelos grandes conglomerados econômicos buscam compactar os interesses de toda a espécie humana em uma única grande faixa: a do jovem adulto, maior força consumidora, porque é titular de muitas expectativas e possui poder aquisitivo. Para isso, é preciso que as faixas mais distantes assumam características dessa última: as crianças, que não tem posses disponíveis e a dos adultos mais velhos, que já possuem controle mais elaborado de seus gastos e expectativas mais bem consolidadas. Com isso, temos um trabalho realizado em duas frentes.

Começo pelo lado infanto-juvenil. As crianças, desde sempre, tem o costume de imitar os adultos. Trata-se de parte do processo de mimesis que já comentei em três outras ocasiões (aqui, quando falei do processo de replicação da violência; aqui, quando tratei da disseminação dos memes; e aqui, ao abordar a anti-ética contra o bem público). Geralmente, isso ocorre de maneira furtiva, nas vaciladas dos pais, com as meninas de caras borradas de batom e outras maquiagens, roupas enormes dançando pelo corpo e jóias dependuradas no pescoço que mais parecem cordas para pular. Os meninos faziam de conta que se barbeavam, engolindo um bom tanto de espuma, ou pulavam no banco dos carros para fingir que dirigiam. Isso tudo tinha um aspecto lúdico, e era propedêutico para sua entrada na adolescência. A diferença dos dias de hoje é que os próprios pais se encarregam de maquiar seus filhos, enchê-los de piercings e brincos, vesti-los com roupas coladas ao corpo, mais ousadas do que eles mesmos admitiriam usar. Significado final: influenciados pelas regras de consumo, os próprios pais tratam de erotizar seus filhos. Se antes tínhamos um pito pelo uso indevido dos objetos pessoais dos pais, hoje temos a aquisição destes mesmíssimos objetos para uso legítimo dos filhos, o que valida não só seu consumo, mas a compreensão de que tudo isso é muito bom, já não é mais uma mera brincadeira.

O problema todo está naquilo que, no jargão pedagógico, chamamos de “queimar etapas”. O complexo afetivo da criança é tão amplo quanto o de qualquer adulto, mas a formação de sua maturidade está em andamento. Transformar a criança em pequenos adultos não é só fazer dela um pastiche do que ela ainda não deveria personificar, mas também, e principalmente, em deslocar seu foco afetivo para a sexualidade, deixando de considerar aspectos como a formação da abstração, da vida em comunidade, da apreciação da arte. Isso sem contar que essa noção de sexualidade da criança é incompleta. Ela existe, mas é muito pouco definida. Não é preciso ser puritano para reconhecer que este excesso é danoso. Todo excesso o é. Só que, neste caso, trazemos a expectativa de uma etapa futura para o presente, no momento em que este não deveria acontecer. Ilimitadas, elas consomem produtos estranhos a esta etapa da vida, e se expõe como o que não são. O grande pecado é que tudo isso é interiorizado de forma a tornar-se um distintivo da realidade.

A outra frente diz respeito ao processo inverso, ou seja, a infantilização dos adultos. A mecânica do consumo bombardeia todas as instâncias etárias com a afirmação de que a vida ocorre na juventude. Há uma promessa de felicidade para aquele que se torna o eterno adolescente, pleno de vida e vontades, guiado pela realização do prazer. A criança e o jovem são inconseqüentes, a vida acontece hoje e o amanhã é só uma suposição. Ocorre que esta é uma suposição que efetivamente PODE acontecer, e viver irresponsavelmente não traz nenhum benefício para isso. A maturidade do homem adulto nunca chega, porque ela significa uma série de restrições: é preciso gastar adequadamente, é necessário estar descansado para o trabalho, é preciso pensar e planejar as rotas que serão traçadas. Tudo bem, nada contra o prazer, mas não conseguimos tê-lo cem por cento do tempo. O adulto é empurrado para baixo, para fora de seu lugar. Seu corpo não lhe permite mais acompanhar o ritmo tresloucado da juventude. Apesar de negar peremptoriamente, o adulto se frustra, porque essa vida calcada no hedonismo tem limites. Ninguém está livre dessa possibilidade. Eu mesmo sinto este impacto, não pensem que não. É o Tânatos que lança suas sombras sobre mim (lembram-se? Está neste texto).

Bem, a soma destas parcelas causa um efeito final que é uma verdadeira bomba. O adulto que não consegue encontrar seu lugar vai em busca daquilo que lhe falta. Basta um pequeno histórico de frustrações, de irrealização de desejos, de ridicularização em seu meio, aliado à falta de maturidade mencionada anteriormente, para que ele tente encontrar um nicho onde se localiza uma pureza e uma inocência que não tem a característica de oprimi-lo ainda mais. Quando esse impulso se volta para a sexualidade, temos o pedófilo.

Ok, mas não somos pedófilos. Temos discernimento suficiente para não comer criancinhas. Será que isto basta? O que está no nosso plano dos desejos? Não seremos nós participantes da mazela, também um pouco (ou muito) pedófilos?

Olhem só. Os produtores de material pornográfico fazem busca incessante de modelos para as mais diversas taras. Há quem demande idosos, anões, orientais, grávidas, negros e etc. Mas a procura por modelos que tem mais idade do que aparentam é muito grande. Estes produtores querem meninas que já possuam idade legal, mas que aparentem ter 14 anos ou menos. Desta forma, conseguem manter-se na legalidade, mas quem consome seu produto não guarda um comportamento pedofílico? O seu desejo não aponta para esse tabu? O mesmo pode se dizer das mulheres vestidas como colegiais, uma das taras mais comuns que conheço. Sabe-se que lá está uma mulher adulta, mas a expectativa não é essa. Quer-se, de fato, uma jovenzinha toda disposta às mais levianas traquinagens.


Apontemos agora para outro exemplo, menos agressivo e portanto mais dissimulado. Vivemos em uma geração que não deseja os pelos. Já vi propaganda de barbeador para remover pelos do peito, e está na moda a depilação completa, que promete arrancar qualquer folículo piloso que esteja abaixo da linha das sobrancelhas. A alegação é que os pelos trazem uma sensação de sujeira, de pouco cuidado, de mau cheiro. Essa afirmação só se justifica parcialmente para os pelos pubianos, o que facilita a prática do sexo oral. Mas se os pelos são fonte de ojeriza, por que queremos manter os cabelos cada vez mais sedosos e abundantes? Por que se quer apagar um dos distintivos mais clássicos do “macho”? Ora, o que se quer são peitos tão lisos quanto bundinha de criança. Entenderam?

Desta forma, podemos concluir que a pedofilia está imiscuída em meandros que nem conseguimos perceber, pelo menos à primeira vista. Para a defesa dos nossos pequenos, temos a lei. Só que ela é uma derrota de nossas relações. Toda lei representa uma limitação a uma transgressão que não se consegue conter espontaneamente. E isso é o claro sinal de que o mecanismo social fracassou neste aspecto, até mesmo porque a lei não consegue dar conta de tudo. Vejamos. A lei estabelece que uma pessoa se torna plenamente responsável aos 18 anos, como se houvesse uma passagem cabalística que transforma-a de criança para adulto do dia para a noite. Ora, sabemos de casos e mais casos de pessoas que já tem pleno desenvolvimento aos 14 anos, enquanto há pessoas de 25 ainda completamente imaturas. Mas a lei precisa de uma rigidez que a espécie humana não tem. A maturidade sexual é difícil de determinar. A natureza (e várias religiões) aponta a capacidade de procriar como o momento em que o indivíduo está apto organicamente para o sexo, mas esse não é o único ponto a ser considerado, porque há também o aspecto emocional, a capacidade intelectual, a força laborativa e tantos outros. A lei cuida simplesmente de estabelecer um padrão que, no final das contas, é arbitrário. Mas a sociedade não consegue prescindir da lei porque ela própria não sabe se auto-regular.

Tem mais um pouco. A lei pode funcionar objetivamente, mas tudo se complica quando se tenta julgar as intenções. Em uma reportagem do programa CQC, o problema de pedofilia foi abordado de modo desafiador. Uma moça de 19 anos firmou conversa com um homem de seus 40 anos, afirmando ter apenas 14. Entravado o papo, resolveram se encontrar para uma aventura. Quando o homem chegou ao apartamento, apareceu o repórter do CQC, tomando-o de surpresa e constrangimento. Passada a respectiva descompostura, nada mais poderia ser feito, e o homem foi embora. A lei, neste caso, não alcança o suposto delinqüente, porque, objetivamente falando, nenhuma prova foi produzida. O homem poderia alegar que sabia se tratar de uma falsa idade, que iria se certificar da idade real antes do ato, uma série de justificativas. E, nesse caso, a lei não conseguiria impedi-lo de nada.

Finalmente e repetindo: a sociedade é, ela mesma, pedófila. Ela mesma quer ver na criança e no adolescente um objeto sexual. Por isso afirmei, no começo deste texto, que ela é cínica. Ela mesma produz suas mazelas, ou, num esforço de boa vontade, colabora imensamente para tanto. Cabe a ela discutir o que fazer com seus membros que pularam a delimitação da lei, se serão considerados bandidos, sem-vergonhas, doentes ou se nada mais são do que o fruto mais sombrio da semente que ela própria plantou.

Em tempo rápido: o termo pedofilia é detestável, porque em sua etimologia não quer dizer nada de ruim. Sua tradução direta significa “amigo das crianças”. Ou seja, exatamente aquilo que não define um pedófilo.

Recomendação de leitura:

Se você quiser um olhar antropológico e sociológico sobre o assunto, recomendo o seguinte livro:

BARBER, Benjamin. Consumido – como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Rio de Janeiro: Record, 2009.


Já na literatura, temos um ótimo clássico que trata do assunto. Apesar da delicadeza do tema, o autor trabalha com extrema habilidade e mesmo bom gosto. Atenção, tarados: não há nenhum tipo de descrição de atos sexuais. A trama corre toda no nível psicológico.

NABOKOV, Vladimir. Lolita. São Paulo: Abril Cultural, 1981.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Sobre o alcance das concepções da verdade (e a pornografia como sua expressão)

Olá!

Há algum tempo atrás, levantei um pequeno debate sobre a validade da ciência como detentora da verdade (neste post). Como se trata de um tema em que não conseguimos encontrar pontos pacíficos, um leitor de alcunha Wako (não tenho certeza de quem seja, mas desconfio - certo, Bola?) redigiu o seguinte comentário, que passo a transliterar:

“Humm ... Ciência detentora da verdade ? Não conheço, mas vou conhecer o tal Popper. Minha dúvida é se isso não seria um reforço no seguinte dilema : Se a ciência não é detentora da verdade, então quem seria o detentor ? Afinal de contas o conforto da existência da verdade é a base que da existência. A verdade não se discute, ela se aprimora...então qual é a verdade senão a ciência essa mutante eterna sempre em busca de si mesmo.”

Colocações interessantes. É necessário, como compete a um bom filósofo (não que eu o seja, mas tento) ampliar o objeto da discussão.

Em primeiro lugar, é preciso delinear sob qual escopo formamos nossa concepção de verdade. Em nosso mundo ocidental, ela parte de três linhas de pensamento principais:

Aletheia – a verdade como correspondência
Do pensamento grego, nasceu a vertente chamada aletheia, que se preocupa com a correspondência entre o que é observado e sua respectiva descrição. A verdade como aletheia é largamente utilizada na Ciência, porque se baseia no real palpável. Ela é a mais conforme com essa visão científica porque está contida nas próprias coisas, está depositada no objeto, que possui características que podem ser descritas objetivamente, ainda que não o façamos. A verdade é presente: está no aqui e agora. Desta forma, constituímos a idéia de edifício, por exemplo, a partir da observação que fazemos dele.

Veritas – a verdade como coerência
A veritas tem ascendência latina. Aqui, a precisão não está na apresentação de um objeto ao seu observador, como acontece na aletheia; seu foco é voltado para a descrição coerente dos acontecimentos. Por essas características, a veritas é mais aplicável à história, porque se volta aos fatos já ocorridos e sua correta descrição. Há um compromisso entre linguagem e fato. Esta relação se dá de maneira satisfatória quando não há uma distorção que torna o relato mentiroso.

Emunah – a verdade como consenso
Uma terceira vertente é chamada de emunah, e tem origem judaica. Sua origem tem forte conotação religiosa, porque se baseia na confiança na realização dos fatos. Há aqui uma perspectiva futura, portanto. Nesta modalidade, a verdade encontra-se na expectativa de realização de algo que é tido como consenso. Verdadeira, nesse sentido, é a promessa que se cumpre, de acordo com o que foi preconizado por aquele que a proferiu.

Todas essas correntes se entrelaçam para formar nosso modo ocidental de encarar a verdade. Ocorre que, por vezes, elas conflitam entre si, turvando a perspectiva que temos daquilo que tentamos considerar como verdadeiro. Vejam a questão das ilusões de ótica: o que temos diante de nós é uma visão concreta de algo que nos induz ao erro. O mesmo podemos dizer dos relatos históricos, constantemente revistos após a descobertas de evidências contraditórias. Também os consensos mudam de acordo com o desenvolvimento das ciências e o desenrolar da história.

Um exemplo bem bacana vem da religião. No Cristianismo, há um confronto bastante significativo quando Jesus se coloca a frente de Pôncio Pilatos, seu julgador. Em um determinado momento do debate (versículos 37 e parte do 38 do capítulo 18 de São João), temos o seguinte:

“37. Perguntou-lhe então Pilatos: És, portanto, rei? Respondeu Jesus: Sim, eu sou rei. É para dar testemunho da verdade que nasci e vim ao mundo. Todo o que é da verdade ouve a minha voz. 
38. Disse-lhe Pilatos: Que é a verdade?”

Eis aí o confronto entre a emunah judaica e a veritas romana. Para Jesus, a verdade está nas coisas divinas, na promessa de uma vida eterna após a morte, o que se traduzia em uma concepção não palpável, não verificável, que somente pode ser obtida através da confiança na realização futura. Pilatos não reconhece esta modalidade da verdade. Originário de Roma, esta verdade de consenso na realização futura não tem valor algum. O discurso de Jesus é vago e impreciso para ele, justamente as características que dão força à fidedignidade da linguagem na formação da veritas. Não há coerência em um relato que discorre sobre um evento ainda não ocorrido. E com isso temos a pergunta mais filosófica da Bíblia: O que é a verdade?

Pois então. Se as bases que constituem nosso paradigma de verdade não são unívocas, como poderíamos pensar em uma verdade absoluta?

Pensemos, por exemplo, na pornografia. Lá, tudo é falso: os seios fartos, as bundas enormes, os membros caracterizados por um misto de tamanho, dureza e durabilidade, quantidades incomensuráveis de parceiros, penetração em todos os buracos, furos, orifícios e poros possíveis e imagináveis. Quantidade industriais de secreções, jatos mais poderosos que a mais pressurizada válvula de descarga; dois em uma, três em uma, quatro em uma, cinco em uma; duas pra um, três pra um, quatro pra um; uma, duas, três, dez, duzentas sem tirar de dentro. Posições dignas de causar inveja no mais elástico contorcionista e na mais talentosa ginasta olímpica. Tudo é exagero, tudo é superdimensionado. Sexo praticado nestes termos é algo incômodo, conforme explicou uma atriz pornô que foi entrevistada pela Antonio Abujamra, em seu programa Provocações. O que é agradável de fazer no dia-a-dia? Sexo convencional, com um pouco de sacanagem, explicou ela. Então, a que tipo de verdade aplicaremos a pornografia? Ora, à verdade dos desejos.


O desejo não se limita ao real palpável, mas influencia decisivamente os “filtros” que aplicamos em nossas interpretações. Estas estão plenas de símbolos e cifragens.

Não é preciso descer ao fundo das teorias representativas e imagéticas de Freud para deduzir que o desejo se realiza de maneira multiforme. Isso corresponde a dizer que, através de um mecanismo de projeção, o meu desejo pode ser realizado através do outro. Sim, é verdade, o cara na tela tem ao seu dispor um harém completo, enquanto temos apenas o auxílio de nossa inseparável companheira mão, mas o jogo de representações mentais é algo tão complexo que esta forma de realização do desejo pode acabar sendo mais completa do que se todo o seu transcurso fosse cópia fiel do que acontece na tela. Vejam as variáveis: não há cobrança de desempenho, tamanhos não fazem diferença, é possível parar a brincadeira a qualquer momento, e o máximo que teremos é um pouco de complexo de culpa (algo a ser tratado mais profundamente em um outro momento).

Pois bem. O que faz o diretor de filme pornô? Exponencializa essas expectativas ao máximo. Pega as pulsões sexuais mais comuns e as multiplica por cem, derruba os tabus sociais (por vezes o mais reprimido é o mais desejado – lembram que goiaba roubada é mais gostosa?), lida com a libido e com o desejo hiperbólico. Cria, através da ilusão do ato sexual idealizado, uma perspectiva de concretização da vontade, e essa vontade é real, expressiva de uma realidade difícil de ser medida em outros termos que fujam ao simbólico.

O homem é um ser desejante, que vive em constante insatisfação. O mito de Sísifo é bastante representativo desta busca incessante. Nele, encontramos nosso herói às voltas com sua punição pela ousadia de desafiar os deuses, por não aceitar seus desígnios. Esta punição consistia em carregar uma enorme pedra até o alto de um monte, de onde invariavelmente acabava por rolar até sua base novamente, e o trabalho precisava ser reiniciado eternamente. A pedra pode ser interpretada como os desejos que o homem carrega por toda a sua existência. Ao chegar ao topo do monte (a realização do desejo), perde-se toda a energia despendida, porque um novo desejo nascerá, e novamente terá que ser carregado para sua realização, incessantemente, por mais falta de sentido que pareça ter. A expectativa da realização do desejo é permanente, principalmente porque o realizado nunca é espelho fiel do desejado.

Eis que, portanto, a pornografia, com todos os seus aparatos, seus falsos prazeres, carrega em si tanta ou mais verdade que qualquer demonstração científica, porque lida com a falta de lógica contida na relação do real com o simbólico e com a metáfora; carrega em si tanta ou mais verdade que qualquer relato histórico, porque não se obriga a estabelecer coerência entre as loucuras praticadas por duas (ou três, ou quatro, etc.) pessoas; e carrega em si tanta ou mais verdade que qualquer consenso, porque convenções e tabus não significam absolutamente nada dentro do seu domínio, o plano dos desejos.

Para que ninguém diga que sou um putanheiro, declaro que o mesmo fenômeno se repete em qualquer instância que envolva o desejo. E isso se dá porque este cara faz largo uso de símbolos. Seguindo o ensinamento de Fernando Pessoa, por seu heterônimo Álvaro de Campos, percebemos a dicotomia da realidade colocada diante de nós: a coisa como é e a coisa como a percebemos, a articulamos e a retrabalhamos:

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Portanto, meu caro e desconhecido amigo Wako, se quisermos o conforto da verdade, se é essencial que não tenhamos a dúvida como companhia eterna, precisamos crer nela de maneira dogmática, sem dar muita bola para a diferença de significados que há entre o ato concreto e suas respectivas representações simbólicas. Sendo a própria linguagem um conjunto de símbolos, é difícil a ela dar conta de tudo o que é real. Será que é isso o que queremos?


Recomendações de leitura:

Mais um pouco de apoio freudiano para nossas discussões:

FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

Com relação às concepções da verdade, uma boa dica é o didaticíssimo livro abaixo. Simples e bom de ler.

CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1994.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Sobre as idéias para uma sociedade que prescinde das escolas

"Nem a aprendizagem individual e nem a igualdade social podem ser incrementadas pelo rito escolar. Não podemos superar a sociedade de consumo sem antes compreender que a escola pública obrigatória recria tal sociedade" – Ivan Illich

Olá!

Tenho me dedicado bastante à questão da educação neste espaço, em especial nos últimos tempos, quando me detive nas questões que levaram à despolitização da juventude, às propostas de uma nova escola e aos mecanismos que permitiriam o aproveitamento da massa de estudantes que remanesceriam da antiga base. Acontece que um sem-número de propostas já foram colocadas pelos mais diferentes pensadores da educação, cada uma com seus elementos de interesse e com suas questões menos bem resolvidas, o que torna difícil fazer uma miscelânea eficiente para resultar em um sistema verdadeiramente adequado. Mas hoje gostaria de fechar meu foco em uma sistemática um tanto inusitada, descrita pelo “maluco” Ivan Illich, um austríaco de origem croata que propôs a extinção da escola.



A pergunta que norteia o pensamento de Illich é a seguinte: para que e a quem serve a escola tal como a conhecemos? Por que necessitamos de escolas? Por que esse modelo é inquestionável? Para ele, a escola é uma instituição que reforça a ascendência das camadas situadas no topo da pirâmide social sobre as demais. Funcionaria como um cabresto social, limitando o alcance da visão daqueles membros que não estão incursos em sua elite. Desta forma, a escola se constitui em uma barreira de proteção às camadas mais abastadas da população, que decretaria o que é útil de ser ensinado para a população em geral. Para tanto, a educação formal desqualifica os conhecimentos adquiridos de maneira autodidática. Illich, no entanto, reputa o valor do conhecimento como intrínseco, ou seja, vale por si mesmo, e não pode depender de uma certidão para validá-lo. A certidão se presta unicamente para constatar a conformidade da educação recebida com os ditames dos detentores do poder.

Neste exercício de dominação, a escola é ferramenta para desnaturar o ser humano e anestesiar sua característica de questionador. De fato, a escola é um estabelecimento com poucos vínculos ao mundo que rodeia a criança. O conhecimento transmitido não passaria de manual de instrução. Essa segregação do educando com seu ambiente é perversa, porque tende a reduzir a importância deste último. Esse descolamento é especialmente prejudicial se considerarmos as dificuldades que há em reconhecer os vínculos simbólicos que existem entre o objeto representado e o conhecimento exposto, causando um brochante desinteresse. Um exemplo muito simples parte de Paulo Freire, que criou um método de alfabetização de adultos extremamente rápido e eficaz. Esse método leva em conta a realidade vivenciada pelos alunos, e procura basear o aprendizado em não deslocar o aluno desta realidade. Para tanto, era considerado, em primeiro lugar, o universo de vocábulos da comunidade em questão, o que facilitava sobejamente a absorção dos códigos lingüísticos. Com isso, a situação existencial do grupo era a baliza para a escolha do que deveria ser transmitido, e não a utilização de algum livro ou cartilha que fixasse normas estranhas ao conjunto empírico dos alunos, dificultando a assimilação. Além disso, o educador se deslocava para a comunidade, e não o contrário. Em resumo, parte-se do mundo em que se vive para a elaboração do código lingüístico, e esse volta em forma de conhecimento ao mundo, para questioná-lo e transformá-lo.

Mas se não existir a escola, o que teremos? O pulo do gato de Illich seria a formação de redes de conhecimento que teriam o objetivo de substituir o modelo escolar por um paradigma de solidariedade. O conhecimento seria objeto de compartilhamento movido por interesses baseados em cada um dos grupos que deles sentissem necessidade ou aptidão. Lembram quando emiti este post? O nome disso é anarquia (ou quase isso), não no sentido corriqueiro de bagunça, mas de ausência de centralização. Illich não falou expressamente em uma anarquia educacional, mas é possível subentender algumas características comuns. A escola como prédio não é necessária, porque os saberes estão no mundo e nas pessoas que o habitam. Como preconizou outro pensador-chave do século XX, Michel Foucault (leiam algo sobre ele neste post) há portas que servem para impedir a saída, como as dos presídios e manicômios, e outras que servem para impedir a entrada, como as dos teatros, cinemas e – cinquina – das escolas. Trocando em miúdos: há sistemas em que a sociedade não quer que tenhamos fuga, porque somos indesejados; e há outros que a mesma sociedade não nos quer dar acesso – ao saber, ao conhecimento. Illich pensa não em derrubar estas portas, mas extingui-las – uma solução mais radical, portanto.

Em suas premissas, Illich indica que a base para o funcionamento de seu sistema está na solidariedade: não se deve pensar unicamente no desejo de aprender, mas também no desejo de ensinar. Para ele, em algum momento da vida, todos os interessados devem ter ao seu dispor o acesso aos meios de aprendizagem disponíveis; mas também devem ter a disponibilidade de oferecer seus conhecimentos a quem possuir interesse em suas áreas de predileção e especialização.

A educação se daria em termos de redes, que Illich denominou “teias de aprendizagem”, que pressupõe democracia da informação, no sentido de que esta estaria disponível no momento em que houvesse requisição por um interessado. Também pressupõe a interconectividade e a possibilidade de permuta dos conhecimentos, numa relação dialética, utilizando todos os meios de propagação disponíveis. Percebam que a obra-prima de Illich foi lançada em 1971, quando a internet não estava ainda nem no sonho dos meios educativos (nossa concepção de futuro estava mais para os Jetsons, com sua revolução nos transportes, do que em uma revolução da disponibilização dos saberes) e já nesse momento ele aventa a possibilidade de utilização da mídia, como a televisão e o rádio, para a disponibilidade do saber. Hoje, sem dúvida, estas idéias estariam muito mais palpáveis. Vejamos:

A educação deveria levar em conta as seguintes teias para ser levada a cabo:

1º - Acesso aos objetos educacionais: diversos ambientes são, por si só, educacionais, como museus, laboratórios e bibliotecas. Outros deles são oficinas de trabalho, mas que também podem fornecer conhecimento, seja ele técnico, artístico, religioso. São as fábricas, os portos, as lojas, as agências de viagem, os consultórios médicos, as fazendas, as igrejas, os ateliês. Todos os processos realizados nesses estabelecimentos podem ser utilizados na educação formal, como já acontecia com os antigos aprendizes;

2º - Compartilhamento de habilidades: trata-se do escambo de saberes. Disponibiliza-se uma determinada habilidade em troca da obtenção de informações sobre outra área de conhecimento afim. Desta forma, com a conciliação desses saberes, temos uma expansão da sua disponibilidade, já que o conhecimento detido por um indivíduo agora passa a ser compartilhado por dois, e assim sucessivamente;

3º - Encontros entre colegas: trata-se de uma modalidade que permite aos interessados em uma determinada especialização se reúnam para delinear objetivos e pesquisas a serem realizadas. Esta reunião teria o escopo de estabelecer uma divisão de tarefas que seriam, por fim, agrupadas e discutidas em comum. Seus resultados finais deveriam ser objeto do mesmo compartilhamento mencionado no item anterior;

4º - Consulta a educadores: os especialistas em determinadas áreas estariam disponíveis para consulta em questões que se tornassem mais complexas, em uma espécie de consultoria. O importante é notar que o especialista em uma determinada área é aprendiz em outra. O processo de aprendizagem, desta forma, tornar-se-ia incessante.

Todas estas redes, ao fim e a cabo, também se entrelaçariam entre si. Como a informação não teria dono, o grande interesse em movê-las seria a aquisição de mais e mais conhecimentos, sem propósitos econômicos. Com isso, não existiria a intermediação deturpante da escola, enviesada pelos rumos que a sociedade como conhecemos dá a ela. O simples fato de existir uma rede de alcance mundial, como é a internet, já nos faz pensar nestas possibilidades de uma maneira um pouco mais tangível.

Tenho muita dificuldade em concordar com as teses de Illich. Os porquês:

- Em primeiro lugar, porque a sociedade está de tal forma institucionalizada que fica muito difícil supor a possibilidade de uma transmissão de conhecimentos que funcionaria de maneira tão difusa. É preciso pensar, portanto, que todo o organismo social funciona a partir de “compartimentos”, como os partidos políticos, os sindicatos, as empresas, os órgãos de defesa do consumidor, as ONG’s e assim por diante. Isso porque há uma tendência em segmentar interesses e reunir funções e aptidões ao redor de núcleos, que estariam ausentes em uma sociedade desescolarizada.

- Também é preciso supor uma rede de solidariedade tão bem aceita que provavelmente seria impossível praticar a livre iniciativa. Mesmo que eu ache isso lindíssimo, parece-me algo absolutamente infactível no modelo social que temos hoje, baseado no mérito.

- Outra coisa: a escola não precisa, necessariamente, ser aprisionadora para existir. É certo que é muito difícil remover o véu ideológico porque os professores e diretores são humanos e não são neutros, mas de toda forma é possível supor, a partir de várias experiências, que os alunos possam ter uma tal participação na guia de suas vivências acadêmicas que a simples extinção da escola não seria necessária para solucionar a questão da utilização dos conhecimentos em suas vidas práticas.

- Mais uma questão diz respeito a um fenômeno recente, que é a aplicação da educação a distância (EAD), que, mesmo involuntariamente, acaba por utilizar algumas teses de Illich, como a utilização de redes de informação e autonomia de horários e pesquisas. Ou seja, mesmo com a elaboração das disciplinas e da avaliação dos educandos estando centralizado em uma escola, todo o processo em que se dá a aprendizagem prescinde (ou minimiza) a presença física do aluno e a disponibilidade de um professor.

No entanto, as teses de Illich não deixam de ser uma visão muito interessante sobre os males que o mundo liberal-capitalista exerce sobre os métodos de transmissão do conhecimento aos alunos, principalmente quando pensamos na educação como ferramenta da alienação. E, em um país que assiste fenômenos como a evasão e o fracasso escolar em quantidades industriais, pode ser importante pensar em caminhos alternativos, ainda que não os adotemos, ao menos para fazer com que nossa massa encefálica receba algum tipo de massagem estimulante.

Conclusão: se Illich corre atrás de sombra de avião, o faz com uma lógica pertinente, que não pode deixar de ser vista como um protesto contra uma educação meramente instrumental e subordinada a uma ideologia que não é humanizadora.


Recomendação de leitura:

Illich propõe a desescolarização em termos muito inteligentes, muito embora tenha uma aparência utópica demais. É interessante de ler mesmo que não se creia em suas propostas, porque se trata de uma análise ampla de como a sociedade exerce sua influência na constituição de seus mecanismos educacionais.

ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. Petrópolis: Vozes, 1985.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Sobre direitos iguais e pessoas desiguais (ou: a justiça como equidade e solução social)

É mole de ver que para o negro
mesmo a AIDS possui hierarquia
na África a doença corre solta
e a imprensa mundial dispensa poucas linhas
comparado, comparado ao que faz com qualquer
comparado, comparado figurinha do cinema
comparado, comparado ao que faz com qualquer
figurinha do cinema ou das colunas sociais
Todo camburão tem um pouco de navio negreiro
Marcelo Yuka – O Rappa

Olá!

Bem no finalzinho do mês de maio, uma das universidades que mais relutavam em adotar um sistema de cotas para prover suas vagas, a toda-poderosa Universidade de São Paulo (USP), começou a abrir o debate para sua adesão a este benefício, apoiado principalmente no julgamento da constitucionalidade deste regime pelo STF, o que levou o pessoal da Faculdade de Direito a recomendá-lo ao Conselho Universitário.

Tema complicado, esse. Já escutei um sem-número de opiniões a respeito, prós e contras, e a principal encruzilhada é feita de um misto de resistência social baseada no mérito e da dificuldade em determinar quem é negro e quem não é. Vou dar um exemplo prático para entendermos melhor a dificuldade.

Esta é a Natália:



Uma menina linda que, isoladamente, podemos chamar no máximo de morena. Em seus registros civis consta como branca. Em tempo: o nariz não é naturalmente vermelho (Ai, que engraçado).

Esta é a Renata:


O enquadramento atribuído anteriormente também vale aqui. Bonita, morena clara, branca por extensão.


Pois bem. Estas são Renata e Natália:


Elas são irmãs, filhas do mesmo pai e da mesma mãe. Será que agora a Natália virou negra?

Esta é a Deborah:


Mais uma menina linda. Ela é loira, olhos azuis. Corre sangue indígena em suas veias, comprovado por documentos. Seria ela também uma indígena?

Sabemos que o Brasil é quase que uma perfeita amostra para qualquer extraterrestre que queira investigar os tipos humanos de nosso planeta. São Paulo é uma cidade absolutamente cosmopolita. Temos os italianos do Bixiga e da Moóca, os espanhóis do Ipiranga, os portugueses da Vila Maria, os argelinos do Arouche, os gregos e judeus do Bom Retiro, os japoneses, chineses e coreanos da Liberdade, os lituanos da Vila Zelina, os bolivianos e peruanos do Brás, os alemães do Brooklin, os nordestinos do Sapopemba, os armênios da Ponte Pequena, os sírios e libaneses do Parque Dom Pedro, antigos e recentes, misturados uns aos outros. Vieram em busca do progresso, para fugir da guerra e da miséria. Vejam bem, o único contingente populacional significativo que veio para o Brasil contra a própria vontade foi o africano.

Foram colocados para fazer todo o trabalho sujo e pesado, por anos a fio. Todo seu aporte cultural foi jogado no lixo. O melhor exemplo foi a demonização de sua fé, cujos efeitos perduram até hoje (vide este post). Não é preciso se alongar muito. Um belo dia, deram um papel na mão de cada um e ofereceram a Brasil inteiro para que pudessem vagar. Em outras palavras, mostraram-lhes o caminho da rua, substituídos por imigrantes melhor preparados.

A história não tem nada de romântico e pouco de humanitário. Os escravos só foram libertados porque havia vantagem financeira. Os reflexos se sentem até hoje, e o maior desafio de nosso tempo é corrigir esta maldade histórica.

Para embasar uma solução à questão das desigualdades geradas por nosso modelo social, podemos recorrer ao filósofo político John Rawls, autor da teoria da justiça como equidade. Estadunidense, ele verificava na filosofia utilitarista em voga no mundo ocidental um fato gerador de desigualdades. De acordo com a posição utilitária, a sociedade deve perseguir o maior bem-estar possível para o maior número de pessoas. Seu grande problema é que sua distribuição se baseia no mérito, mas este é influenciado por fatores que independem da vontade do indivíduo. A grande questão de Rawls é: como garantir direitos iguais a pessoas desiguais?

Para o nosso filósofo, é imprescindível que se tenha em tela a perspectiva kantiana sobre a ética. Kant lança a idéia do imperativo categórico, ou seja, toda atitude ética deve ter o valor de uma lei universal. A concepção de justiça baseada no utilitarismo é falha neste aspecto, porque desconsidera os fatores limitantes dos seres humanos. Dessa forma, não se pode pensar em uma sociedade justa (e o conceito de justiça é primal para Rawls, mais do que o conceito de bem) se ela não provê mecanismos de adequação a estas limitações que independem do mérito, como os defeitos físicos, a pobreza, a acuidade intelectual, entre outros. Se a sociedade utilitária não se ocupa de proporcionar equanimidade de oportunidades para estes indivíduos, temos uma falha na formação da cidadania, que é a constituição de minorias. Estas minorias estarão sempre em desvantagem, porque constituem a porção da população que puxa a média do bem-estar disponível para baixo, e eis que temos a exclusão social.

A pedra de toque do pensamento de Rawls está contida na afirmação de que “toda pessoa possui uma inviolabilidade baseada na justiça, sobre a qual nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode prevalecer. Por esta razão a justiça nega que a perda da liberdade de alguém possa ser justificada por maiores benefícios obtidos por outros”, liberdade esta entendida como de oportunidades e escolhas. Em um resumo final, podemos perceber a filosofia de Rawls imbricada para um viés moral que havia sido perdida nas concepções positivistas e pragmáticas.

Olhamos para o Brasil de hoje e percebemos a influência da filosofia de Rawls.O ECA visa garantir direitos ao menor em formação, o Estatuto de Idoso protege os cidadãos da terceira idade, as diversas leis de acessibilidade visam facilitar a locomoção de deficientes, os concursos públicos reservam vagas para portadores de necessidades especiais. E, neste ponto, posso incluir a solução almejada para as dificuldades encontradas em meus posts sobre a despolitização de nossa juventude (aqui e aqui).

Retomando seu tema rapidamente, observei que os sistemas educacionais implantados até hoje não se mostraram eficientes, porque desprezam a identidade humana e sua necessidade de perceber, articular e retrabalhar os vínculos entre os conhecimentos, gerando uma visão fragmentada, ideal para o trabalho, mas desastrosa para a cultura global. A implantação de um sistema sério deve partir do zero, mexendo com a base do conhecimento, que é transmitida desde os primeiros anos do aluno. Ocorre que já temos um contingente gigantesco de jovens inseridos na metodologia do fracasso, que dificilmente sentirão os reflexos de um novo sistema. Já estão estragados, precisam de um dispositivo que permita reduzir os danos. E este remédio parece ser o sistema de quotas.

Vamos pensar nas preconizações de Rawls. O que é justo? É aquilo que permite a equanimidade. Já disse que os negros foram enfiados a força no Brasil, com o racismo nas suas costas a impedir sua ascensão social. A inapelável maioria das classes sociais mais baixas é constituída por negros e seus descendentes, no que incluo os indígenas. (Aqui, uma pequena contradição de aplicabilidade do pensamento de Rawls, já que sua visão parte de um ângulo anglo-americano. Como a sociedade de lá é menos desigual do que a nossa, o conceito de minoria excluída se torna um pouco inadequado – nossas classes sociais são muito mais esgarçadas – já que uma parcela imensa da população pode ser considerada como distante das elites, e consequentemente dependentes do poder público). A falta de oportunidades é clara, e, se queremos corrigir os rumos da justiça social, é preciso que a vontade política seja dirigida para programas de inclusão.

Sou contra um sistema puramente baseado na raça por um motivo extremamente simples: temos o risco de criar um novíssimo preconceito, poucas vezes imaginado antes, que a criação de uma pequeníssima minoria de brancos favelados. E, como exemplifiquei com fotos logo acima, é extremamente difícil estabelecer quem é negro e quem não é. O jornalista Elio Gaspari certa vez sugeriu uma maneira de estabelecer o quanto o aspecto de uma pessoa poderia ajudar a definir quem é negro. Formar-se-ia uma comissão de porteiros e seriam apresentados a eles os candidatos à quota. A pergunta seria simples – quais destas pessoas vocês admitiriam que entrasse em seus prédios sem consulta de documentos? Aqueles que forem barrados serão considerados negros. Claro que há um sentido irônico nesse “método”, mas ele demonstra o quanto a sociedade se baseia na aparência como critério de acesso.

Se nos dirigirmos à classe social mais baixa, invariavelmente estenderemos seus efeitos à questão racial. E desta forma poderíamos abarcar aqueles que não se enquadram no estereótipo racial, mas que enfrentam os mesmos problemas sociais. Portanto, vejo como necessária a adoção de quotas sociais, e não puramente raciais.

Como seriam aplicadas as atribuições das quotas sociais é questão difícil de resolver, mas é preciso estabelecer critérios que possam ser corrigidos com o passar do tempo e da constatação de sua eficácia. Um exemplo poderia ser a bonificação de uma percentagem na nota obtida pelo aluno nos processos avaliativos, como já é feito nos acessos às ETEC’s, e os candidatos em geral concorreriam em lista única. De qualquer forma, a formação de uma nova geração não pode pressupor a exclusão da anterior, e não vejo alternativa à adoção de quotas. Se realmente levarmos a sério as indicações de John Rawls, é preciso engolir a concorrência com as classes que antes ficavam do lado de fora do palacete estudantil. O resultado final será um círculo virtuoso, onde cada vez mais pessoas poderão auxiliar na sustentação da igualdade, e o peso será menor para o caminhãozinho de todos.


Recomendação de leitura:

As teses de John Rawls são bastante extensas. Para conhecê-las em profundidade, é preciso ler seu capolavoro:

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2009.


Em tempo: Queria agradecer a Ná, a Rê e a Deb por autorizar os usos de suas fotos. Amo muito vocês!!!