Ainda tratando da
novela “Avenida Brasil” (da qual já falei em meu post anterior), outros aspectos, além daquele já
tratado, foram bastante interessantes. Relembro, por exemplo, de um
determinado momento em que não era possível definir com
clareza quem era herói ou quem era vilão. Os
sentimentos estavam tão misturados (o que foi repassado com
habilidade ao público) que tivemos um reflexo bastante
pertinente do que é a vida real. Ninguém (com a exceção
do personagem Tufão e de sua irmã) conseguiu manter uma
pureza que permitisse ao público um alinhamento confortável,
como costuma acontecer nessas novelas. As armações da
Nina e as reações ensandecidas da Carminha derrubaram
muitas vezes os limites morais com os quais a sociedade é
acostumada a lidar.
Mas queria neste
momento recordar de outro momento que achei bastante relevante, apesar de efêmero: o
término do capítulo final, quando o personagem Adauto
se livra de seu trauma, conseguindo anotar o tão almejado
pênalti. Sua história é simples: movido por uma
frustração da puberdade, quando foi flagrado pelos
colegas de escola fazendo uso de uma chupeta, viu ruir sua expectativa de
se tornar um herói de sua comunidade, ao desperdiçar a
cobrança de um pênalti da qual foi incumbido. O detalhe
sórdido foi a insegurança causada no personagem ao ser
admoestado por um adversário, que lhe sussurrou algo no
ouvido. Mais tarde, soube-se que a maldade do rival foi chamá-lo
pelo incômodo apelido de infância, “chupetinha”.
Talvez não
surtiria efeito a outra pessoa, mas no jogador em tela foi disparada
uma série de sentimentos conflitantes que acabaram por
desmontar seus sustentáculos psicológicos. Criança
pobre, criado por uma família que não era a dele, não
conseguiu o descolamento de uma figura materna ausente, o que trazia
algum desequilíbrio à sua personalidade. Dois momentos
foram explorados com sagacidade pelo diretor (que parece mesmo ter
feito alguma leitura em psicanálise): o vínculo à
figura materna feito com a personagem Muricy, a quem ficava
observando atentamente na feitura de bolos e outros doces, e que no
final das contas acabou sendo a chave para sua nova paixão, a
cabeleireira Olenka, que resolveu adotar conscientemente as mesmas
armas; e o uso persistente da chupeta, o bico de seio tão
ausente em sua infância.
Que será que
aconteceu com nosso atrapalhado herói, para ter travado de tal
forma e segurar um trauma tão grande por anos a fio? Para
tentar encontrar algumas respostas, e concluir se o autor da novela
conseguiu buscar algum respaldo na literatura psicanalítica,
vamos buscar alguns subsídios em um dos mais polêmicos
seguidores de Freud, o austríaco Wilhelm Reich.
Para Reich, mais do que
para ninguém, o corpo fala. Freud já havia deduzido
isso, ao concluir que a histeria era uma doença de quem não
conseguia expressar suas angústias em forma de linguagem
codificada formalmente. No entanto, Reich percebe que as teses de
Freud acabam por se circunscrever muito intimamente ao psíquico,
enquanto, no seu entender, os reflexos orgânicos são
tremendamente mais significativos. Todo o gestual e postural do corpo
possuem um sentido na definição do indivíduo que
a psicanálise freudiana não consegue atingir. Por isso,
sua análise é ampliada, não se limitando à
audição típica deste modelo, estendendo-se à
interpretação das reações corpóreas
do paciente.
Reich entende que a
formação do caráter se dá no nível
da vazão de energias. Quando um indivíduo tem sua
constituição feita de forma equilibrada entre suas
pulsões naturais e as repressões de caráter
moral, teremos um adulto bem resolvido, com sua energia fluindo
adequadamente. No entanto, se esse mesmo indivíduo não
pode se formar de modo a conseguir lidar com suas frustrações,
encontrará um represamento de energias, que refletirão
em seu corpo e em seu modo de ser. Segundo Reich, este processo se
inicia já no útero da mãe, o que nos dá a
dimensão do quanto a emotividade processa interações
com o organismo.
Para explicar como funciona essa sinergia entre corpo e mente, Reich desenvolveu a teoria das couraças. De acordo com essa tese, o corpo reflete organicamente as frustrações mal resolvidas durante toda a vida, e ainda que a condição física não seja permanente, o seu registro o é, o que faz com que a patologia possa ser disparada instantaneamente diante de qualquer evento que a faça reaflorar, como a nova vivência de uma situação constrangedora. Ou seja, temos uma somatização, que nada mais é do que uma conseqüência corporal de um fenômeno psíquico.
Como funciona isso? Ao
se ver diante de uma situação conflitante, o
psicológico do contribuinte produz conexões mentais que
lhe informam como agir. Em um caso de perfeito equilíbrio, o
corpo articula essa informação e a traduz em ação,
liberando a energia requerida para tanto. Caso a situação
represente uma ameaça (que não precisa ser real nem
imediata), a couraça age, armazenando essa energia e impedindo
que o impulso ocorra. O objetivo dessa couraça é
proteger o cidadão de um agravamento de sua frustração,
o que inconscientemente o livraria de danos maiores. Essa ação
da couraça pode desencadear um travamento, um freio, uma dor,
ou seja, uma reação fisiológica.
É o caso de
nosso desafortunado Adauto. Provavelmente, ele estava apto a bater o
pênalti, com a tensão normal de quem tem a
responsabilidade de definir um campeonato. Ao cochichar seu apelido
de infância, seu adversário fez recrudescer toda a
tensão, multiplicando-a a ponto de interferir no seu correto
funcionamento orgânico. Reich diria que Adauto tentou combater
sua couraça, mas esta teve seu efeito devastador: a cobrança
foi mal feita, por um processo de travamento e desconcentração.
Ao trauma preexistente, sucedeu-se outro ainda maior, que o impediu
até mesmo de prosseguir na carreira. Somente com a mitigação
de partes significativas de sua frustração (com a
descoberta feita pela personagem Olenka, seguida de seu “tratamento”
liberatório de energias) o restante do desequilíbrio
pode ser resolvido, e o caráter do moço, ao menos neste
aspecto, conseguiu atingir seu leito normal.
Esta é uma
interpretação bastante simplista e reducionista de
minha parte, mas serve para introduzir um pensamento que tem sido
visto com mais seriedade nos últimos tempos, principalmente
com o desenvolvimento da psicossomática, área afeita à
psicologia que estuda as alterações físicas
produzidas a partir de fenômenos psíquicos, como as
alergias, taquicardias, suores e outros sintomas desencadeados por
motivos não relacionados à esfera fisiológica. E
lembrando ainda que Reich fez aproximações
interessantes com algumas filosofias orientais. Ele dizia, por
exemplo, que o represamento de energia se dava em sete pontos do
organismo, correspondentes aos chakras do corpo sutil descritos pela
Yoga, e que cada um destes segmentos regia uma determinada
característica do complexo emocional. Também definia a
sexualidade como válvula de descarga de toda forma de energia,
que se acumulava na região pélvica. O orgasmo era a
representação máxima da harmonia
físico-psicológica humana. Em uma época onde a
livre manifestação sexual era vista como deturpadora de
valores, Reich sofreu grande oposição e perseguição,
com a proibição total de suas obras (chegou mesmo a ser
levado à prisão, onde terminou seus dias).
Portanto, reputo como
feliz a escolha do final da novela pelo diretor, que conseguiu
produzir um grand finale a partir de uma trama lateral, que
poderia ser facilmente esquecida, mas que representa a resolução
de um mal nem sempre fácil de se perceber: o quanto a infância
e puberdade podem interferir na constituição do ser
adulto, e de como a cabeça da pessoa influi muito mais do que
podemos supor no funcionamento do organismo. A fisiologia, a
psicologia e ciências biomédicas têm olhado com
muito mais atenção alguns aspectos que eram pouco
levados a sério em um passado relativamente recente.
Recomendação
de leitura:
Como já disse,
todo o ideário de Reich é extremamente polêmico,
contando com grande número de opositores. Mas como a
psicanálise é bastante cara à Filosofia, é
importante verificar como se deu o desenvolvimento de um pensamento
que tem encontrado mais eco nos dias de hoje do que no auge de seu
surgimento.
REICH, Wilhelm. Análise
do caráter. São Paulo: Martins Fontes, 1989.